22 Novembro 2021
"Grande parte da água engarrafada que bebemos é apenas água da torneira embalada. Um estudo de 2018 da Food & Water Watch descobriu que as empresas privadas retiram 64% de sua água engarrafada de fontes municipais de água encanada", escreve JP Sottile, jornalista freelance, historiador, apresentador de rádio e documentarista, em artigo publicado por Truthout e reproduzido pelo portal Outras Palavras, 18-11-2021. A tradução é de Antonio Martins.
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos de Michigan, nos EUA, alertou recentemente a população de Benton Harbor – cidade vizinha e predominantemente negra – para parar de beber, cozinhar ou escovar os dentes com água da torneira. “Por excesso de cautela”, as autoridades estaduais recomendaram o uso de água engarrafada para evitar a contaminação tóxica do chumbo que flui pelo sistema de água da cidade e, em última instância, pelas casas e corpos dos moradores.
O aviso, junto com 20.000 caixas de água engarrafada, veio aproximadamente três anos depois que os primeiros testes revelaram níveis de chumbo além do nível de ação da Agência de Proteção Ambiental, de 15 partes por bilhão (ppb). O “nível de ação” é o limite legal que aciona a ação regulatória. Na verdade, pouco foi feito durante o período em que a água potável da cidade “ deixou de atingir, por seis medições consecutivas, os padrões de amostragem nos últimos três anos ” após o primeiro teste. Tudo isso aconteceu três anos depois que Michigan acrescentou uma “Regra de chumbo e cobre” à Lei de Água Potável Segura de Michigan em 2018.
Essa regra exigia a “remoção de todas as linhas de serviço de chumbo em Michigan” e “a redução do padrão de 15 ppb” para “12 ppb em 1º de janeiro de 2025”. Talvez mais irritante para o povo de Benton Harbor, a regra promete que o “Estado trabalhará em estreita colaboração com as autoridades locais de água para responder rapidamente a qualquer resultado de teste que mostre altos níveis de chumbo, incluindo medidas para atingir os níveis exigidos pela regulamentação estadual. ”
Infelizmente para os cerca de 10.000 residentes de Benton Harbor, foi só em 30 de setembro deste ano, uma semana antes do aviso oficial, que o MDHS finalmente começou a “distribuir caixas de água engarrafada para todos os habitantes em Benton Harbor. ” Somente em 11 de outubro, cinco dias após o aviso mencionado, eles ofereceram “exames de sangue com chumbo gratuitos para crianças” e “inspeções domiciliares para quem mostra sinais de chumbo em seu sistema”.
Funcionários do estado e voluntários, desde então, despejaram caixa após caixa de água engarrafada “grátis” numa cidade cada vez mais furiosa. Alguns moradores esperaram mais de uma hora e meia para pegar água potável que deveria estar prontamente disponível em suas casas. Mas, assim como a história infame da contaminação por chumbo na cidade de Flint, localizada 250 quilômetros a leste de Benton Harbor, a imagem icônica do fracasso é a chegada de água engarrafada de marca corporativa. Mais uma vez, é por meio de água engarrafada que se entrega o bem mais básico que um governo deve fornecer: água limpa e segura.
A ironia não para por aí, já que grande parte da água engarrafada que bebemos é apenas água da torneira embalada. Um estudo de 2018 da Food & Water Watch descobriu que as empresas privadas retiram 64% de sua água engarrafada de fontes municipais de água encanada. Se envolver filtragem, como na marca Dasani, da Coca-Cola (US$ 1,06 bilhão em vendas de 2020), ou Aquafina, da Pepsi ( US $ 1,06 bilhão em vendas de 2020), o “processo remove minerais benéficos como cálcio e magnésio”. Isso, conforme afirmou Dan Heil, professor de fisiologia do exercício da Universidade de Montana, ao Los Angeles Times , embora “não haja sinais de que a água ‘pura’ é mais saudável ou melhor para o corpo do que a água da torneira com minerais naturais”.
Apesar disso, a vice-presidente de comunicações da International Bottled Water Association, Jill Culora, garantiu à revista do setor de alimentos The Shelby Report que “a preferência do consumidor por hidratação saudável é realmente uma boa notícia para a saúde pública”. Uma análise de mercado de janeiro de 2021 pela Grandview Research vê “o aumento da consciência do consumidor em relação aos benefícios para a saúde do consumo de água engarrafada”, levando ao “crescimento do mercado durante o período de previsão” de 2021-2028. O relatório otimista também observa que “a água engarrafada em vez da água comum … parece ter atingido um ponto ideal para os compradores preocupados com a saúde”.
De alguma forma, a ironia de que cidadãos “conscientes sobre Saúde” tornaram-se cada vez mais dependentes de microplásticos contaminado, e garrafas químico-lixiviadas. Enquanto isso, corporações privadas invadem fontes de água públicas ou simplesmente filtram a água da torneira que os cidadãs muitas vezes se recusam a beber, se não for embalada em plástico produzido petroquimicamente e vendido por volta por até 2.000 vezes o preço das torneiras.
Em 2017, o estado de Michigan encerrou um subsídio que pagou cerca de dois terços das contas de água dos residentes da dicade de Flint, “por água que não atendia aos padrões federais de qualidade que datam de 2014”. Ao mesmo tempo, a cerca de 200 quilõmetros, a envasadora em Michigan da suíça Nestlé, comemorava o fato de engarrafar “água de nascente local em recipientes de 10 litros”, com a maioria das linhas funcionando “24 horas por dia, 7 dias por semana, cada uma bombeando de 500 a 1.200 garrafas por minuto”. Até 3,5 milhões de garrafas eram produzidas todos os dias.
Nesse ano, as atividades da Nestlé com água engarrafada arrecadaram US$7,7 bilhões em todo o mundo. Em Michigan, a empresa não pagava quase nada para extrair “milhões de litros” e vendê-los com enorme. Não era apenas uma privatização de fato de um recurso público vital: a população subsidiava as operações da Nestlé. O modelo tem sido replicado pela corporação em todo o mundo.
A Floresta Nacional de San Bernardino, na Califórnia, está localizada cerca de 120 quilômetros a leste de Los Angeles, endemicamente faminta de água. Os lagos da floresta são também uma fonte primária da água de nascente de montanha da marca Arrowhead, da Nestlé, que a apresenta como “quase mitologicamente. A revista Sunset Magazine descobriu que a corporação retirou “uma média de 200 milhões de litros de água da floresta todos os anos entre 1947 e 2015″, mas pagou apenas 524 dólares por ano por uma licença que expirou em 1978. Apesar da expiração, a Nestlé continuou a pagar a mesquinha quantia até que um protestode cidadãos e ativistas em 2017 levou o Serviço Florestal dos EUA a emitir uma nova licença em 2018 – com uma nova taxa anual de apenas 2.000 dólares…
Para sua marca Pure Life, a Nestlé aproveita, na Califórna, os sistemas municipais de água de Sacramento, Livermore, Pasadena, Ontário, Los Angeles e Cabazon. Em Sacramento, a Pure Life e outras empresas de água engarrafada pagam US$ 1 por 3 mil litros de água do município, o mesmo preço cobrado dos residentes e empresas locais. A principal diferença, diz Sunset , é que “o benefício não retorna para a comunidade, pois a maioria das garrafas é exportada”.
A Pure Life também extraiu 100 milhões de litros por ano da ensolarada cidade de Phoenix, Arizona, até encerrar sua polêmica planta, após menos de três anos de operação. Os US$ 35 milhões de investimento que a empresa fez traduziram em apenas 15 empregos perdidos quando a torneira foi fechada, em 2019.
A ironia em uma história cheia de ironias é que tanto Califórnia quanto Arizona, e Phoenix em particular , têm enfrentado secas relacionadas ao clima que restringem cada vez mais o fluxo de água para zonas urbanas e rurais . Com o avanço rápido da crise climática, parece na melhor das hipóteses contraproducente permitir que as empresas engarrafem água potável e reembalem em plástico à base de petróleo. Pior ainda: as garrafas plásticas de água devem ser transportadas por uma cadeia de abastecimento movida a petróleo para que possam ser compradas por preço premium e levadas às residências pelos consumidores — que poderiam ter acesso ao mesmo líquido por meio de suas torneiras. O fato de a água pública estar sendo canalizada para embalagens privadas e revendida com enorme lucro em regiões com escassez de água é tristemente emblemático de um processo parasitário de privatização que, a longo prazo, parece temerário e totalmente insustentável.
Como a Bloomberg Businessweek apontou em 2017, a operação predatória da Nestlé identificou “áreas com regulamentações fracas sobre a água ou com lobbies capazes enfraquecer as leis”. Abriram-se assim as portas e torneiras para um processo de privatização de fato .
Como a Consumer Reports observou em 2020 , “uma fábrica de 25 mil metros quadrados da Coca-Cola … fervilhava” em Detroit, enquanto muitas outras empresas foram forçadas a suspender as operações em resposta às restrições da covid. A marca Dasani da Coca-Cola produziu sua lucrativa água engarrafada, que rende à empresa mais de US $ 1 bilhão em vendas anuais, “comprando, tratando e engarrafando a água municipal antes de vendê-la com um sobrepreço significativo aos consumidores”. A marca Aquafina da Pepsi segue o mesmo modelo lucrativo para a água engarrafada em Harrisburg, Pensilvânia, com, a Consumer Reports descobriu.
A Consumer Reports também descobriu que a Coca-Cola pagou uma média de US $ 0,003 por litro de água púbica. Depois de passar por um filtro de “purificação” e engarrafá-la, a empresa cobrar um preço de atacado de US$ 0,40 pelo mesmo litro de água. Surpreendentemente, essa margem de lucro não foi suficiente para levar a Coca-Cola a pagar sua conta. Embora os moradores corressem o risco de ter seu abastecimento cortado, se acumulassem US$ 150 ou 60 dias de atraso no pagamento deas contas, a Coca-Cola sempre atrasou os pagamentos, chegando a atingir US$ 300 mil em atraso. Em resposta a denúncia contundente da Consumer Reports , o Departamento de Água e Esgoto explicou a delinqüência como resultado de “erros por parte da cidade, incluindo problemas de envio das contas”.
A Nestlé permanece líder mundial em água engarrafada, e mantém seu domínio sobre as conhecidas “marcas premium” Perrier, S. Pellegrino e Acqua Panna. O controle da Perrier pela Nestlé parece adequado, já que as marcas de saúde e luxo da Perrier no final dos anos 70 prepararam o cenário para a transformação do negócio de água engarrafada numa operação multibilionário.
A Perrier, que havia feito parte de um “nicho” de mercado de águas minerais, passou de 3 milhões de garrafas em 1975 para cerca de 200 milhões de garrafas às vésperas dos anos 1980. Impulsionada por uma campanha de marketing enfatizando tanto a salubridade quanto o luxo do “pedigree francês e preço premium” da água, como o escritor de alimentos Robert Moss detalhou em Serious Eats , a Perrier capitalizou no “desejo crescente dos baby boomers por status, à medida que a geração se desfazia de suas camisetas tingidas e começava a entrar no mundo corporativo.”
Quando Ronald Reagan foi eleito em 1980, a Perrier havia crescido o suficiente para engolir seu principal concorrente, a Poland Spring Water, e conquistar 85% do mercado de água engarrafada. Ela tropeçou em 1990, quando “vestígios de benzeno (…) fizeram com que as vendas da empresa despencassem.” Outras empresas agarraram os clientes perdidos e, em dois anos, a Nestlé abocanhou a Perrier, formando o titã global da água engarrafada que é hoje.
Você sabia que “Evian” é “ingênuo” [naive] escrito ao contrário?
Essa foi a piada mais contada quando a marca Evian e a água engarrafada se tornaram onipresentes no início dos anos 90. A piada, agora, zomba dos consumidores. Aparece nos resultados financeiros das corporações que arrecadam bilhões, muitas vezes captando água da torneira ou de fontes públicas, engarrafando e vendendo com um lucro considerável.
Talvez a ironia mais cruel de todas seja que quanto mais as populações dependem da água engarrafada, que é basicamente água privatizada, menos urgência política foi dada a tornar a água que flui nas torneiras limpa, segura e acessível a todos. Não é por acaso que os norte-americanos consumiram obsessivamente cada vez mais água engarrafada durante a era de marcas de luxo, e que essa sede tenha coincidido com o início do neoliberalismo e seu amplo ataque ao Estado e a suas regulamentações.
Foi uma mudança política significativa, alimentada pelo mito de que a privatização era inerentemente boa e o Estado sempre deveria ser visto com suspeita e desdém. Trouxe consigo o desprezo pelos investimentos públicos não associados ao complexo militar-industrial. Enquanto empresas como a Nestlé tiraram proveito da onda de desregulamentação, a infraestrutura essencial foi relegada à decadência. Décadas de indiferença ao investimento público levaram ao surgimento da água contaminada com chumbo que, por sua vez, força os cidadãos a confiar na água engarrafada privatizada como a única opção segura.
Talvez por isso, a população de Benton Harbor está de cara fechada. Ela, assim com os habitantes de muitas outras cidades nos EUA enfrenta hoje um longo e custoso caminho de reparação e reconstrução. O pacote de infraestrutura ” de US$ 1,2 trilhão, recentemente aprovado nos EUA aloca US$ 55 bilhões para gastos relacionados à água e US$ 15 bilhões especificamente para a substituição das canalizações de chumbo.
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O ciclo trágico da água engarrafada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU