23 Setembro 2021
“Para Bernard Sesboüé, a suposta 'infalibilidade doutrinal' das 'verdades definitivas' não o é, pois, ao contrário das verdades cujo conteúdo e sentido é a Revelação (o que foi dito, feito e recomendado por Jesus Cristo) por si só, são proposições reformáveis”, escreve Jesús Martínez Gordo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 23-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ao chegar em casa, fiquei sabendo que Bernard Sesboüé faleceu, um dos grandes teólogos do pós-concílio, um excelente conselheiro e um amigo ainda melhor. Fazia tempo que eu não tinha notícias dele. A intensa relação mantida com ele, tanto presencial quanto epistolar e por e-mail, havia decaído nestes últimos anos, até compartilhar com ele apenas alguns cumprimentos amigáveis e um pouco mais.
É hora, falei a mim mesmo, de escreve algumas linhas sobre este grande teólogo e excelente pessoa. É hora de fazer recordando algumas das muitas inquietudes comuns, dando a conhecer algo de seu rico pensamento e deixando para outros uma exposição sintética de sua enorme e rica bibliografia teológica, ademais de biográfica.
A leitura de um artigo seu sobre os leigos com serviço pastoral – antecipo seu famoso “Não tenhais medo. Os ministérios na Igreja de hoje” – foi a chave que abriu a porta de nossa relação. Isso, e uma responsabilidade pastoral que me levava três ou quatro vezes ao ano a Paris, onde fui acolhido por Bernard na casa em que ele residia, junto com outros jesuítas, na rua Monsieur.
Ali se gestou sua visita a Bilbao, no final da década de 1990, para falar dos ministérios leigos, do diaconato permanente e, particularmente, do laicato com serviço pastoral. Ali falamos extensamente sobre o meu livro “Os leigos e o futuro da Igreja. Uma revolução silenciosa” e do prólogo que amigavelmente ele escreveu. E ali tive a sorte de conhecer e falar em diferentes ocasiões também com Joseph Moingt.
Imgem: Livro de Bernard Sesboüé | Foto: Arquivo Pessoal
A ele devo meu interesse por dialogar – seguindo seu livro “História dos dogmas” – com os judeus e, com eles, com as diferentes religiões e espiritualidades com as quais o cristianismo foi se encontrando. Mas também com os greco-latinos e, a partir deles, com os distanciados e não-crentes. E, por fim, com os que eram denominados hereges, isso é, com as extrapolações ou fundamentalismos da fé, seja por excesso ou por defeito, que, não tardando muito, apareceram no seio das primeiras comunidades cristãs.
E a ele devo uma boa parte do que escrevi e disse sobre o (im)possível sacerdócio da mulher, sobre o magistério eclesial e, de maneira particular, sobre a infalibilidade e a inerrância; dois assuntos aos que, nestes últimos anos, dedicou muitas e fecundas horas de trabalho.
Talvez a melhor homenagem que posso fazer é difundir, de maneira sintética, o conteúdo de uma obra, provavelmente a mais emblemática e valente no tramo final da extensa e rica contribuição que Bernard dera: “A infalibilidade da Igreja. História e teologia”.
A Igreja, lembra Bernard Sesboüé, é portadora de uma verdade (Jesus Cristo) para a qual deve servir até o fim dos tempos, e da qual tem a garantia de que não pode errar nesta missão.
A forma de propor foi tipificada, ao longo da história, de diferentes maneiras. O teólogo francês concentra seu estudo basicamente em três: o inerrante, o indefectível e o infalível. E o faz porque está em jogo a credibilidade do magistério eclesial (a infalibilidade “não é uma invenção da Igreja Católica, mas uma referência inescapável a toda atividade e todo pensamento”) e uma relação adulta e fundada com esse magistério (é preciso evitar “a retrospecção de significados contemporâneos de vocabulário em documentos antigos”).
Atendendo a esta afirmação, Bernard Sesboüé estuda, em primeiro lugar, o que qualifica como “infalibilidades regionais” (presentes na linguagem comum, na natureza, na ciência, na lógica, na matemática, na justiça, na política, na filosofia e na história das religiões) para mostrar que o paradoxo da infalibilidade “diz respeito à parte mais profunda do homem como homem”.
E, contextualizado e “socializado” o que costuma operar de forma “infalível” na vida cotidiana, o teólogo francês expõe a autoridade com que Jesus ensinou, bem como a vontade da comunidade apostólica em manter a autenticidade da fé frente aos desvios e à entrada em cena do carisma ou dom da inerrância (ensino da verdade, fiel e sem erro) confiado à Igreja pelo Nazareno.
No primeiro milênio, observa Bernard Sesboüé, a comunidade cristã “nunca usou o termo infalibilidade para falar da Igreja, do papa ou do concílio”, mas sim de “inerrância”, particularmente simbolizada por seu centro, a Igreja da Roma, que “ele nunca errou” nem falhou na sua missão de transmitir a fé.
Com a reforma gregoriana (já no segundo milênio) abre-se o caminho para as futuras teses conciliaristas, a princípio, pela defesa da inerrância da Igreja e da falibilidade individual dos pontífices. As coisas começaram a mudar a partir da segunda metade do século XII, quando teólogos começaram a argumentar que a inerrância da Igreja era expressa com autoridade no Papa e levantava a possível irreformabilidade de uma decisão papal. São eles que lançam as bases para a doutrina da infalibilidade papal.
Ao longo das crises franciscana (séc. XIII-XIV), conciliarista (XV), protestante (XVI) e jansenista (XVII), testemunhou-se um intenso tratamento que culminou na definição solene da infalibilidade papal no Vaticano I (1870). A partir daí, uma nova era se abriu, marcada por sua aplicação e sua recuperação colegial no Vaticano II.
Bernard Sesboüé, após estudar a recepção do Vaticano II, fecha sua obra com um “dossiê” sobre a Inquisição, a condenação de Galileu e o empréstimo com juros, bem como com uma análise do tema no diálogo ecumênico.
Existem três pontos de sua contribuição que merecem ser destacados de maneira particular.
O primeiro, referindo-se ao uso da infalibilidade papal: “Felizmente, a Igreja tem a definição solene de infalibilidade pontifícia, e não é menos apreciado que ela praticamente não a usa”.
A segunda, concernente à “inflação dogmática” ou extensão da infalibilidade ao magistério autêntico; um comportamento muito comum, especialmente no pontificado de João Paulo II, e uma tentação que ele se propõe superar por meio de uma expressão mais pastoral (e, portanto, mais humilde e modesta) da verdade que Cristo confiou à Igreja.
E o terceiro, ocupou-se em analisar a extensão da infalibilidade às verdades ligadas, por “razões lógicas” ou “históricas”, à Revelação (isto é, ao que foi dito, feito e recomendado por Jesus) e que são necessárias à sua conservação.
A questão tem uma relevância indiscutível porque é a que dá origem ao debate contemporâneo sobre as verdades ditas “definitivas”, uma das quais é – como proclamou Papa Wojtyla – a impossibilidade de as mulheres terem acesso ao sacerdócio ministerial.
É no estudo desta questão que se encontra uma das teses mais importantes de sua contribuição teológica: a suposta “infalibilidade doutrinal” das “verdades definitivas” não o é, pois, ao contrário das verdades cujo conteúdo e sentido é a Revelação (o que foi dito, feito e recomendado por Jesus Cristo) por si só, são proposições reformáveis.
Há problemas, argumenta ele, em que é essencial a intervenção de uma autoridade “inerrante” que, por ter a última palavra, faz cessar definitivamente a discussão. Quem toma a decisão que tomou sabe que, ao cumpri-la, sua salvação não está perigo.
O fato de que, às vezes, ela seja apresentada em uma certa auréola de “infalibilidade doutrinal”, obedece à vontade de mostrar que a decisão pontifícia é inapelável; porém, “stricto sensu”, é inerrante e, por isso, reformável no tempo.
“A infalibilidade da Igreja. História e teologia” é o “capolavoro” (a obra mestre) de um grande teólogo que teve a virtude de escrever e pensar respeitando as regras do jogo, no campo fixado e com o “árbitro” designado. E que o fez com a convicção de ter razões de sobra para ganhar a partida a outras interpretações mais usuais porque entendeu que a sua é uma leitura teológica consistente.
Talvez por isso, não somente nos encontramos com uma obra madura, mas também com um livro e com um pensamento referencial tanto para hoje como para o futuro. Por isso, ainda que não somente por isso, sou particularmente agradecido a Bernard Sesboüé, um dos grandes teólogos do pós-concílio, ademais de conselheiro e amigo.
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Bernard Sesboüé, um dos grandes teólogos pós-conciliares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU