"É necessário que juntos enfrentemos os discursos populistas de intolerância, xenofobia, aporofobia (que é o ódio aos pobres) e todos os que nos levem à indiferença, à meritocracia e ao individualismo; estas narrativas apenas servirão para dividir os nossos povos e minar e neutralizar a nossa capacidade poética. A capacidade de sonharmos juntos", afirmou o Papa Francisco, no dia 16-10-2021, ao falar para os participantes do IV Encontro Mundial de Movimentos Populares.
Segundo ele, "Os movimentos populares são, além de poetas sociais, Samaritanos Coletivos".
"O rendimento básico universal - RBU - é uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho é outra. E há que analisá-la seriamente. No século XIX, os operários trabalhavam 12, 14, 16 horas por dia. Quando conquistaram o horário de oito horas, não houve qualquer colapso, como previam alguns setores. Então, insisto, "trabalhar menos para que mais gente tenha acesso ao mercado laboral é um aspecto que precisamos de explorar com bastante urgência". Não pode haver tantas pessoas oprimidas pelo excesso de trabalho e tantas outras oprimidas pela falta de trabalho. Considero que são medidas necessárias, mas naturalmente não suficientes. Não resolvem o problema de fundo, nem garantem o acesso a terra, casa e trabalho na quantidade e qualidade que os camponeses sem terra, as famílias sem uma casa segura e os trabalhadores precários merecem. Tampouco permitem resolver os enormes desafios ambientais que enfrentamos. Mas queria mencioná-las porque são medidas possíveis e apontariam um caminho positivo de orientação" - afirmou o Papa Francisco.
Irmãos e irmãs, queridos Poetas Sociais
Gosto de vos chamar assim, Poetas Sociais. Vocês são poetas sociais porque têm a capacidade e a coragem de criar esperança onde apenas há descarte e exclusão; poesia quer dizer criatividade, e vocês criam esperança; com as vossas mãos sabem forjar a dignidade de cada um, das famílias e de toda a sociedade, com terra, casa e trabalho, cuidado e comunidade. Obrigado porque a vossa entrega é uma voz com autoridade, capaz de desmentir o desprezo e indiferença silenciosos e tantas vezes “educados” a que foram submetidos, ou a que são submetidos tantos irmãos nossos. Mas ao pensar em vocês, creio que, sobretudo, a vossa dedicação é um anúncio de esperança. Vê-los recorda-me que não estamos condenados a repetir nem a construir um futuro baseado na exclusão e na desigualdade, no descarte ou na indiferença; onde a cultura do privilégio seja um poder invisível e incontrolável e a exploração e o abuso sejam um método habitual de sobrevivência. Não! Vocês sabem anunciar isto muito bem. Obrigado.
Obrigado pelo vídeo que partilhamos recentemente. Li as reflexões do encontro, o testemunho do que viveram nestes tempos de tribulação e angústia, a síntese das vossas propostas e os vossos anseios. Obrigado. Obrigado por me permitirem fazer parte do processo histórico que estão a viver e obrigado por partilharem comigo este diálogo fraterno que procura ver o grande no pequeno e o pequeno no grande. Um diálogo que nasce nas periferias, um diálogo que chega a Roma e para o qual todos podemos sentir nos convidados, interpelados. "Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar" [1], e muito!
Vocês sentiram que a situação atual requeria um novo encontro. Eu senti o mesmo. Embora nunca tenhamos perdido o contato já passaram cinco anos desde o último encontro geral, não é verdade? Durante este tempo aconteceram muitas coisas; muitas coisas mudaram. São mudanças que marcam pontos de não retorno, pontos de inflexão, encruzilhadas em que a humanidade deve escolher. São necessários novos momentos de encontro, discernimento e ação conjunta. Cada pessoa, cada organização, cada país e o mundo inteiro necessitam de procurar estes momentos para refletir, discernir e escolher. Porque voltar aos esquemas anteriores seria verdadeiramente suicida e se me permitem forçar a nota, ecocida e genocida.
Nestes meses, muitas coisas que vocês denunciaram tornaram-se totalmente evidentes. A pandemia veio pôr a descoberto as desigualdades sociais que afetam os nossos povos e expôs (sem pedir licença ou desculpa) a angustiante situação de tantos irmãos e irmãs, uma situação que tantos mecanismos de pós-verdade não conseguiram ocultar.
Muitas coisas que dávamos por certas ruíram como um castelo de cartas. Experimentámos como, de um dia para outro, o nosso modo de vida se pode alterar drasticamente, impedindo-nos, por exemplo, de ver os nossos familiares, companheiros e amigos. Em muitos países, os Estado reagiram. Escutaram a ciência e conseguiram impor limites para garantir o bem comum e travar, pelo menos por um tempo, essa "engrenagem gigantesca" que funciona de forma quase automática e em que os povos e as pessoas são simples peças [2].
Todos sofremos a dor do confinamento, mas a vocês, como sempre, coube-lhes a pior parte: nos bairros que carecem de infraestruturas básicas (em que vivem muitos de vocês e milhões e milhões de pessoas) é difícil ficar em casa, não só por não haver todos os meios necessários para assegurar as medidas mínimas de cuidado e proteção, mas também simplesmente porque a casa é o bairro. Os migrantes, os indocumentados, os trabalhadores informais sem salários fixos viram-se privados, em muitos casos, de qualquer ajuda estatal e impedidos de realizar as suas tarefas habituais, agravando assim a sua já tão dolorosa pobreza. Uma das expressões desta cultura da indiferença é que este terço sofredor do nosso mundo não parece revestir-se de interesse suficiente para os grandes meios de comunicação e os opinion makers. Permanece escondido, encolhido.
Quero referir-me também a uma pandemia silenciosa que, desde há anos, afeta crianças, adolescentes e jovens de todas as classes sociais e que, no meu entender, durante este tempo de isolamento se acentuou ainda mais. Trata-se do stress e da ansiedade crônica, associados a diversos fatores como a hiperconetividade, a desorientação e a falta de perspectivas de futuro, que se agravam pela falta de contacto real com os outros (famílias, escolas, centros desportivos, igrejas, paróquias); em última análise, a falta de contato real com os amigos, porque a amizade é a forma em que o amor ressurge sempre.
É evidente que a tecnologia pode ser um instrumento de bem, e é um instrumento de bem que permite diálogos como este e tantas outras coisas, mas nunca pode substituir o contato entre as pessoas, nunca pode substituir uma comunidade na qual nos podemos enraizar e fazer com que a nossa vida se torne fecunda.
E falando de pandemia, não podemos deixar de nos questionar sobre o flagelo da crise alimentar. Apesar dos avanços da biotecnologia, milhões de pessoas foram privadas de alimentos, embora estes estejam disponíveis. Este ano, mais 20 milhões de pessoas foram arrastadas para níveis extremos de insegurança alimentar. A indigência grave multiplicou-se. O preço dos alimentos aumentou numa percentagem altíssima. Os números da fome são terríveis e penso, por exemplo, em países como a Síria, o Haiti, o Congo, o Senegal, o Iemen ou o Sudão do Sul. Contudo, a fome faz-se sentir igualmente em muitos outros países do mundo pobre e, não raras vezes, também no mundo rico. É possível que o número anual de mortes por causas ligadas à fome possa exceder as provocadas pela COVID [3] . Mas isso não é notícia. Isso não gera empatia.
Quero agradecer-lhes por terem sentido como vossa a dor dos outros. Vocês sabem mostrar o rosto da verdadeira humanidade; a humanidade que não se constrói virando as costas ao sofrimento de quem está ao lado, mas sim no reconhecimento paciente, comprometido e muitas vezes até doloroso de que o outro é meu irmão (cfr. Lc. 10, 25-37) e que as suas dores, as suas alegrias e os seus sofrimentos são também os meus (cfr. GS 1). Ignorar quem está caído é ignorar a nossa própria humanidade que clama em cada irmão nosso.
Cristãos e não cristãos, vocês responderam a Jesus que, perante o povo faminto, disse aos seus discípulos: deem-lhes vocês de comer. E onde havia escassez, o milagre da multiplicação repetiu-se em vocês que lutaram incansavelmente para que não faltasse o pão a ninguém (cfr. Mt. 14, 13-21). Obrigado!
Tal como os médicos, enfermeiros e pessoal de saúde nas trincheiras sanitárias, vocês colocaram o vosso corpo na trincheira dos bairros marginais. Tenho presente muitos “mártires", entre aspas, dessa solidariedade de quem tive conhecimento por vosso intermédio. O Senhor saberá recompensá-los.
Se todos os que por amor lutaram juntos contra a pandemia pudessem também sonhar juntos um mundo novo, que diferente seria tudo! Sonhar juntos.
Vocês são, como vos disse na carta que vos enviei no ano passado [4], um verdadeiro exército invisível; são parte fundamental dessa humanidade que luta pela vida contra um sistema de morte. Nessa entrega vejo o Senhor que se faz presente no meio de nós para nos oferecer o seu Reino. Jesus, quando nos apresentou os critérios segundo os quais seremos julgados (Mt. 25), disse-nos que a salvação estava em cuidar dos famintos, dos enfermos, dos presos, dos estrangeiros, em suma, em reconhecê-lo e servi-lo a Ele em toda a humanidade sofredora. Por isso é com confiança que vos digo: «felizes os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados» (Mt. 5, 6); «felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt. 5, 9).
Queremos que essa bem-aventurança se amplie, permeie e purifique cada recanto e cada espaço onde a vida se encontre ameaçada. Mas acontece-nos, como povo, como comunidade, como família e mesmo como indivíduos, ter que enfrentar situações que nos paralisam, em que o horizonte desaparece e a desorientação, o medo, a impotência e a injustiça parecem apoderar-se do presente. Experimentamos também resistências às mudanças de que necessitamos e pelas quais aspiramos; resistências que são profundas, enraizadas e excedem as nossas forças e decisões. É a isto que a Doutrina Social da Igreja chamou estruturas de pecado, que somos também nós chamados a converter e que não podemos ignorar no momento de pensar na forma de agir. A mudança pessoal é necessária, mas é imprescindível também ajustar os nossos modelos socioeconômicos para que tenham um rosto humano, algo que tantos modelos perderam. E pensando nestas situações, torno-me insistente. E começo a pedir. A pedir a todos. E quero pedir a todos, em nome de Deus.
Aos grandes laboratórios que liberalizem as patentes. Tenham um gesto de humanidade e permitam que cada país, cada povo, cada ser humano tenha acesso às vacinas. Há países em que apenas três, quatro por cento dos habitantes foram vacinados.
Quero pedir em nome de Deus aos grupos financeiros e organismos internacionais de crédito que permitam aos países pobres garantir “as necessidades básicas da sua população" e perdoem as dívidas tantas vezes contraídas contra os interesses desses mesmos povos.
Quero pedir em nome de Deus às grandes empresas extrativas - mineiras, petrolíferas, florestais, imobiliárias, agronegócios - que deixem de destruir os bosques, as áreas úmidas e as montanhas, deixem de contaminar os rios e os mares, deixem de intoxicar os povos e os alimentos.
Quero pedir em nome de Deus às grandes empresas alimentares que deixem de impor estruturas monopolistas de produção e distribuição que inflacionam os preços e, no fim, ficam com o pão dos famintos.
Quero pedir em nome de Deus aos fabricantes e traficantes de armas que cessem por completo a sua atividade, uma atividade que fomenta a violência e a guerra, muitas vezes no contexto de jogos geopolíticos que custam milhões de vidas e de deslocamentos.
Quero pedir em nome de Deus aos gigantes da tecnologia que deixem de explorar a fragilidade humana, as vulnerabilidades das pessoas, para obter lucros, sem ter em conta como aumentam os discursos de ódio, o grooming, as fake news, as teorias da conspiração, a manipulação política.
Quero pedir em nome de Deus aos gigantes das telecomunicações que liberalizem o acesso aos conteúdos educativos e o intercâmbio com os professores pela internet para que as crianças pobres possam também ter acesso à educação em contextos de quarentena.
Quero pedir em nome de Deus aos meios de comunicação que acabem com a lógica da pós-verdade, a desinformação, a difamação, a calúnia e esse fascínio doentio pelo escândalo e o sórdido, que procurem contribuir para a fraternidade humana e a empatia com os mais vulneráveis.
Quero pedir em nome de Deus aos países poderosos que acabem com as agressões, bloqueios e sanções unilaterais contra qualquer país em qualquer lugar da terra. Não ao neocolonialismo. Os conflitos devem resolver-se em instâncias multilaterais como as Nações Unidas. Já vimos como terminam as intervenções, invasões e ocupações unilaterais, embora sejam feitas com os mais nobres motivos ou justificações.
Este sistema com a sua lógica implacável do lucro está a ficar fora de todo o controle humano. Chegou a hora de travar a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que nos está a conduzir ao abismo. Ainda estamos a tempo.
Aos governos em geral, aos políticos de todos os partidos quero pedir, juntamente com os pobres da terra, que representem os seus povos e trabalhem para o bem comum. Quero pedir-lhes a coragem de olhar para os seus povos, olhar as pessoas nos olhos, e a valentia de saber que o bem de um povo é muito mais do que um consenso entre as partes (cfr. Evangelii gaudium 218); tenham cuidado em não escutar apenas as elites econômicas, tantas vezes porta-vozes de ideologias superficiais que iludem os verdadeiros dilemas da humanidade. Sejam servidores dos povos que clamam por terra, casa, trabalho e uma vida boa. Essa vida boa primitiva que não é o mesmo que a “dolce vita” ou o “dolce far niente”, não. Essa vida boa humana que nos coloca em harmonia com toda a humanidade, com toda a criação.
Quero pedir também a todos os líderes religiosos que nunca usemos o Nome de Deus para fomentar guerras nem golpes de estado (cfr. Documento sobre a fraternidade humana, 2019). Mantenhamo-nos ao lado dos povos, dos trabalhadores, dos humildes e lutemos em conjunto com eles para que o desenvolvimento humano integral seja uma realidade. Construamos pontes de amor para que a voz da periferia, com o seu pranto, mas também com o seu cantar e com a sua alegria, não provoque medo, mas antes empatia no resto da sociedade.
E, portanto, não me canso de pedir.
É necessário que juntos enfrentemos os discursos populistas de intolerância, xenofobia, aporofobia (que é o ódio aos pobres) e todos os que nos levem à indiferença, à meritocracia e ao individualismo; estas narrativas apenas servirão para dividir os nossos povos e minar e neutralizar a nossa capacidade poética. A capacidade de sonharmos juntos.
Irmãs e irmãos, sonhemos juntos. E assim, ao fazer este pedido, ao vosso lado, quero também transmitir-lhes algumas reflexões sobre o futuro que devemos construir e sonhar juntos. Disse reflexões, mas talvez fosse mais apropriado dizer sonhos, porque neste momento não bastam o cérebro e as mãos, precisamos também do coração e da imaginação: precisamos de sonhar para não voltar atrás. Precisamos de utilizar essa faculdade tão sublime do ser humano que é a imaginação, esse lugar onde a inteligência, a intuição, a experiência e a memória histórica se encontram para criar, compor, aventurar e arriscar. Sonhemos juntos, porque foram precisamente os sonhos de liberdade e igualdade, justiça e dignidade, os sonhos de fraternidade que tornaram o mundo melhor. E estou convencido de que nesses sonhos se vai inserindo o sonho de Deus para todos nós, que somos seus filhos.
Sonhemos juntos, sonhem entre vocês, sonhem com outros. Saibam que são chamados a participar nos grandes processos de mudança, como afirmei na Bolívia, "o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de se organizarem e promoverem alternativas criativas". Nas vossas mãos.
Mas isso são coisas inatingíveis dirão alguns. Sim. Mas têm a capacidade de nos pôr em movimento, de nos pôr a caminho. E aí reside precisamente toda a vossa força, todo o vosso valor. Porque vocês são capazes de ir mais além das autojustificações míopes e dos convencionalismos humanos que nada conseguem senão continuar a justificar as coisas como estão. Sonhem. Sonhem juntos. Não caiam nessa resignação dura e infrutífera. O Tango exprime muito bem essa atitude: “Está tudo bem, é tudo igual. Vamo-nos encontrar no inferno afinal”. Não, não, não caiam nisso por favor.
Os sonhos são sempre perigosos para aqueles que defendem o status quo porque questionam a paralisia que o egoísmo do forte ou o conformismo do fraco querem impor. E existe aqui como que um pacto não declarado, mas inconsciente, não é verdade? O egoísmo do forte com o conformismo do fraco. Isto não pode funcionar assim. Os sonhos transcendem os limites estreitos que nos querem impor e propõem-nos novos mundos possíveis. E não estou a falar de devaneios reles que confundem viver bem com divertir-se, que não é mais do que um queimar tempo para preencher o vazio de sentido e ficar assim à mercê da primeira ideologia do mundo. Não, não é isso. É antes sonhar para esse viver bem em harmonia com toda a humanidade e com a criação.
Mas qual é um dos maiores perigos que enfrentamos hoje? Ao longo da minha vida - não tenho quinze anos e, portanto, tenho alguma experiência - pude constatar que nunca se sai igual de uma crise e desta crise pandêmica não vamos sair iguais. Ou se sai melhor ou se sai pior, mas tal como era antes não. Nunca ficaremos iguais. E hoje em dia temos que enfrentar juntos, sempre juntos, esta questão: Como vamos sair desta crise? Melhores ou piores? Queremos certamente sair melhores, mas para isso temos que quebrar as cadeias do fácil e a aceitação dócil de que não há outra alternativa, de que "este é o único sistema possível", essa resignação que nos anula e de que apenas podemos refugiar-nos no salve-se quem puder. E para isso faz falta sonhar. Preocupa-me que enquanto estamos ainda paralisados, "já há projetos em marcha para repor a mesma estrutura socioeconômica que tínhamos antes" porque... é mais fácil.
Vamos escolher o caminho difícil! Vamos sair melhores!
Em Fratelli tutti utilizei a parábola do Bom Samaritano como a representação mais clara desta opção comprometida no Evangelho. Dizia-me um amigo que a figura do "Bom Samaritano" está associada por uma certa indústria cultural a um personagem meio pateta. É a distorção causada pelo hedonismo depressivo com que se pretende neutralizar a força transformadora dos povos e, em especial, da juventude.
Sabem do que me lembro agora, juntamente com os movimentos populares, quando penso no Bom Samaritano? Sabem do que me lembro? Dos protestos pela morte de George Floyd. É óbvio que as reações deste tipo contra a injustiça social, racial ou machista podem ser manipuladas ou instrumentalizadas para maquinações políticas e manobras semelhantes; mas o essencial é que, neste caso, nesta manifestação contra essa morte, estava o Samaritano Coletivo (que não era nenhum pateta!). Esse movimento não passou ao largo quando viu a ferida da dignidade humana infligida por semelhante abuso de poder. Os movimentos populares são, além de poetas sociais, Samaritanos Coletivos.
Nestes processos há tantos jovens que sentem esperança..., mas há também muitos outros que estão tristes, que talvez para sentir algo neste mundo necessitam de recorrer às consolações baratas oferecidas pelo sistema consumista e narcotizante. E outros, é triste, mas outros optam por sair do sistema. As estatísticas dos suicídios juvenis não são publicadas em toda a sua realidade. O que vocês fazem é muito importante, mas também é importante que consigam transmitir às gerações presentes e futuras aquilo que vos faz arder o coração. Nisto têm um duplo trabalho ou responsabilidade. Continuar atentos, como o bom Samaritano, a todos os que se encontram caídos pelo caminho e, por outro lado, tentar que muitos mais se unam a este sentir: os pobres e oprimidos da terra merecem-no, a nossa casa comum exige-o.
