01 Setembro 2021
“O capitalismo digital é a nova face do colonialismo, cumprindo com perfeição a função de penetração não só econômica, mas também cultural e militar, própria do imperialismo”, escreve Javier Tolcachier, pesquisador no Centro Mundial de Estudos Humanistas e comunicador da agência internacional de notícias Pressenza, em artigo publicado por Rebelión, 31-08-2021. A tradução é do Cepat.
Como se sabe, o capitalismo passa por uma acelerada fase de reconversão tecnológica, cujo principal elemento é a digitalização.
O uso de grandes quantidades de dados, a inteligência artificial, a multiplicação de plataformas em todas as áreas da atividade humana, o teletrabalho, o comércio digital, a computação em nuvem, o entretenimento online, a aplicação em massa da robótica na produção e a internet das coisas são alguns dos fatores visíveis dessa nova revolução industrial.
Embora a conectividade à internet, que é o suporte básico dessas transformações, ainda não alcance toda a população, o crescimento é rasante. Por exemplo, na América Latina e o Caribe, uma ampla região e com relativo atraso na infraestrutura de telecomunicação em comparação aos Estados Unidos, Europa, Ásia-Pacífico e Eurásia, a quantidade de pessoas conectadas à rede duplicou entre 2010 e 2019, alcançando 67%. Também cresceu a cobertura 4G e a velocidade da conexão. A maioria das empresas já está conectada à internet, um grande número utiliza banco eletrônico, utiliza a rede na cadeia de suprimentos e muitas começaram a implantar canais de venda virtuais.
Isso nos fala de uma tendência irreversível. Estamos em pleno desenvolvimento da era digital [1].
Tudo isso foi acelerado no decurso da pandemia. A presença empresarial na internet, o comércio eletrônico, o uso de plataformas de educação e o trabalho a distância tiveram um forte crescimento. Com isso, aumentou o poder concentrado das corporações digitais.
Como demonstração, alguns dados: no segundo trimestre de 2021 e em termos interanuais, a Apple vendeu 50% a mais de telefones iPhone, Amazon e Microsoft também aumentaram seus lucros em uma porcentagem semelhante, o Facebook dobrou os seus lucros e Alphabet (proprietária do Google) multiplicou por 2,6.
Longe de ficarem confinadas a seus negócios originais, essas corporações com matriz nos Estados Unidos diversificaram fortemente seus interesses, abarcando a produção cinematográfica, imprensa, viagens espaciais, automóveis autônomos e realidade aumentada, entre muitos outros.
Além da concentração econômica, é muito preocupante a posição central de tais empresas no relato dominante, controlando as principais vias de comunicação na internet.
Por outro lado, a extrema pobreza, que havia diminuído em nível mundial cerca de 1% ao ano, entre 1990 a 2015, e que já vinha desacelerando sua queda, volta a se aprofundar. Um em cada dez indivíduos no planeta passa fome e milhões de pessoas são lançadas no desemprego e na precarização trabalhista.
Na América Latina, o emprego no setor de tecnologias da informação e a comunicação, que prometiam compensar a perda de postos de trabalho pela automação é proporcionalmente baixo e representa apenas 1,6% do emprego masculino. No caso das mulheres, mais uma vez discriminadas, essa participação é muito menor e corresponde a apenas 0,9%. A diferença entre os estratos populacionais condiciona o direito à educação e aprofunda as desigualdades socioeconômicas.
Em síntese, as supostas vantagens da economia digital não diminuíram a desigualdade preexistente, ao contrário, a aprofundam.
Apesar de que os rostos conhecidos (Zuckerberg, Bezos, Gates, Page, Brin ou os herdeiros de Jobs) costumam ser parceiros majoritários de cada um dos empórios digitais, essas empresas têm como grandes acionistas os principais fundos de investimento, ou seja, o setor especulativo.
Para ilustrar, mais de 80% das ações do Facebook estão nas mãos de investidores institucionais, entre os quais estão os principais fundos de investimento (Vanguard Group, Black Rock, FMR, Price (T. Rowe) Associates, State Street Corp., etc.).
No caso da Alphabet, a porcentagem de participação institucional é de 67%, semelhante ao pacote da Amazon (cerca de 60%), constituído pelos mesmos atores especulativos.
A economia especulativa, longe de ter diminuído após o estouro da bolha em 2007-2008, atualmente atinge, embora seja difícil estimar, cerca de 20 vezes o PIB mundial. A sobreacumulação de capital, a continuada emissão de moedas sem lastro em dólar, as baixas taxas de juros e como contrapartida a acumulação de dívida privada e pública, alimentam o negócio especulativo.
O reinvestimento produtivo continuou o seu declínio, diminuindo a oferta de emprego formal para as grandes maiorias. Calcula-se que em apenas dois anos (2017-2019) o investimento estrangeiro direto caiu para a metade.
Neste contexto de parasitismo financeiro, a economia digital se oferece como investimento possível, buscando sair da crise de rentabilidade em que o capitalismo industrial já está imerso há várias décadas. Essa rentabilidade do campo digital se explica por motivos convergentes, entre eles, o baixo valor dos impostos que as empresas assumem (localizadas formalmente em guaridas fiscais, somado à evasão de impostos dos estados nacionais onde operam), a pouca representação sindical no âmbito digital, a absorção de recursos intelectuais e financeiros públicos de pesquisa, o uso dos dados pessoais como matéria-prima gratuita, a destruição da concorrência e a desregulamentação, na prática, do ambiental virtual.
