13 Mai 2021
“No dia em que Álvaro foi assassinado, outros garotos também caíram vítimas dos franco-atiradores, e muitos outros continuariam caindo nos dias seguintes. A conta dos mortos pela repressão que começou naquele mês de abril, de três anos atrás, chegou a mais de 300”, escreve Sergio Ramírez, escritor premiado e protagonista da revolução nicaraguense, quando encabeçou o Grupo dos Doze, formado por intelectuais, empresários, sacerdotes e dirigentes que apoiaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). O artigo é publicado por La Jornada, 12-05-2021. A tradução é do Cepat.
Álvaro Conrado foi alcançado pelo disparo de um franco-atirador armado com um fuzil Dragunov, ao meio-dia da sexta-feira, 20 de abril de 2018, enquanto corria levando duas garrafas de água que desejava entregar aos estudantes que ocupavam uma barricada nas imediações da Universidade de Engenharia, em Manágua.
Tinha acabado de completar 15 anos e correr era uma de suas paixões. No dia seguinte, participaria de uma competição colegial na qual esperava ganhar sua quarta medalha, e a representação da Nicarágua em uma competição centro-americana de pista e campo no Panamá.
Vestia jeans azuis, tênis, um boné com o emblema dos Yankees de Nova York e uma jaqueta vermelha que o tornou alvo fácil para o franco-atirador instalado no teto do Estádio Nacional de Beisebol. O tiro entrou pelo lábio inferior, atravessou o pescoço, danificando a laringe e o esófago, e foi se alojar no tórax.
Há um vídeo de 16 segundos do momento em que, após receber o disparo, enquanto é auxiliado pelos estudantes, não para de dizer: “Me dói respirar”. Sentado no chão, ofega com dificuldade, com sua jaqueta arregaçada. Alguém parece trazer uma garrafa de água para ele. São segundos muito fugazes.
Um desconhecido o levou em seu veículo até o Hospital Cruz Azul. No trajeto, pedia, por favor, que não o deixassem dormir, tinha medo de não acordar novamente. Sangrava e continuava sentindo dor para respirar.
“Em vez de recebê-lo, fecharam apressadamente a porta”, disse o pai. Então, o mesmo desconhecido o levou até o Hospital Alemão Nicaraguense, onde também não quiseram aceitá-lo. No Hospital Batista, que é particular, sim, foi acolhido. Mas às duas da tarde morreu na sala de cirurgia.
Estava há quatro anos no ensino secundário. Queria estudar leis, disse seu pai. Debatiam juntos. E após se formar, de imediato tentariam conseguir uma bolsa para uma pós-graduação.
Seu pai também se chama Álvaro Conrado, engenheiro informático, e sua mãe, Liseth Dávila. Vivem no bairro Monsenhor Lezcano. Luz Marina, a avó, mora com eles. “Quando colocava uma ideia na cabeça, ninguém o fazia mudar”, disse a avó. E não suportava as injustiças.
Uma verdadeira habilidade com o skate. Seus movimentos eram preciosos, disse seu pai. E com os seus treinamentos de atletismo, rigoroso. Quando ainda não tinha nem seis anos, aprendeu a tocar guitarra, um amante do rock. Também era atraído pelos animes. Sonhava viajar para o Japão.
No dia anterior, com as aulas suspensas, foi cedo ao colégio para treinar. Naquela tarde, pediu para que seu pai lhe explicasse o que estava acontecendo. Após ouvir com atenção, disse: “Pai, por que não vamos nos somar?”. “Não, isso é muito perigoso”, respondeu o pai. “Você ainda é um menino”.
Continuou fazendo perguntas até a meia-noite. Antes de dormir, enviou uma mensagem a uma amiga, que depois a mãe encontrou no telefone: “... Nicarágua, não é qualquer lixo. Somos nicaraguenses. Somos um só. Contra isso, jamais poderão”.
No dia seguinte, levantou inquieto. Agora, sua avó acredita que sua inquietação era porque já eram nove horas e seu pai ainda não tinha ido para o trabalho, o que desejava era ir o quanto antes para as barricadas.
“Tomamos o café da manhã, e esse foi o último”, disse o pai. “Então, depois do meio-dia, recebo em meu escritório uma chamada de seu próprio telefone, e como é grande o meu susto quando essa pessoa desconhecida, que o havia socorrido, informa que meu filho está entrando na sala de cirurgia do Hospital Batista. Eu corri para o hospital, mas não consegui mais vê-lo vivo”.
Na casa, foi levantado uma espécie de altar dos mortos com seus pertences: seu último boletim, suas medalhas de atletismo, a guitarra com sua capa, o skate dos movimentos que fascinavam seu pai. Seu cartão colegial, suas fotos.
O artista gráfico Juancho Tejerino fez um retrato dele ao estilo mangá, pois gostava de animes. O cabelo abundante e rebelde, os olhos límpidos ampliados por trás das lentes, o peito erguido atravessado pela bandeira da Nicarágua, que flutua por cima de sua camiseta esportiva, com um guardabarranco, o colorido pássaro nacional, sobre o seu ombro esquerdo. Essa figura pegou nas redes e foi impressa em cartazes que circularam entre as multidões nas marchas, em camisetas, adesivos. Até que foi proibida.
No dia em que Álvaro foi assassinado, outros garotos também caíram vítimas dos franco-atiradores, e muitos outros continuariam caindo nos dias seguintes. A conta dos mortos pela repressão que começou naquele mês de abril, de três anos atrás, chegou a mais de 300.
“Meu filho hoje completaria 18 anos e seria um homenzinho, estaria estudando em alguma universidade”, disse o pai.
O sol é de incêndio sobre a Nicarágua em abril, mas a grama verde renasce dos carvões, disse Ernesto Cardenal.
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Nicarágua. Me dói respirar. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU