07 Mai 2021
“O retorno pós-moderno do fascismo se baseia em uma antropologia completamente diferente. A comunidade é apenas a memória nostálgica de uma pertença passada que já não existe. É lamento, não experiência viva. A vida social foi pulverizada no espaço metropolitano pós-político, desterritorializado, e a potência não é mais que um mito, um contraponto da presente impotência”, escreve Franco ‘Bifo’ Berardi, filósofo e ativista italiano, em artigo publicado por Revista Noticias-Perfil, 05-05-2021. A tradução é do Cepat.
Não penso que o fascismo tenha retornado. Ao menos não o fascismo em seu modelo original. O que experimentamos hoje é um retorno da mitologia supremacista, mas a substância antropológica mudou profundamente. No período futurista, de fato, o fascismo foi a manifestação agressiva da potência de varões jovens que se sentiam marginalizados pela burguesia. Seu estilo era animado, eufórico e sua brutalidade levava a marca de uma visionária fé no futuro. A onda contemporânea de nacionalismo e racismo é alimentada por um sentimento de desespero e humilhação, pela raiva impotente de velhos brancos na era da globalização.
Até onde sei, o conceito de humilhação nunca foi tematizado ou analisado no âmbito do pensamento político. O que é a humilhação, afinal?
Diria que “humilhação” é o que as pessoas sentem quando são forçadas a tomar consciência de sua incapacidade para realizar a imagem que tem de si mesmas. Humilhação significa esta quebra da relação entre imagem de si, expectativas, realidade percebida e reconhecimento. Os trabalhadores ocidentais brancos foram humilhados pela governança neoliberal e pelos governos de centro-esquerda que foram os executores de tal governança. Os trabalhadores ocidentais foram tão humilhados que decidiram se identificar não mais como trabalhadores, mas de uma maneira diferente: como raça branca. É a raça branca que está de volta: a raça “superior”, a raça de depredadores.
O sentimento de superioridade, inominável, mas profundamente enraizado no inconsciente e a cultura ocidentais, foi refutado e humilhado pela realidade do capitalismo financeiro, pela experiência diária de impotência que destruiu a autoestima das pessoas e sua confiança no futuro.
O Manifesto Futurista de 1909 foi uma exaltação da potência sexual e a agressividade política, e o fascismo tirou sua força da mitológica virilidade de Mussolini. E mais, o fascismo histórico foi a expressão de um verdadeiro sentimento de pertença: o sentimento de comunidade se baseava na mitologia do sangue e a nação, mas a comunidade naqueles tempos era algo real, algo experimentado diariamente e que moldava profundamente o comportamento social.
O retorno pós-moderno do fascismo se baseia em uma antropologia completamente diferente. A comunidade é apenas a memória nostálgica de uma pertença passada que já não existe. É lamento, não experiência viva. A vida social foi pulverizada no espaço metropolitano pós-político, desterritorializado, e a potência não é mais que um mito, um contraponto da presente impotência. A potência sexual está em declínio, já que a população branca envelhece, e o estresse, a depressão e a angústia perturbam a esfera erótica.
A autonomia das mulheres foi a ameaça definitiva ao poder masculino e alimentou um sentimento reprimido de vingança machista que irrompe cada vez mais, muitas vezes, em atos de violência. A demografia transformou a paisagem antropológica e social de nosso tempo: a senilidade, a solidão e o vício em psicofármacos estão levando os homens brancos do mundo Ocidental ao caos mental, o autodesprezo e a agressividade. O novo modelo de fascismo não surge de uma euforia futurista juvenil, mas de um sentimento estendido de depressão e de um impotente desejo de vingança.
Esta tendência é especialmente visível nos Estados Unidos: a multidão deprimida de homens brancos deita raízes na era do individualismo rampante. Acreditaram nas promessas do egoísmo neoliberal, adotaram a filosofia do ganhar, e depois se descobriram perdedores. Enganaram a si mesmos ao acreditar nas promessas neoliberais do sucesso individual. Agora, é muito tarde para abraçar uma nova esperança, uma nova imaginação. A única coisa que podem compartilhar é o seu ódio, seu desejo de vingança.
Este foi o pano de fundo antropológico do trumpismo: “Make America Great Again” (Que os Estados Unidos voltem a ser grande) é uma súplica patética ao deus supremacista: devolve-me minha juventude, minha força, minha energia sexual, devolve-me a fé em algo. Mas o deus supremacista não está ouvindo.
O racismo de nosso tempo não é uma continuação da ideologia racista da era colonial. Esse velho racismo era uma expressão da superioridade da raça dominante que possuía a tecnologia para explorar e as armas para submeter os povos de cor do Sul global primitivo ou subdesenvolvido. Agora, as armas estão à disposição de qualquer um, sem distinções de raça.
Agora, os brancos pobres se veem obrigados a tolerar a superpopulação de seus espaços vitais, na medida em que os imigrantes se amontoam nos subúrbios pobres das metrópoles. O novo racismo é o racismo dos perdedores.
O velho racismo era compartilhado pela classe alta e os proletários. Era a marca da superioridade dos colonizadores brancos sobre os colonizados globais.
Agora, o racismo é deixado aos despossuídos e ignorantes, ao passo que a classe alta se indigna diante do racismo dos pobres e, das zonas residenciais ricas e bem protegidas da cidade, olha com desdém os bairros baixos onde vivem os imigrantes, misturando-se com os marginalizados e empobrecidos.
O antirracismo oficial da classe alta europeia está cheio de hipocrisia e desprezo àqueles que são obrigados a compartilhar os espaços de suas áreas desfavorecidas com os imigrantes, que nunca param de chegar e provocam a sensação de estar sendo invadidos.
Não obstante, na diferença antropológica entre o fascismo histórico e sua reaparição contemporânea, existe um traço comum que liga o trumpismo com o velho fascismo: o culto racista à supremacia. A raça é o elemento definidor da autoidentificação das pessoas.
O racismo emergiu na cultura dos colonizadores europeus durante a construção de seu império, como uma justificação ideológica de seus atos de pilhagem. Em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853-1855), Arthur de Gobineau não só afirmou a superioridade da raça branca, como também prenunciou uma tendência à contaminação racial e uma consecutiva degradação da raça superior.
Apesar da falta de fundamentos científicos de sua teoria e de seu próprio conceito de raça, as análises racistas de Gobineau trouxeram à superfície uma vertente muito profunda do inconsciente ocidental: uma torrente de medo que se origina na consciência do declínio iminente da cultura ocidental. Mesmo carecendo de sentido científico, o conceito de raça atua como uma autoidentificação fantasmática. Esta identificação desempenhou um papel crucial na história do colonialismo moderno e está desempenhando um novo papel na atual catástrofe do capitalismo.
A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos revelou exatamente isto: empobrecida pela globalização do mercado de trabalho, atordoada pela cerveja e as drogas, furiosa pela derrota estratégica provocada por George W. Bush e seu conselheiro maldito Dick Cheney, a raça branca reivindica sua primazia cambaleante.
“Make America Great Again” significa: que a raça branca volte a ser a raça superior, ao velho estilo da Ku Klux Klan, enfurecida pelo fato de que um presidente negro (culto, urbano e belo, em contraste com os idiotas de seus integrantes) tenha ousado ocupar a Casa Branca.
O título completo deste artigo é Impotência, supremacismo e o novo rosto do fascismo. O artigo é um fragmento de seu último livro [publicado em espanhol] La segunda venida. Neorreaccionarios, guerra civil global y el día después del Apocalipsis (Caja Negra).
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O novo rosto do fascismo. Artigo de Franco ‘Bifo’ Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU