25 Outubro 2021
“Pela primeira vez nessas últimas décadas, os trabalhadores de todo o mundo estão percebendo o poder que possuem frente a uma grande classe empresarial que quis ficar com tudo, à custa de destruir a economia em seu conjunto”, escreve Juan Torres López, economista espanhol e professor na Universidade de Sevilha, em artigo publicado por Público, 22-10-2021. A tradução é do Cepat.
Um novo fantasma percorre o mundo, o fantasma da renúncia de milhões de trabalhadores a continuar trabalhando nas condições em que estavam antes do confinamento. Os dados são indiscutíveis.
Nos Estados Unidos, o relatório da Secretaria do Trabalho, de algumas semanas atrás, destaca que 4,3 milhões de pessoas haviam renunciado a seus empregos em agosto. Isso fez com que já se passe de 10 milhões o número de postos vacantes em todo o país, apesar de haver quase 8,5 milhões de pessoas desempregadas.
Nos 38 países que fazem parte da OCDE, há 20 milhões de pessoas empregadas a menos do que antes do confinamento e 14 milhões já deixaram de ser consideradas ativas porque não possuem emprego, nem o procuram. E, em comparação com 2019, há 3 milhões a mais de jovens sem emprego, educação e formação.
Na China, Vietnã e outros países asiáticos também ocorre o mesmo, pois milhões de pessoas que haviam retornado para seus povoados, quando veio o confinamento, não retornaram para suas empresas. E na Europa, lemos diariamente notícias sobre a “falta” de pessoas para ocupar postos de trabalho em muitos setores econômicos. Na Alemanha, calcula-se que existem 400.000 empregos vacantes, na França, 300.000, e na Espanha quase 120.000, 88% deles no setor de serviços.
As causas desse fenômeno global são variadas e nem todas elas desejam colocar sobre a mesa, pois o fenômeno supõe uma espécie de emenda à totalidade do que vem acontecendo nos mercados de trabalho e na economia em geral durante os últimos 40 anos. Quem quiser se iludir pode acreditar que o problema se deve a desajustes temporários entre a oferta e a demanda de trabalho. Podem existir, sem certeza, mas não suficientemente para explicar toda a dimensão do problema.
O curioso, além disso, é que os mesmos economistas liberais que defendem essa tese (para não ter que enfrentar o que vou destacar na sequência) agem com muita incoerência. Quando há desemprego, dizem que se trata apenas de um excesso de oferta que se resolve automaticamente no mercado de trabalho assim que os salários caírem. Mas, agora que há escassez de oferta, não dizem para aumentar os salários para evitar o desequilíbrio. Uma demonstração a mais da fraude intelectual e do engano que há por trás das teorias liberais sobre a natureza do desemprego e sua solução.
A verdade é que o modelo de trabalho do neoliberalismo generalizou salários mais baixos, com a permanente desculpa de que isso era imprescindível para criar emprego. Ao diminuir a massa salarial, as vendas das empresas caíram e isso gerou menos atividade e emprego. Desse modo, criou-se um exército de desempregados que fez com que os salários não aumentem e que as condições de trabalho piorem sem parar, em benefício das grandes empresas (não de todas, porque uma grande parte se vê prejudicada pela queda nas vendas e atividades que destaquei).
Isso explica que, nos últimos anos de domínio neoliberal, tenham se generalizado condições de trabalho extenuantes, em que floresceram a ansiedade, o estresse, o esgotamento, o medo, a frustração e a renúncia crescente à vida familiar, cuidado e bem-estar no mais amplo sentido. De forma muito especial em alguns setores, grupos sociais e no caso das mulheres.
Durante os anos 1960 e 1970 do século passado, a rotatividade nos empregos era alta. Quem estivesse insatisfeito com o seu trabalho podia mudar com a garantia de encontrar outro, mais ou menos nas mesmas condições. Nos últimos 40 anos, ao contrário, os trabalhadores tiveram poucas chances de mudar, simplesmente porque as possibilidades de encontrar algo melhor eram mínimas.
Com sindicatos fragilizados, com a negociação coletiva em suspeita e, sobretudo, com esse exército de milhões de pessoas necessitadas de se empregar seja onde for, foi possível estabelecer um modelo de trabalho no qual ou se aceitava o que era oferecido pela empresa ou se perdia o emprego. Na fila havia centenas de pessoas dispostas a aceitar qualquer condição de trabalho. Daí os falsos autônomos, os contratos sem horas determinadas, as horas extras não remuneradas e o descumprimento generalizado das leis trabalhistas.
O confinamento transformou a situação, conforme descreveu de forma muito clara a professora da Harvard, Tsedal Neeley, em um interessante livro publicado no último mês de abril (Remote Work Revolution: Succeeding From Anywhere): “Mudamos. O trabalho mudou. A forma como pensamos sobre o tempo e o espaço mudou”.
As pesquisas que estão sendo realizadas em muitos países mostram claramente que a pandemia abriu os olhos de milhões de trabalhadores em todo o mundo, que agora rejeitam a situação de trabalho anterior e repensam sua vida e, em especial, as condições de trabalho. Um relatório recente da McKinsey & Company afirma que uma em cada quatro mulheres nos Estados Unidos está pensando em mudar de emprego ou em deixar a atividade em que trabalha por causa da Covid-19.
Na Espanha, a maioria das grandes empresas, com maior poder de negociação sobre os mercados, aproveitou a pandemia para intensificar as jornadas de trabalho e reduzir salários (às vezes, até 30% para os mesmos empregos para os quais contratavam antes do confinamento) e o salário médio sofreu, não só na Espanha, uma queda sem precedentes.
Por tudo isso, é uma ingenuidade e um erro descomunal acreditar que o que está acontecendo é uma falta de trabalho. Como escrevia há alguns dias Robert Reich, secretário do Trabalho de Clinton, não é falta de trabalho, mas de salários dignos, é a falta de creches, de licenças médicas remuneradas e falta de atendimento médico.
É verdade que Reich se refere aos Estados Unidos e que em outros países, como o nosso [Espanha], esse fenômeno ainda não se está ocorrendo com a mesma dimensão ou pelas mesmas razões. Mas, onde lá se diz falta de licenças médicas remuneradas ou de atendimento médico, aqui, colocamos jornadas intermináveis, salário de miséria e falta de estímulos e autonomia pessoal.
A verdade é que, pela primeira vez nessas últimas décadas, os trabalhadores de todo o mundo estão percebendo o poder que possuem frente a uma grande classe empresarial que quis ficar com tudo, à custa de destruir a economia em seu conjunto. Conforme foi dito por Reich no artigo que citei: “é possível dizer que os trabalhadores declararam uma greve geral nacional não oficial até que obtenham melhores salários e melhores condições de trabalho”.
Não haverá outro remédio a não ser negociar, aceitar que as relações trabalhistas devem manter um imprescindível equilíbrio e devolver direitos, salários e condições de trabalho decentes às classes trabalhadoras, caso não se deseje que a economia internacional entre em uma nova crise de magnitude e gravidade sem precedentes. Embora eu não seja otimista. Acostumaram-se a ganhar tanto, com tanta facilidade, que não será fácil que renunciem a um só de seus privilégios.
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A Grande Renúncia ao emprego (ruim) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU