“Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão (...) começou a ensinar-lhes muitas coisas”.
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 16º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Marcos 6,30-34.
Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus os tinha enviado e Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou para descansar com os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar distância, conversar juntos e de maneira tranquila sobre esse momento dramático, em um espaço sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência permanente que a pressão do povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem para comer. Não eram pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz o texto de Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as entranhas, porque “andava como ovelhas sem pastor”, com fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se darem conta.
Jesus não só transmite um ensinamento, senão que cria uma relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos para nos encontrar com um Tu inesgotável, que ilumine nossa existência e nos transforme inteiramente, de tal maneira que sejamos capazes de estabelecer relações novas com nossa própria história pessoal, com os outros e com toda a criação.
O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador que o move a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada uma carrega dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem envolvido em roupagens exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa numa proximidade tão simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos engrandece a todos. Nesse sentido, o novo ensinamento de Jesus tem a marca da “compaixão”.
Um dos sintomas de desumanização, que está revelando seu triste rosto no contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem, viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns frente aos outros..., ou seja, incapacitar-nos para a compaixão. A compaixão está cada vez mais ausente da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para responder aos desafios atuais. Vivemos num contexto social onde somos ameaçados por uma forma sutil de “a-patia”. Aqui a compaixão se quebra com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma em “sem-paixão”. Com isso, nos nossas relações se desumanizam.
Tal “sem-compaixão” é uma enfermidade social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e unicamente com quem faz parte do seu “gueto”. Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia nossa capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o coração frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder “não há nada que fazer”. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade. Qualquer implicação com o outro implica suspeita, frieza, distancia, preconceito... Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos indiferentes quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão rápido como chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem pontos de conexão com a realidade da exclusão.
A “privatização da vida”, a sensação de impotência diante das tragédias, a distância midiática (informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa paixão), a distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença (transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilha-mos gostos, modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc... Quem olha para as manchetes de notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe convencer de que a compaixão está perdendo a referência no elenco dos sentimentos humanos mais nobre. Afinal, produtividade, eficiência, competitividade, revelam-se “pobres” de atitudes compassivas.
No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo; Jesus não passa “friamente” por nada. Ele não passa indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte..., não passa friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor. Seu sentimento está sempre engajado: Ele é o homem da prontidão de sentimentos, que deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se “tocado” pela dor e miséria. E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia extravasam-se em ações comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu coração. Os Evangelhos destacam os profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e solidariedade misericordiosa de Jesus.
Muitas vezes é mencionado que o Senhor foi “comovido até as entranhas” e teve “frêmitos de compaixão”; trata-se de sentimento eminentemente humano. Até podemos fazer referência origem etimológica da palavra “compaixão”. E aqui é muito pouco o apelo ao vocábulo latino “cum-passio” (“padecer com”). É preciso um novo passo. Para “compaixão” é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos “compaixão” e “útero” são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas “ovelhas sem pastor”: suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos para uma nova vida.
Num mundo em que o anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é preciso ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos rostos, desmontando os pré-juizos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro por sua vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar entender seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a julgá-los. Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações. A moção de compaixão permite que do coração humano brote a “ex-centricidade”.
A experiência cristã não nos imuniza contra a contaminação do “amor próprio, querer e interesse”; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a insaciável auto-afirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a pouco, personalidades ex-cêntricas, livres do domínio despótico do “ego”.
Ser compassivo implica buscar e ativar uma disposição em sair das fronteiras do conhecido e do habitual, dos circuitos familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar em sintonia com as pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas que geram miséria, dor e exclusão.
- Compaixão ou indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu dia-a-dia?