20 Outubro 2021
"Crônica sobre o dia em que entrevi minha mãe na avenida Brasil. Ou: de como a democracia torna-se uma fachada oca, e as sociedades se desfazem, se vinte Joseph Bezos acumulam mais riqueza que 55% dos habitantes do planeta", escreve Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia e professor da PUC-SP e da Umesp, em artigo publicado por OutrasPalavras, 19-10-2021.
Esqueça esquerda versus direita.
É democracia ou oligarquia.
Robert Reich [i]
Anos atrás, eu esperava o semáforo abrir na Avenida Brasil em São Paulo, quando uma senhora muito idosa se aproximou da janela do meu carro pedindo um trocado. Nada de novo no Brasil moderno, mas eu fiquei transtornado: ela se parecia muito com a minha mãe. O “pedinte”, essa categoria social, tornava-se agora uma pessoa. Se ela não se parecesse tanto com a minha mãe, provavelmente eu tiraria alguns reais do bolso e esqueceria o caso. Tanto tempo depois, ainda me lembro. É compreensível a emoção que senti. O que não é compreensível é a indiferença que sentimos, por exemplo, frente às três milhões de crianças, menores de cinco anos de idade, que morrem de fome todos os anos. Daí a questão: como tornar as estatísticas não apenas intelectualmente compreensíveis, mas capazes de nos levar à ação? Como geramos a empatia crucial à sobrevivência da humanidade? A indiferença diante do absurdo, enquanto “um fenômeno geral”, é inevitável?
Em primeiro lugar, não há razão econômica para a pobreza. Se dividirmos o PIB mundial de 2020, US$ 85 trilhões, pela população, 7,8 bilhões, podemos ver que o que produzimos em bens e serviços neste planeta é equivalente a US$ 3.600 por mês por família de quatro membros, cerca de R$ 18.000. Esse número pode ser ajustado, podemos recorrer à Renda Nacional Líquida em vez do Produto Interno Bruto ou fazer outros ajustes, mas o fato básico permanece: o que hoje produzimos, com uma redução muito modesta da desigualdade, é suficiente para toda a humanidade ter acesso a uma vida confortável e digna. O nosso problema não é econômico, mas questão de organização política e social, o que hoje chamamos de governança.
As famílias não dependem apenas da renda, que é o dinheiro ganho todo mês ou ano. Elas dependem, também, da riqueza acumulada, ou seja, a casa, o dinheiro na conta bancária, o carro ou outros bens duráveis acumulados ao longo dos anos. Os números da riqueza acumulada pelas famílias em 2020 são impressionantes. Eles foram publicados pelo Crédit Suisse, um dos principais gestores de riqueza do mundo, e representam a pirâmide de riqueza global de 2020, como se pode ver abaixo [ii]:
No topo da pirâmide está o 1,1% da população adulta mundial: 56 milhões de pessoas que detêm riqueza individual acima de US$ 1 milhão, e que juntas somam US$ 191,6 trilhões equivalentes a 45,8% de toda a riqueza acumulada no mundo. Abaixo desse grupo, vem a classe média alta, que equivale a 11,1% da população adulta mundial: 583 milhões de pessoas que detêm riqueza individual acumulada entre US$ 100 mil e US$ 1 milhão, e que juntos somam US$ 163,9 trilhões em riqueza, 39,1% da riqueza total dos adultos. Aos somarmos esses dois grupos, é possível observar que apenas 12,2% da população adulta possui 85% da riqueza pessoal acumulada em todo o globo.
Descendo mais um degrau na pirâmide, observamos que praticamente um terço dos adultos no mundo, 32,8%, está na faixa de US$ 10 mil a US$ 100 mil, e detém 13,7% da riqueza total. Eles representam 1,715 bilhões de adultos cujas riquezas somadas chegam a US$ 57,3 trilhões.
O verdadeiro drama está na base da pirâmide: 55% da população adulta no mundo, quase 3 bilhões de pessoas, não tem praticamente riqueza alguma acumulada. Eles estão na faixa abaixo dos US$ 10 mil, e acumulam US$ 5,5 trilhões, o equivalente a 1,3% do total da riqueza acumulada. Em comparação com o 1,1%, que detém US$ 191,6 trilhões (45,8%) da riqueza total do mundo, temos uma realidade disfuncional, onde um grupo 55 vezes menor detém 35 vezes mais riqueza do que a base da sociedade. A riqueza média desses 55% de adultos é de US$ 1.910. Se somarmos as crianças, falaremos de cerca de 4,3 bilhões de pessoas. Em suma: para a maioria da população mundial, esse sistema simplesmente não está funcionando. Não se surpreendam se essa gente não vê muita diferença, nos EUA, entre republicanos e democratas, e acabem votando em quem apresenta um discurso de raiva contra o sistema.
O dramático aumento da desigualdade nas últimas décadas é fácil de entender, pela articulação da desigualdade de renda (ganhos anuais) e do patrimônio familiar (estoque acumulado). Cerca de dois terços da população mundial mal conseguem sobreviver com o que ganham, e não têm meios para investir na acumulação de riqueza familiar: o pouco que ganham é gasto com a sobrevivência. Por outro lado, as pessoas com alta renda têm um superávit substancial que lhes permite comprar uma casa e não pagar aluguel, ou comprar títulos financeiros que geram ainda mais renda e riqueza acumulada. Isso cria o efeito bola de neve, no sentido de que quanto mais rica a pessoa fica, mais rápido acumula riqueza. Todos os manuais de economia falam do sistema de equilíbrios que “os mercados” permitem, mas o que predomina é o processo cumulativo de polarização. Deixando mais claro: o dono de 1 bilhão de dólares, aplicados em papéis financeiros com remuneração modesta de 5%, está aumentando o seu patrimônio em 137 mil dólares por dia. Sem mecanismos que vinculem os ganhos a investimentos produtivos, e sem mecanismos eficientes de distribuição de riqueza, o mundo fica cada vez mais desequilibrado.
Redistribuir a renda deverá, portanto, permitir que se expanda também o acesso à acumulação de patrimônio. A geração de mais renda na base, por meio de um imposto sobre herança mais eficaz e outros impostos sobre a riqueza, pode trazer conforto e estabilidade para todos no planeta. Pagar melhores salários também permitiria que mais pessoas acumulassem riqueza, mas não será suficiente, pela fraca capacidade de geração de emprego na era da tecnologia. A riqueza pessoal total de adultos apresentada pelo Crédit Suisse, como vemos na tabela abaixo, é de US$ 418 trilhões, o equivalente a praticamente US$ 80 mil riqueza média por adulto. Para uma família de dois adultos, isso representa US$ 160 mil dólares, cerca de 800 mil reais. Não é uma fortuna, mas a possibilidade de gerar uma imensa mudança na qualidade de vida da maioria da população, mesmo com uma modesta redistribuição. Tirar apenas US$ 5,5 trilhões dos US$ 191,6 trilhões dos 1,1% mais ricos dobraria a riqueza na base da pirâmide. Para os mais ricos, que precisariam se contentar com apenas US$ 186 trilhões, não seria uma diferença significativa.
O Relatório também mostra como o planeta é dramaticamente desigual na distribuição geográfica da riqueza: “as disparidades regionais gerais se refletem no fato de que a América do Norte e a Europa juntas representam 57% da riqueza total das famílias, mas contêm apenas 17% da população adulta mundial” (p.11). Não estamos enfrentando apenas a herança de tantas atrocidades coloniais, mas um renovado processo de aumento da desigualdade, basicamente por meio de mecanismos financeiros.
colocar aqui a legenda (Foto: nome do fotógrafo)
Do ponto de vista ético, é um escândalo. Os pobres não são responsáveis pelo funcionamento do sistema que os mantém na armadilha da pobreza, nem os ricos produzem a riqueza que acumulam. A forma básica de acumulação de riqueza mudou. Um produtor tradicional de bens e serviços lucra pagando menos aos seus trabalhadores, mas tem de criar empregos e produzir coisas úteis que as pessoas comprariam, além de pagar impostos, o que permite ao Estado assegurar serviços públicos e infraestruturas. O sistema funcionou. O sistema atualmente dominante de extração de excedentes sociais é baseado na financeirização.
“Na verdade”, escreve Ellen Brown, “temos duas economias – a economia do consumidor/produtor, onde os bens e serviços são produzidos e comercializados – e a economia financeirizada, onde o dinheiro gera “rendimentos” sem produzir novos bens e serviços. A economia financeirizada é essencialmente um parasita da economia real e agora contém a maior parte do dinheiro do sistema. Proprietários e investidores corporativos podem ganhar mais dinheiro, e mais rápido, na economia financeirizada do que investindo em trabalhadores e equipamentos. Banqueiros, investidores e outros “poupadores” colocam seu dinheiro em ações e títulos, escondem-no em paraísos fiscais offshore, enviam-no para o exterior ou apenas o mantêm em dinheiro” [iii]. Robert Reich resume: “a economia passou da fabricação de coisas à fabricação de instrumentos financeiros. Os empreendedores de produtos foram substituídos por empreendedores financeiros” (p. 31).
Se considerarmos a produtividade do dinheiro, para pessoas que pouco têm, um pequeno aumento faz imensa diferença na qualidade de vida; ao passo que reduzir um pouco a fortuna dos bilionários não mudaria nada para eles. Mais dinheiro na base geraria um aumento no bem-estar no conjunto da sociedade. E o merecimento? John Kenneth Galbraith usa um bom argumento: “um dos exercícios mais antigos do homem em filosofia moral é a busca por uma justificativa moral superior para o egoísmo. É um exercício que envolve sempre um certo número de contradições internas e mesmo alguns absurdos. Os que detêm riqueza conspícua aparecem defendendo o valor de construção de caráter da pobreza dos pobres.”[iv]
Não se trata de ideologia, mas de fazer o sistema funcionar. O grau de desigualdade que alcançamos é uma farsa ética, é “o triunfo da injustiça”.[v] Do ponto de vista social e político, gera o caos: no limite da desigualdade, não há espaço para a democracia. E, do ponto de vista econômico, é simplesmente contraproducente, pois como a especulação rende mais do que a produção e geração de empregos, o dinheiro vai naturalmente para onde se multiplica mais rápido. Não é questão de mocinhos e bandidos, é o sistema. Temos elites improdutivas que drenam as riquezas, destroem o meio-ambiente, e repetem como idiotas o slogan legado por Friedman: Greed is Good!
Mas há limites para tudo. O Brasil tem 19 milhões de pessoas com fome, 116 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. Cerca de um terço são crianças. O Brasil exporta alimentos, rende mais do que abastecer o mercado interno. Só de grãos produzimos mais de 4 quilos por dia por pessoa. Não é falta de recursos, e sim de gestão social e política. Precisamos de uma nova economia, de economistas com outras cabeças, e de um ensino de economia centrado na solução dos dramas que nos assolam. No mundo morrem de fome mais de 2 milhões de crianças abaixo de 5 anos de idade. Para mim, não precisam ser parecidas com ninguém da minha família: é um escândalo intolerável.
i Robert Reich – The System: who rigged it, how we fix it – Alfred A. Knopf, New York, 2020
ii Crédit Suisse – Global Wealth Report 2021 – Credit Suisse Research Institute (June 2021, p.17) https://www.credit-suisse.com/about-us/en/reports-research/global-wealth-report.html
iii Ellen Brown – A Universal Basic Income is Essential and will Work – Global Research, April 20, 2020 https://www.globalresearch.ca/universal-basic-income-essential-will-work/5710152
iv In Robert Reich – The system – p. 194 – “The conspicuously wealthy turn up urging the character building value of privation for the poor.”
v Emmanuel Sazez and Gabriel Zucman – The Triumph of Injustice – Norton, New York, 2019.
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Desigualdade. Artigo de Ladislau Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU