03 Setembro 2021
“O argumento para matar terroristas como alvos marcados, como a pena de morte doméstica, é irreconciliável com os ensinamentos de Francisco. Nas palavras do próprio Santo Padre: 'É necessário, portanto, reafirmar que por mais grave que seja o crime cometido, a pena de morte é inadmissível porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa'. Se 'vamos caçá-los e fazê-los pagar' significa que Biden tem em mente a matança de supostos terroristas, como sugere o mais recente ataque de drone. Não há base moral para tal ação no pensamento católico contemporâneo”, escreve Christian Braun, pesquisador da Radboud University, nos Países Baixos, e diretor do Conselho de Abordagens Cristãs para Defesa e Desarmamento, em artigo publicado por America, 01-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
No funeral dos 13 funcionários estadunidenses, que estavam entre as 200 outras pessoas mortas no ataque terrorista sobre o aeroporto de Cabul em 26 de agosto, o presidente Joe Biden fez um discurso no qual enviara uma mensagem direta aos perpetradores: “Aos responsáveis por este ataque, assim como qualquer um que deseja o mal da América, saibam disto: não perdoaremos. Não esqueceremos. Nós vamos caçá-los e fazê-los pagar. Eu defenderei nossos interesses e nosso povo com qualquer medida que esteja a meu controle”.
Com essas poderosas palavras, Biden vociferou sua intenção de punir aqueles responsáveis. E os puniu. Os militares estadunidenses atacaram com um drone, em 27 de agosto, na província de Nangarhar, e mataram dois membros do Daesh-K, o grupo que reivindicou a autoria do ataque ao aeroporto. Outro ataque a drone, em 29 de agosto, teve como alvo um veículo contendo explosivo e um indeterminado número de ocupantes.
Embora seja compreensível o desejo de responder ao ataque terrorista, a forma que Biden expressou seu pensamento levanta questões morais. Ele dá atenção renovada à prática de assassinatos seletivos, sobre a qual muita tinta foi derramada durante as presidências de Donald Trump e Barack Obama.
Biden, o segundo presidente católico dos EUA, tem orgulho de sua fé. Ele citou Santo Agostinho em seu discurso inaugural e colocou uma foto do Papa Francisco no Salão Oval. Claramente, os argumentos religiosos são importantes para ele, conforme demonstrado pela citação bíblica que ele fez no discurso da semana passada: “Aqueles que serviram através dos tempos se inspiraram no Livro de Isaías, quando o Senhor diz: ‘Quem devo enviar? Quem deve ir por nós?' E os militares americanos já respondem há muito tempo. ‘Eis-me aqui. Envia-me, senhor’”.
Portanto, é apropriado perguntar: existe uma base moral para assassinatos coletivos? A teoria da guerra justa pode ajudar a responder a essa pergunta. A maioria dos pensadores contemporâneos da guerra justa diz que é difícil distinguir entre retribuição (que é moralmente justificável) e vingança (que é moralmente indefensável). O primeiro visa infligir uma punição justa para um ato de violência, restabelecendo o equilíbrio da justiça que o ato de má conduta interrompeu; o último, nas palavras do filósofo jurídico David Luban, equivale a “um convite aberto ao castigo egoísta, injusto, excessivamente severo e excessivo”.
Se aceitarmos que a punição retributiva daqueles que planejaram o ataque ao aeroporto de Cabul é uma causa justa, como seria uma punição justa? Se considerarmos o uso da força letal, que Biden implicitamente sugeriu em suas observações e sobre o qual prosseguiu autorizando o ataque a drone, a pena de morte vem à mente como um paralelo do sistema de justiça criminal nacional. A principal diferença, é claro, é que em ataques militares direcionados os terroristas são executados sem terem tido a chance de serem julgados.
Existe uma base moral no ensino da Igreja contemporânea para assassinar seletivamente, supostamente terroristas, por retribuição? A resposta é não. Em contraste com o pensamento clássico da guerra justa, conforme resumido sucintamente por São Tomás de Aquino, a retribuição não é mais considerada uma causa justa para a guerra. O ensino católico de hoje sobre guerra e paz começa com uma “presunção contra a guerra”, como escreveram os bispos dos Estados Unidos em sua carta pastoral “O Desafio da Paz” em 1983. Somente se uma série de critérios restritivos de guerra justa forem cumpridos, o uso de força armada seria moralmente justificável. Embora a Igreja continue a aceitar a justa causa da autodefesa e esteja aberta à estrutura da “responsabilidade de proteger”, o ensino contemporâneo não sanciona o uso da força armada para restabelecer o equilíbrio da justiça após atos de transgressão. No contexto de drones armados, muitas vezes a arma escolhida para assassinatos seletivos, os bispos dos EUA limitaram explicitamente a moralidade de seu uso à justa causa de autodefesa.
Além disso, e o mais interessante em relação à prática de assassinatos seletivos, o papa Francisco declarou recentemente que a pena de morte não é mais moralmente justificável. Os papas modernos até Francisco, muitas vezes percebidos publicamente como opostos à pena de morte, não descartavam a pena de morte em princípio. Francisco, em contraste, afirmou firmemente que não há base moral para a pena de morte; assim, o argumento para matar terroristas como alvos marcados, como a pena de morte doméstica, é irreconciliável com os ensinamentos de Francisco. Nas palavras do próprio Santo Padre: “É necessário, portanto, reafirmar que por mais grave que seja o crime cometido, a pena de morte é inadmissível porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa”.
Se “vamos caçá-los e fazê-los pagar” significa que Biden tem em mente a matança de supostos terroristas, como sugere o mais recente ataque de drone. Não há base moral para tal ação no pensamento católico contemporâneo. Se o presidente deseja restabelecer o equilíbrio da justiça que os terroristas perturbaram com o ataque ao aeroporto, os terroristas devem ser capturados e levados ao tribunal. Caso contrário, o louvável desejo de justiça corre o risco de degenerar em atos de vingança. É por isso que Santo Agostinho, o santo que o senhor Biden tem grande estima, advertiu contra ceder à “sede cruel de vingança” como uma das motivações para a guerra.
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“Nós vamos caçá-los e fazê-los pagar”. A vingança violenta contra terroristas é moral? A teoria da guerra justa diz que não - Instituto Humanitas Unisinos - IHU