Jogada para lá e para cá como um adjetivo qualquer, a palavra “mística” é, muitas vezes, usada e compreendida de forma errada. Muito mais que um simples adjetivo para caracterizar algo “divino”, a mística é uma experiência, seja ela de natureza religiosa ou religiosa-filosófica, iluminadora. “São janelas que se abrem, permitindo um novo respiro, no lugar mesmo onde o sujeito se situa”, afirma o teólogo Faustino Teixeira em entrevista à IHU On-Line.
A reportagem é de André Cardoso, estagiário e aluno do curso de Jornalismo da Unisinos.
Essas experiências podem ser compreendidas de diversas formas, inclusive através da arte e, principalmente, através da espiritualidade. Para promover o debate sobre esse caminho, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU está promovendo o curso livre Mística e Espiritualidade. Ministrado por Faustino Teixeira, o curso abordará, primeiramente, a espiritualidade de três músicos brasileiros:
Em seguida, alguns clássicos da mística cristã, como
O primeiro encontro será realizado na próxima quinta-feira, 16-09-2021, com o tema “O mistério da tessitura da vida: a espiritualidade de Gilberto Gil”.
Todas as aulas serão transmitidas pela página eletrônica do IHU, no canal do IHU no YouTube e nas redes sociais. Posteriormente, elas ficarão gravadas para quem quiser assisti-las.
A mística em Teresa de Ávila e Thomas Merton
A Revista IHU On-Line já dedicou uma edição, intitulada A mística nupcial, para discutir a mística e a conexão de dois nomes importantes da espiritualidade cristã: santa Teresa de Ávila, nascida em 1515, e o escritor Thomas Merton, nascido em 1915. Separados por séculos de existência, há algo que os conecta, segundo Faustino Teixeira, em entrevista à edição: a força e a centralidade do amor na experiência contemplativa. Para a santa, “os dois fundamentais imperativos da união mística” são “o amor a Deus e ao próximo”. Merton, crê que “a vida no amor constitui o ápice de seu itinerário espiritual e contemplativo”.
Em Teresa de Ávila, a mística se mistura com a poética, que têm muito em comum, principalmente na busca pelo mistério, pelo que está além da mente. “Ela vai expressar o que está mais recôndito nos sentimentos e pensamentos do homem, atravessa esse umbral entre a lógica e a razão que a mística também transpõe”, pontua a psicóloga Luciana Barbosa naquela edição. No entanto, Teresa não se considerava poetiza, mas Luciana a considera. “Mesmo ela não se considerando poeta, ela de fato o é. O estado místico pode avivar ou apontar certo numen poético, porém ele não pode criá-lo”.
Já a integrante da Companhia de Santa Teresa de Jesus, Giselle Gómez, diz que Teresa viveu o processo de consciência da própria identidade. “Ela foi capaz de ouvir a si mesma, de aprender a confrontar-se com aquilo que supõe a mudança e de ir construindo outra maneira de ser mulher, até chegar a sustentar afirmações com relação ao papel das mulheres que, por serem consideradas inadequadas, foram censuradas em vários de seus escritos”.
Saudades de Deus
Vejam-te meus olhos,
Doce e bom Senhor;
Vejam-te meus olhos,
E morra eu de amor.
Olhe quem quiser,
Rosas e jasmins:
Que eu, com a tua vista,
Verei mil jardins.
Flor de serafins,
Jesus nazareno,
Vejam-te meus olhos,
E morra eu sereno.
Sem tal companhia
Vejo-me cativo.
Sem ti, minha vida,
É morte o que eu vivo.
Este meu desterro
Quando terá fim?
Vejam-te meus olhos
E morra eu, enfim.
Fonte: Teresa de Jesus. Obras completas. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 1029.
Merton, por outro lado, estava inserido no contexto da Guerra Fria em um contexto de barbárie, confrontos, mas também na luta pela paz, direitos civis e contracultura. Como norte-americano, viveu as décadas de 1950 e 1960 intensamente, e, como diz o teólogo Sibélius Cefas Pereira, foi um ativista social impulsionado pela sua espiritualidade. “Não apenas alertou para esta necessidade como engajou-se efetivamente nessa luta através de seus textos, foi, poderíamos afirmar, um ativista social impulsionado por sua rica e sólida espiritualidade”.
Nos seus escritos, há uma ideia de contemplação humana e existencial que é característica e quase única. “Trata-se de uma perspectiva contemplativa humana e existencial, porque inseparável da própria vida; realista, na medida em que convoca para uma maturidade espiritual que não nega as lutas; também uma perspectiva dinâmica, visto que não há modelos prontos nem trajetos predefinidos, a experiência vai se construindo e se refazendo”, finaliza Pereira.
Ser eremita
Venho à solidão
para ouvir a palavra de Deus,
para manter-me na expectativa
de uma realização cristã,
para compreender a mim mesmo
em relação a uma comunidade
que duvida de si e se questiona,
e da qual tanto faço parte.
Não venho à solidão para
atingir os ´píncaros da contemplação`,
mas para descobrir penosamente,
para mim mesmo e para meus irmãos,
a verdadeira dimensão escatológica
de nosso chamado.
Fonte: Thomas Merton. Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 299.
Mesmo com as mudanças drásticas da sociedade atual em comparação com a que ambos viviam em suas respectivas épocas, os pensamentos deles ainda ressoam e podem ser importantes para os homens e mulheres contemporâneos. Para o pesquisador italiano Marco Vannini, as mensagens de ambos ainda são relevantes por causa do tempo em que vivemos. “Não vivemos em um tempo em que a interioridade é obscurecida e quase cancelada pela exterioridade, ou, por assim dizer em termos mais filosóficos, a essência é obscurecida e quase cancelada pelas relações”.
O grande legado de ambos, para Faustino Teixeira, é “uma convocação ao mundo interior, ao desapego, à desaceleração, de forma a afinar os sentidos para poder captar o canto da criação”.