Doar a morte em homenagem à vida

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30 Novembro 2021

 

"A morte não está aqui em jogo como simples supressão da vida ou, pior, como seleção da vida, mas como um dom de quem reconhece que morrer quando a vida está contra a parede, sem esperanças, submersa pelo sofrimento, é uma libertação que salvaguarda a própria dignidade humana da vida", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das Universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 29-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

É possível conceber a interrupção voluntária da vida - eutanásia ou suicídio assistido - não somente como o que pode evitar o tormento de sofrimentos sem nenhuma esperança de cura, mas como um verdadeiro dom? Pode a morte em certas circunstâncias dramáticas ser um dom que não ultraja de forma alguma a sacralidade da vida, mas a honra imensamente?

 

Não existe morte natural, escrevia Simone De Beauvoir. De fato, cada morte humana acontece sempre prematuramente. Não fomos feitos para morrer, mas para viver: a morte é o nosso destino insuperável, mas é também o que contradiz terrivelmente o nosso apego à vida. Temos que morrer, mas não fomos feitos para morrer. Nesse sentido, a morte sempre acontece com antecedência, sempre muito cedo, sempre, precisamente, de forma prematura. É a razão do extremo escândalo que causa a morte de uma criança: a morte ocorre naqueles casos em que não é esperada, em que nunca deveria acontecer, não no final, mas no início da vida.

 

Mas se a morte é um evento que sempre gostaríamos de evitar, como pode assumir o significado de um dom? A morte pode realmente ser doada? Em um filme extraordinário intitulado Menina de Ouro, Clint Eastwood encenou escabrosamente esses questionamentos. Uma jovem mulher está paralisada na cama devido a uma terrível lesão sofrida em uma luta de boxe. Ela construiu sua vida resistindo a inúmeras dificuldades.

 

Graças ao seu desejo determinado e à dedicação do seu treinador, ela finalmente encontra sua afirmação no ringue. Em seguida, o trauma da lesão. Sua vida é repentinamente amputada, alimentada pelas máquinas da ciência médica, sem nem mesmo a possibilidade de falar, submersa por sofrimentos inauditos provocados pela gangrena. Tenta primeiro cometer suicídio mordendo a língua.

 

Depois, ela comunica ao seu antigo e amado treinador o desejo de não continuar mais a viver assim. Ele a chamava de Mo cuishe, que em gaélico significa "meu tesouro" e diante da dor sem esperança desse "tesouro", Frankie, o velho treinador, decide puxar a o fio da tomada dando fim ao seu atroz sofrimento. Portanto, a morte pode ser um dom de amor? Ou talvez Frankie assumiu impunemente o lugar de Deus ao decidir sobre a vida ou a morte de outro ser humano? Quando a vida está submersa pelo sofrimento e um mal que não deixa esperança, quando seu horizonte se estreitou até o limite de uma cama em uma unidade de terapia intensiva permanente, quando a vida já perdeu o sentido da vida, então doar a morte, não seria um ato de amor que salvaguarda o respeito pela vida e sua imensa sacralidade? Que materialismo grosseiro pode confundir a vida humana com uma respiração alimentada artificialmente por máquinas? Mas, acima de tudo, que concepção impiedosa de vida é preciso ter para excluir a possibilidade de rendição?

 

Um famoso livro do teólogo Dietrich Bonhoeffer intitula-se justamente Resistência e rendição. São os dois movimentos que marcam a vida humana. O primeiro é o da resistência da vida diante dos obstáculos, das provações, do sofrimento, da tentação da morte. Mas até quando? Por quanto tempo a dor e a falta de esperança podem ser suportadas? Até que ponto uma vida pode resistir à dor?

 

O segundo movimento é o da rendição. Aqui a vida se revela plenamente humana. De fato, se a rendição sem a prova da resistência pode ser uma fuga da vida, a resistência sem a possibilidade de rendição pode se tornar um suplício ou um martírio inútil. Mas quem pode medir a relação certa entre resistência e rendição?

 

À luz da pietas humana, a força de resistência deveria ter a mesma dignidade que a declaração de rendição. Quando a vida se rende ao sofrimento depois de ter resistido até o limite, é justo que o dom da morte se torne possível, que a rendição não seja impedida mas, pelo contrário, honrada.

 

A Lei não pode impor a resistência sem a rendição - este seria o coração louco da filosofia do hitlerismo - mas deve servir para permitir o dom da morte diante de uma existência que pode declarar sua rendição após o tempo de resistência. Nesse caso, a morte torna a vida ainda mais sagrada porque a reconhece como profundamente vulnerável, frágil, humana.

 

A morte não está aqui em jogo como simples supressão da vida ou, pior, como seleção da vida, mas como um dom de quem reconhece que morrer quando a vida está contra a parede, sem esperanças, submersa pelo sofrimento, é uma libertação que salvaguarda a própria dignidade humana da vida. Se o dom da vida é o dom de uma aventura possível, o da morte pode ser o dom que reconhece a rendição da vida diante do impossível.

 

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