Quero oferecer algumas pistas. A doutrina social da Igreja não possui todas as respostas, mas contém alguns princípios que podem ser úteis neste caminho para concretizar as respostas e ajudar tanto os cristãos como os não cristãos. Surpreende-me, por vezes, que sempre que falo destes princípios alguns admiram-se e então o Papa é catalogado com uma série de epítetos que se utilizam para reduzir qualquer reflexão a uma mera adjetivação degradante. Isso não me aborrece, entristece-me. Faz parte da trama da pós-verdade que procura anular qualquer busca humanista alternativa à globalização capitalista, faz parte da cultura do descarte e faz parte do paradigma tecnocrático.
Os princípios que apresento são moderados, humanos, cristãos, compilados no Compêndio elaborado pelo então Conselho Pontifício "Justiça e Paz" [5]. É um pequeno manual da Doutrina social da Igreja. E, por vezes, quando os Papas, seja eu próprio, ou Bento XVI, ou João Paulo II, dizemos alguma coisa, há pessoas que se espantam. “Onde é que ele foi buscar isto?” É a doutrina tradicional da Igreja. Há muita ignorância em relação a isto. Os princípios que apresento estão nesse livro. No capítulo Quatro. Quero esclarecer uma coisa: estão compilados neste compêndio e este compêndio foi encomendado por São João Paulo ll. Recomendo a sua leitura a vocês e a todos os líderes sociais, sindicais, religiosos, políticos e empresariais.
No Capítulo Quatro deste documento encontramos princípios como a opção preferencial pelos pobres, o destino universal dos bens, a solidariedade, a subsidiariedade, a participação, o bem comum, que são mediações concretas para plasmar a Boa Nova do Evangelho a nível social e cultural. E fico triste quando alguns irmãos da Igreja se incomodam quando recordamos estas orientações que pertencem a toda a Tradição da Igreja. Mas o Papa não pode deixar de recordar esta Doutrina, embora muitas vezes isso incomode as pessoas, porque o que está em jogo não é o Papa, mas sim o Evangelho.
E neste contexto, gostava de recuperar brevemente alguns princípios com que contamos para levar a cabo a nossa missão. Vou mencionar dois ou três, nada mais. Um é o princípio da solidariedade. A solidariedade não só como virtude moral, mas também como um princípio social, um princípio que procura enfrentar os sistemas injustos com o objetivo de construir uma cultura da solidariedade que expresse, como diz literalmente o compêndio, "uma determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum" [6].
Outro princípio consiste em estimular e promover a participação e a subsidiariedade entre movimentos e entre os povos, de forma a limitar qualquer esquema autoritário, qualquer coletivismo forçado ou qualquer modelo estadocêntrico. O bem comum não pode ser usado como desculpa para esmagar a iniciativa privada, a identidade local ou os projetos comunitários. Por isso, estes princípios promovem uma economia e uma política que reconhecem o papel dos movimentos populares, "da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, por outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo económico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional e político, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efetivo crescimento social". Isto vem no número 185 do compêndio.
Como veem, queridos irmãos, queridas irmãs, são princípios equilibrados e bem estabelecidos na doutrina social da Igreja. Com estes dois princípios creio que podemos dar o próximo passo do sonho à ação. Porque é tempo de agir.
Dizem-me muitas vezes: "Padre, estamos de acordo, mas concretamente o que devemos fazer?" Eu não tenho a resposta, por isso devemos sonhar juntos e encontrá-la em conjunto. No entanto, há medidas concretas que talvez permitam algumas mudanças significativas. São medidas que estão presentes nos vossos documentos, nas vossas intervenções, às quais prestei muita atenção e sobre as quais meditei e consultei especialistas. Em encontros anteriores, falámos da integração urbana, da agricultura familiar, da economia popular. A estas iniciativas, cuja realização exige que continuemos ainda a trabalhar juntos, gostaria de acrescentar mais duas: o salário universal e a redução do horário de trabalho.
Um rendimento básico (a RBU) ou salário universal para que cada pessoa neste mundo possa aceder aos bens mais elementares da vida. É justo lutar por uma distribuição humana destes recursos. E é tarefa dos governos estabelecer sistemas fiscais e redistributivos para que a riqueza de uma parte seja partilhada com equidade, sem que isso implique uma carga insuportável, principalmente para a classe média. Geralmente, quando há estes conflitos, é ela quem mais sofre. Não esqueçamos que as grandes fortunas atuais são fruto do trabalho, da investigação científica e da inovação técnica de milhares de homens e mulheres ao longo de gerações.
A redução da jornada de trabalho é outra possibilidade; o rendimento básico universal é uma possibilidade, a redução do horário de trabalho é outra. E há que analisá-la seriamente. No século XIX, os operários trabalhavam doze, catorze, dezesseis horas por dia. Quando conquistaram o horário de oito horas, não houve qualquer colapso, como previam alguns setores. Então, insisto, "trabalhar menos para que mais gente tenha acesso ao mercado laboral é um aspecto que precisamos de explorar com bastante urgência". Não pode haver tantas pessoas oprimidas pelo excesso de trabalho e tantas outras oprimidas pela falta de trabalho.
Considero que são medidas necessárias, mas naturalmente não suficientes. Não resolvem o problema de fundo, nem garantem o acesso a terra, casa e trabalho na quantidade e qualidade que os camponeses sem terra, as famílias sem uma casa segura e os trabalhadores precários merecem. Tampouco permitem resolver os enormes desafios ambientais que enfrentamos. Mas queria mencioná-las porque são medidas possíveis e apontariam um caminho positivo de orientação.
É bom saber que nisto não estamos sós. As Nações Unidas tentaram estabelecer algumas metas através dos chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), mas que infelizmente são desconhecidas dos nossos povos e das periferias; o que nos recorda a importância de partilhar e envolver todos nesta busca comum.
Irmãs e irmãos, estou convencido de que "o mundo se vê mais claramente a partir das periferias". Há que escutar as periferias, abrir-lhe as portas e permitir-lhes participar. Entende-se melhor o sofrimento do mundo junto dos que sofrem. Segundo a minha experiência, quando as pessoas, homens e mulheres sofreram na própria carne a injustiça, a desigualdade, o abuso de poder, as privações, a xenofobia, vejo que compreendem muito melhor o que vivem os outros e são capazes de os ajudar realisticamente a abrir caminhos de esperança. É tão importante que a vossa voz seja escutada, esteja representada em todos os lugares de tomada de decisão. Ofereçam-na como colaboração, ofereçam-na como uma certeza moral do que há a fazer. Esforcem-se para fazer ouvir a vossa voz também nesses lugares, mas por favor, não se deixem manietar nem corromper. Duas palavras que têm um significado muito profundo, de que não vou falar agora.
Reafirmemos o compromisso que assumimos na Bolívia: colocar a economia ao serviço dos povos para construir uma paz duradoura, assente na justiça social e no cuidado da Casa Comum. Continuem a promover a vossa agenda de terra, casa e trabalho. Continuem a sonhar juntos. E obrigado, obrigado mesmo, obrigado por me deixarem sonhar com vocês.
Peçamos a Deus que derrame a sua bênção sobre os nossos sonhos. Não percamos a esperança. Recordemos a promessa que Jesus fez aos seus discípulos: “Estarei sempre convosco”, e ao recordá-la, neste momento da minha vida, quero dizer-vos que também eu vou estar sempre convosco. O importante é terem consciência de que Ele está convosco. Obrigado.
[1] Fratelli tutti, 198
[2] Conf. Sollicitudo Rei Socialis, Pf. 22
[3]"O vírus da fome multiplica-se", Relatório da Oxfam de 9 de julho de 2021, com base no Global Report on Food Crises (GRFC) do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas.
[4] Carta aos Movimentos Populares, 2020
[5] Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 2004
[6] Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 193