Por outro lado, o capitalismo em sua busca de crescimento ilimitado atingiu limites físicos indiscutíveis, produzindo fortes desequilíbrios nos ecossistemas vitais. Assim, a digitalização e o extrativismo de bens não tangíveis como os dados, aparecem falsamente como parte de um novo ciclo de reconversão “verde” da economia. Falsamente, porque o consumismo e a acumulação que acarretam seguem tendo como base material os recursos naturais finitos do planeta.
Após o ciclo de instalação neoliberal da globalização, com a consequente destruição dos sistemas públicos e o enfraquecimento dos estados nacionais, o mapa comercial foi estendido a todo o planeta, promovendo escalas mundiais para os negócios. Desse modo, as corporações aproveitam o potencial de um mercado planetário a partir de sua habitual irresponsabilidade social, deixando que os estados fiquem responsáveis por administrar os problemas que deixam em sua passagem.
O outro recurso fundamental do capitalismo digital é a informação. Desse modo, as corporações transnacionais estabelecem um sistema de vigilância e inteligência globalizado, que aproveita a interferência das plataformas digitais na vida pessoal, obviamente com a finalidade de manter as maiorias ocupadas e controladas, objetivo que, apesar de tudo, não conseguem.
Outro propósito no desenvolvimento de um capitalismo digitalizado é o de manter e aprofundar as distâncias tecnológicas entre o centro e as periferias mundiais e, consequentemente, a dependência do Sul global. No entanto, a OTAN digital comandada pelos Estados Unidos, com seus parceiros menores Europa e Japão, tem hoje seu contrapeso na Muralha chinesa digital, que conseguiu superar parcialmente, assim como vários de seus vizinhos asiáticos, a situação de subdesenvolvimento tecnológico predominante anteriormente.
Mesmo assim, as enormes desigualdades continuam subsistindo. Segundo a CEPAL, enquanto o índice de desenvolvimento das indústrias digitais (composto por fatores mistos [2]) nos Estados Unidos é de 43% e na Europa Ocidental de 36%, na América Latina e o Caribe, África e Ásia Pacífico chega a 18%.
Por outro lado, a infraestrutura permanece com os traços imperiais de seus inícios. Quatro dos 13 servidores-raiz da internet (DNS) permanecem em solo estadunidense e 10 deles são controlados por empresas, universidades e instituições militares ou estatais dos Estados Unidos. Além disso, o inglês continua sendo o idioma utilizado para seus protocolos, linguagens de programação e cada uma das partes constitutivas da internet.
Desse modo, o capitalismo digital é a nova face do colonialismo, cumprindo com perfeição a função de penetração não só econômica, mas também cultural e militar, própria do imperialismo.
Já há tempo, as corporações e um grande número de ONGs vêm intervindo em instâncias e organismos multilaterais em aspectos teoricamente reservados aos Estados e seus governos. Isso é particularmente certo no campo digital, cuja governança está nas mãos de um sistema multissetorial ou de “múltiplas partes interessadas”.
Os envolvidos são a comunidade técnica, o setor privado formado por empresas, os governos, a academia e as assim chamadas organizações da sociedade civil (ou organizações não governamentais), em alguns casos financiadas parcial ou totalmente pelas próprias transnacionais para operar publicamente em favor de seu discurso.
A influência privada, que carece de qualquer legitimação democrática, ameaça cooptar o sistema político de relações internacionais por meio de uma estratégia que corresponde com precisão aos delineamentos do Fórum Econômico Mundial (Davos). Sob o manto do termo “cooperação digital”, essa iniciativa poderia abrir caminho para a elaboração de políticas vinculantes, através da conversão de um organismo de consultas de múltiplas partes interessadas em um de “governança multipartite”.
Tal organismo de alto nível está sendo impulsionado através de um processo lançado pela própria Secretaria Geral das Nações Unidas, que reúne como fundamento as recomendações de um Painel de Alto Nível sobre a Cooperação Digital constituído com o mesmo sistema multipartite anterior e cuja vice-presidência é significativamente ostentada por Melinda Gates, da Fundação homônima, e Jack Ma, fundador da corporação chinesa Alibaba.
É visível que se as corporações obtêm influência decisiva sobre as normas e regras que regem os espaços digitais, pouco poderá ser feito para regulamentá-los a partir do interesse dos povos. Além disso, na medida em que a digitalização avança ainda mais sobre cada área da atividade humana, a influência empresarial se projetará sobre elas, como hoje já acontece nos campos da alimentação, comércio digital e conflito ambiental, para citar apenas alguns exemplos.
Enquanto a digitalização e o poder corporativo avançam, as instituições estatais e os movimentos sociais reagem a essas novas realidades com relativa lentidão, sem conseguir se antecipar a cenários futuros. O que está claro é que o poder de uma parte sobre o todo não solucionará nenhum dos problemas das grandes maiorias.
Sendo assim, é fundamental instalar a problemática digital como bandeira de luta dos povos, sensibilizar adequadamente sobre os seus impactos, esclarecer posições políticas coletivas nos movimentos para lhe dar dimensão territorial e exigir novos direitos nas políticas públicas, em conformidade com o novo cenário.
A questão ultrapassou amplamente a esfera do ativismo digital. É imprescindível que os cidadãos assumam as cartas no assunto. Trata-se do futuro comum.
1. https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46766/S2000991_es.pdf
2. O índice de desenvolvimento de indústrias digitais é composto pelo seguinte: 1) o peso econômico das indústrias digitais (medido em termos da soma de vendas brutas das indústrias digitais e de telecomunicações e o gasto da economia em software) em relação ao Produto Interno Bruto; 2) a penetração de conexões da Internet das Coisas (entendida como indicador do desenvolvimento de aplicações verticais); 3) o nível de exportações de produtos e serviços de alta tecnologia e 4) a produção local de conteúdo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Capitalismo digital, o novo rosto do anti-humanismo corporativo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU