23 Dezembro 2021
O teólogo e pastor valdense italiano, Paolo Ricca, professor emérito da Faculdade Valdense de Teologia, fala frequentemente de fé. Sempre o fez ao longo das décadas divididas entre pesquisa, ensino, atividade pastoral. Com o olhar de estudioso da teologia, mas sobretudo de apaixonado pelos acontecimentos do ser humano, antes mesmo que como crente ou praticante.
A entrevista é de Marco Bevilacqua, publicada por Rocca, nº 24, 15-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A fé não nasce do medo da morte ou da incerteza do futuro - disse recentemente, respondendo à pergunta de Antonio Gnoli, nas páginas do Repubblica. A fé é uma viagem que não termina no espaço de uma vida”.
Vamos partir dessa definição. Fala-se que a fé é um dom. Professor Ricca, por que alguns o recebem e outros não?
A fé é certamente um dom, no sentido de que ninguém pode dá-la a si mesmo, mas é também muitas outras coisas. É pesquisa, vontade, decisão. Muitas vezes esse discurso do dom torna-se um álibi para nos exonerar daquele que não quero chamar de esforço de acreditar, porque acreditar é uma alegria, mas o esforço é fazer o caminho que leva à fé. Trata-se de um caminho que você geralmente não encontra de improviso, a menos que invista nesse encontro algo próprio. A imagem do caminho não deve ser absolutizada, mas nos serve para dar a ideia de que no percurso da fé devemos primeiramente partir, mover-se, sair da posição em que nos encontramos. Portanto, é necessário considerar tudo o que acompanha e prepara a fé, o que não é um estado de graça em si mesmo imutável.
A fé, portanto, é uma espécie de porta com a qual nos deparamos. Podemos decidir abri-la ou não, mas em qualquer caso, girar a maçaneta é uma ação necessária para ultrapassar o limiar, para acessar outros espaços.
Eu diria que sim. Deve-se considerar também que não há provas da existência de Deus.
As famosas cinco vias que segundo Tomás de Aquino conduzem à fé são efetivamente plausíveis e praticáveis, mas conduzem a um Deus aristotélico, a um "motor imóvel" completamente diferente do Deus da fé judaico-cristã.
A verdade é que não temos certezas ou provas de sua existência. Se você simplesmente me perguntar por que eu acredito, sabe o que eu lhe respondo? Eu não sei. E a minha resposta é séria, não um jogo capcioso. Nesse sentido, concordo de bom grado com a posição de Kierkegaard, que, quando lhe diziam, a título de elogio, que ele era o exemplo perfeito de cristão, respondia: "Por favor, de aspirante a cristão". É isso, eu me considero tal. O próprio Nietzsche disse que houve apenas um cristão na história e que o crucificaram. Voltando para nós, em última análise, acredito que congelar o conceito de fé na imagem de um dom é fortemente redutora.
Vivemos uma época complexa, cheia de incertezas, sombras e angústias. O eterno dilema da morte, nunca como agora removido e sufocado, nos atormenta. Em uma sua recente conferência, falando da ressurreição como o cancelamento da memória da morte, você explicou que negar a vida após a morte e a sobrevivência da alma também é um ato de fé, porque o além vida não pode ser afirmado nem negado como ato da razão. Não estou lhe pedindo uma receita para resolver a questão, mas lembrando o que dizia Epicuro (quando nós existimos, não há morte. E vice-versa), pode explicar em poucas palavras como você lida pessoalmente com o pensamento do fim da vida?
Confesso com toda a franqueza que nunca penso nisso. Embora a minha idade testemunhe uma trajetória existencial mais do que duradoura, também pontuada por períodos de doença que várias vezes me fizeram aproximar ao que chamamos indevidamente de fim, vivo como se a morte estivesse muito distante de mim. Aliás, eu digo-lhe que é impossível pensar na morte na qualidade de vivos. A menos que existam condições de saúde que o anunciem de forma inequívoca. A morte é um fato que observamos todos os dias ao nosso redor, que está ao nosso lado, quase nos assedia. Mas é como se não existisse. Eu penso que a nossa vida após a morte, isto é, o que existe depois da nossa vida terrena, é Deus, em sua plenitude e em sua realidade. No capítulo 15 da Primeira Carta aos Coríntios, falando da ressurreição do homem, o apóstolo Paulo diz que "Deus será tudo em todos". Não diz 'muitos' ou 'alguns', mas sim 'todos'. Assim, abre um horizonte infinito, que não exclui ninguém. Portanto, fala de um além vida inclusivo, sem inferno ou purgatório. Ao qual todos teremos acesso, não com o nosso corpo atual, mas com o que o próprio Paulo define, quase com uma contradictio in adiecto, corpo espiritual.
