Em fevereiro de 2020, a sua “lição” sobre o Cântico dos Cânticos do palco do Teatro Ariston provocou polêmicas clamorosas. Alguns exegetas um pouco sensíveis demais haviam ficado ressentidos porque um comediante havia ousado recorrer ao livro mais sugestivo, complicado e embaraçoso das Escrituras para celebrar em Sanremo, talvez de uma forma um tanto desordenada, mas muito eficaz e envolvente, o mistério dos corpos que tocam o abismo e o céu da eternidade na polifonia da ternura nupcial.
O comentário é de Luciano Moia, diretor do jornal Avvenire, 03-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Festival de Veneza, Benigni recorreu ao canto XXVII do "Paraíso" para estabelecer um paralelo surpreendente entre o seu amor pela esposa, Nicoletta Braschi, e o de Dante por Beatriz.
E, assim como o sumo poeta diz que a sua mulher é aquela que “emparaísa a minha mente”, assim o ator e diretor confessou que Nicoletta está sempre no ápice dos seus pensamentos, é aquela que levanta a sua alma às alegrias do Paraíso.
Uma declaração de amor e de gratidão, belíssima, profunda, surpreendente e corajosa. Aos 69 anos, com uma extraordinária carreira no qual há 28 como ator e oito como diretor, um prêmio Oscar e agora também um Leão de Ouro pela carreira, Benigni não teve nenhum constrangimento, voltando o olhar para a esposa, para contar que conhece “apenas um modo para medir o tempo: contigo ou sem ti. Sempre foi assim”. O amor, o tempo, a partilha, a beleza de desejar e de se sentir desejado como dom grande e denso de significados.
Haveria aí o bastante para revitalizar certos percursos de preparação para o casamento em que, muito frequentemente, presos em fórmulas asfixiantes, custamos a soletrar o alfabeto dos afetos de forma envolvente e fascinante. Aquela maravilhosa paleta de palavras, de gestos, de cumplicidades que se tornam o pão de cada dia, que dão sentido e profundidade ao objetivo de estender ao infinito uma história de amor.
Trata-se de uma esperança que, diante das adversidades e das fragilidades de cada dia, às vezes acaba sendo tão ousada a ponto de parecer deslocada. Muitas vezes, tivemos medo de ousar o infinito do amor e apagamos – infelizmente também em muitos jovens – a esperança de prolongar no tempo a magia e a beleza da pertença na gratuidade e na dedicação recíproca. Quantos fracassos nascem por medo ou incapacidade de elevar o olhar?
Benigni, ao contrário, revelou que ele e Nicoletta fizeram e fazem tudo juntos. Incluindo 40 anos de trabalho ininterrupto, produções e interpretações cinematográficas. “Não posso te dedicar este prémio. É teu. Eu pego o rabo [da estátua do leão] para mover a alegria. As asas, sobretudo, são tuas. Se algo decolou foi graças a ti, ao teu talento, ao teu mistério, ao teu fascínio, à tua beleza, à tua feminilidade, um mistério sem fim.”
Nesse ponto, ele poderia ter citado a Carta aos Efésios: “Este mistério é grande”. Teria sido coerente, e São Paulo certamente não teria se incomodado.
Em vez disso, o ator toscano surpreendentemente apontou para o seu “colega” Groucho Marx, o grande comediante nova-iorquino: “Os homens são mulheres que não aguentaram”. Uma repentina mudança de registro para nos dizer que aquele amor que, na vida conjugal, continua nos falando, nos emocionando, nos envolvendo nasce de um dom que nos supera e que, muitas vezes, custamos a compreender.
Assim, para evitar impulsos líricos que nos pareceriam deslocados, decidimos baixar o tom e nos refugiar na mediocridade. A aparente hipérbole de Benigni – “Tu emanas luz, amor à primeira vista, à última vista, à eterna vista” – solicita olhares capazes de suportar o sentido misterioso, mais profundo e radical do amor entre homem e mulher, dispostos a desafiar o tempo e o espaço, palavras de uma linguagem na qual alma e corpo se fundem para conectar o humano ao divino.
Não devemos ter medo de falar sobre ele, de esperá-lo, de ousá-lo. Porque, como demonstra o Cântico dos Cânticos, nenhuma catequese, senão a do amor, pode ser tão potente e tão envolvente para nos aproximar do Mistério, que é o amor supremo.
Obrigado, Benigni, por ter nos lembrado disso.