É uma definição importante, porque antes de ser uma alma, antes de ser um espírito, nós somos corpo. Portanto, o conceito de um 'tudo em todos' acessível ao nosso corpo espiritual é uma mensagem verdadeiramente maravilhosa e libertadora, e o que chamamos de fim da vida é apenas uma etapa em nosso percurso, é o fim de nosso corpo material. Mas o eu não é só a alma, é a individualidade de cada um de nós, com nome e sobrenome, com aquele corpo, aquele espírito, aquela mentalidade, aquela interioridade, aquele sentimentalismo que nos torna o que somos, bonitos ou feios, bons ou menos bons. Em suma, tudo o que torna cada um de nós um ser único, uma individualidade irrepetível, terá para todos nós uma vida após a morte que se chama Deus.
Em 2015, o Papa Francisco, o primeiro pontífice a entrar em um local de culto reformado, o templo valdense em Turin, pediu perdão pelas atitudes e comportamentos não cristãos, "até mesmo não humanos que, na história, tivemos contra vocês". Que impacto suas palavras tiveram na virada ecumênica da relação entre católicos e valdenses?
As palavras de Francisco tiveram um grande eco e certamente marcam uma virada histórica. Mas devo dizer que seu pedido de perdão, embora muito bem-vindo e cheio de significados positivos, não pode ser respondido: este Papa não tem nada a ser perdoado, ele não pode ser censurado em nada no que diz respeito às relações entre católicos e valdenses. Francisco se distancia dos pecados cometidos por outros antes dele. Não existe perdão por procuração, apenas as vítimas, ou o próprio Deus, podem perdoar aqueles que infligiram o mal a elas. Não posso perdoar os algozes dos meus antepassados, só posso dizer com plena convicção que reconheço, e fico feliz, que este pedido de perdão demonstra a vontade de começar uma nova história entre os católicos e os valdenses de hoje.
Como você avalia em geral a obra do Papa Bergoglio para o mundo cristão?
Acho que em tema ecumênico a verdadeira virada veio com o Concílio Vaticano II. O grande mérito do Papa Francisco é ter 'ressuscitado' certas afirmações do Vaticano II, completamente ignoradas pelos papas sucessivos a João XXIII e sufocadas por décadas em um silêncio ensurdecedor. Como a hierarquia das verdades católicas, que o Concílio havia estabelecido, não estivessem todas no mesmo plano.
O dogma da assunção de Maria ao céu, apenas para dar um exemplo, não está no mesmo plano que o dogma da Trindade. O Concílio especificou o porquê: porque nem todas as verdades católicas têm a mesma relação com o núcleo central da fé cristã. O dogma da trindade tem uma relação muito estreita com este núcleo, a assunção de Maria ao céu não. Esta é uma passagem muito importante em chave de diálogo ecumênico, mas depois de décadas de silêncio só o Papa Francisco teve a coragem de falar a respeito.
Outro ponto importante retomado por Francisco, que também falou a respeito na sua primeira exortação apostólica, Evangelii gaudium, é a ideia da unidade cristã como diversidade reconciliada. Na verdade, a ideia havia sido elaborada por uma assembleia mundial de luteranos, mas foi atribuída aos bispos católicos do Congo. Seu direito de primogenitura não importa, o que importa é que o papa tenha falado da unidade cristã, um conceito profundamente ecumênico no sentido mais amplo do termo. E, finalmente, o Papa Francisco também foi capaz de gestos corajosos.
Não só a visita a Turim, mas também a sua decisão de participar, em Lund, no culto luterano pela inauguração das celebrações do quinto centenário da reforma protestante. Um pontífice que faz isso prova ser um papa livre. Livre inclusive da tradição papal.
Um papa revolucionário à sua maneira, portanto.
Mas devo apontar um limite para este pontificado. Digo isso com estima, apreço e até pelo carinho que tenho por este Papa, um sentimento que nunca antes senti por um pontífice.
O limite é que este papa não deslocou de uma vírgula a doutrina católica, apesar de ter realizado gestos que a transcendem substancialmente. Por exemplo, sobre o sacerdócio feminino ou ainda mais sobre o reconhecimento das Igrejas: as Igrejas Protestantes ainda são incompreensivelmente consideradas, à letra do Vaticano II, "comunidades eclesiais", uma definição vazia de sentido, como se se tratasse de igrejas incompletas ou inacabadas.
É uma forma imprópria de nos considerarmos, que esconde um real não reconhecimento. Quando, em vez disso, em nossa realidade, com todos os nossos limites e defeitos, nós valdenses somos Igreja há oito séculos. Somos sobreviventes, passamos por uma história cruel, disseminada de atrocidades e peripécias. Acredito que mereceríamos um pleno reconhecimento, porque somos e continuaremos a ser uma Igreja.
A Covid e a crise climática enviaram ao homem sinais inequívocos sobre a necessidade de uma mudança radical na abordagem da natureza, dos recursos, das próprias relações entre os seres humanos. Será que professar o cristianismo pode ajudar a agir com visão, bem como a cultivar a esperança em um mundo cada vez mais secularizado?
A profissão de fé cristã ajudaria muito, talvez fosse o verdadeiro remédio de que necessitamos se recuperasse o que, em minha opinião, perdeu, ou seja, a consciência do que significa ter fé no Deus Criador. No cânone da Missa, o lugar reservado para Deus, o criador do universo, ou do multiverso se você preferir, é central.
Basta pensar na letra das palavras do Credo. De fato, esse conceito não tem um lugar real na vida litúrgica ou na sensibilidade quotidiana dos cristãos, porque 90% da atenção da fé cristã se concentrou na redenção, esquecendo a criação. A Terra pertence a Deus, não a nós, e aqui somos apenas hóspedes. Hóspedes perigosos, vamos ser claros, porque não respeitam as regras de hospitalidade de forma alguma.
O homem é de longe o animal mais perigoso que existe. Somos culpados de etnocídio, não só de pessoas, mas em geral de multidões de seres vivos que morreram por causa do homem. O desmatamento é um crime, assim como a criação animal intensiva, que é disseminada no mundo e deveria ser proibida: a cada ano são abatidos e acabam em nossas mesas dezessete bilhões de animais. E tudo isso porque os cristãos professam sim, retoricamente, a ideia de um Deus criador, mas não a traduzem em comportamentos e em existência real consequente. Não há consciência de que somos hóspedes desta Terra, nem do perigo que representamos para os outros seres vivos.
Então o homem está em conflito aberto com Deus ...
Isso é exatamente o que eu penso. Para os cristãos, a conversão ecológica de que hoje tanto se fala passa pela conversão a Deus.
Como pastor da Igreja Evangélica Valdense, que valor você atribui hoje, no século XXI, à Reforma Luterana?
Resumo telegraficamente em duas palavras. A primeira é refundação: a Reforma Protestante fundou a fé cristã sobre as sagradas escrituras, sobre o Antigo e o Novo Testamento. A Bíblia sempre foi amada na história da Igreja. Comentários monumentais sobre a Bíblia foram escritos na Idade Média, então a Reforma Protestante não descobriu nada de novo. “Apenas” colocou a Bíblia como fundamento, e não como simples acompanhamento da fé cristã.
Fides ex auditu, dizia São Paulo, e onde ressoa a palavra de Cristo senão na Sagrada Escritura (o anúncio no Antigo e o cumprimento no Novo Testamento)? A segunda palavra é ressubstanciação: a Reforma ressubstanciou a fé cristã. Quem é Deus, quem é Cristo, o que é a fé, quem é o homem? Todas questões constitutivas da fé cristã que encontram respostas concretas nas Sagradas Escrituras.
Você teve e continua tendo uma vida articulada e rica, cheia de encontros, experiências, confrontos. Qual é a marca mais profunda que você identifica em sua existência?
Uma bela pergunta, a que, no entanto, é impossível responder completamente. Não sabemos como nos tornamos o que somos, nem quem foram nossos verdadeiros mestres. A única coisa que podemos afirmar com certeza é que somos apenas em parte os criadores de nós mesmos, embora também sejamos fruto de inúmeras decisões que foram nossas. Olhando para trás, sem dúvida, minha família, minhas origens, o pequeno povo valdense do qual faço parte, pesaram muito sobre mim. Recebi uma lição de vida extraordinária de meus pais, meu irmão e minhas três irmãs.
E depois tive muitos mestres, e ainda tenho, porque nunca paro de aprender. A vida é uma escola que nunca acaba, mesmo para quem tem 85 anos como eu.
A revista que nos hospeda desde sempre se propôs como uma janela aberta para o mundo católico, e tem a ambição de fazê-lo sem disfarces e preconceitos em relação ao "outro de si ". Como leitor de Rocca, que temas você gostaria de ver abordados?
Rocca é uma bela revista, que rende honra a quem a produz com tanta constância e empenho. Se eu posso expressar um desejo, diria que seria interessante que no futuro não tratasse apenas do mundo católico, ampliando o olhar para a cristandade no mundo. Por exemplo, na Itália existe uma tendência a ignorar todo o trabalho do conselho ecumênico das Igrejas, uma fonte de enorme enriquecimento para o cristianismo. Aqui está, para Rocca, poderia ser um campo para enriquecer os conteúdos.
Nesse sentido, esta entrevista poderia ser mais um passo no sentido de um enriquecimento de conteúdos ...
De fato, sim. Também poderíamos considerá-la assim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O além vida existe e se chama Deus. Entrevista com Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU