16 Abril 2021
“A maioria de nós, os poucos católicos praticantes que restam na Europa, já está muita cansada de ordens antiquadas, que não servem para enfrentar as ameaças reais que estão sobre nós. Eu, na verdade, estava decidida a sair da Igreja, em sinal de protesto como estão fazendo aqui na Alemanha centenas de milhares de pessoas, exauridas de contribuir a uma organização que não confiam, não obstante, até agora, algo em mim ainda resiste, porque a religião católica, com seus ritos e orações, não é um acessório de fácil substituição, mas sim algo integral em minha vida. Ao mesmo tempo, encontro-me em discordância com tantas prescrições sem sentido”, escreve Cristina Romero Gaskell, em carta publicada por Religión Digital, 16-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Sua Santidade: sou uma católica espanhola de 51 anos, residente em Bonn, Alemanha. Escrevo-lhe pela necessidade de manifestar minha humilde discordância com o empenho da Igreja em se agarrar a dogmas atávicos, meu pesar é por ver como este barco, tão nobre e necessário, vai ao abismo, e minha confusão é por não saber se o abandono ou sigo nele e tento mudar seu rumo.
Santo Padre, estou segura de que vocês, os que dirigem a Igreja, trabalham com a mais nobre das intenções. Estão fazendo tudo que é possível por preservar os preceitos que durante incontáveis gerações serviram de pilares para sustentar este edifício eclesial e o fazem com tanto empenho e dedicação porque estão convencidos de que esses preceitos são manifestação da vontade divina e, portanto, sagrados e inalteráveis. Isso é, não é que a Igreja como instituição queira mudar seus dogmas. É que, pense, não pode fazê-lo porque lhe dão uma ordem e um sentido queridos por Deus a nossa vida.
O problema é que esta teoria acarreta muito sofrimento desnecessário para os católicos, muito opressão e discriminação, que são estados contrários ao que Deus deseja para seus filhos. Minha amiga Gisela, por exemplo, está – em teoria – condenada a passar o resto de sua vida sem comungar porque seu primeiro casamento não deu certo. Nós, mulheres, parece que nunca poderemos presidir uma missa, ainda que nos sintamos chamadas a isso e apesar de que há uma necessidade urgente de padres.
E os casais homossexuais jamais poderão ser abençoados por um padre já que seu amor – isso sim que é o auge –, pois vocês acabam de nos explicar, segue sendo pecado. Como pode ser pecado comprometer-se a passar o resto de sua vida amando uma pessoa? Não lhes ocorre pensar que essas normas que vocês com tanto ardor defendem poderão não ser suportes da instituição que presidem, mas sim cadeados e correntes que amarram os pobres fiéis? Ou demônios que os espantam?
Somos seguidores de um homem que tinha pouca paciência para as normas absurdas (“O sábado é feito para o homem”) e que, diante de nossa tendência a complicarmos a vida, nos deu pautas claras e simples: ama, perdoa, busca o Reino de Deus e sua justiça.
Santo Padre, há tanta necessidade no mundo... você bem o sabe e com razão nos pede com admirável vontade e lucidez que lutemos contra a mudança climática e que trabalhemos para colocar fim à injustiça. Para isso é que necessitamos de nossos guias espirituais, para nos advertir que nosso egoísmo nos destrói e para nos animarmos a seguir o caminho da verdadeira felicidade servindo ao próximo.
Padre, e para nos tirar o medo existencial que nos asfixia, o medo do sofrimento, da covid-19, da morte, do vazio, da falta de sentido, da vitória do mal sobre o bem, todos esses, se esvanecem perante o poder do Cristo ressuscitado. Essa é a mensagem que este mundo estressado precisa escutar e que Jesus nos repetiu algumas vezes: não tenham medo.
Santidade, e vocês, no Vaticano, do que têm medo? Porque às vezes eu me pergunto se essa teimosia em não se adaptar aos tempos não tem raízes no medo do desconhecido ou de perder o poder. Outro questionamento que me faço é: como podem vocês saber o que Deus quer? O bom Deus quer que usemos preservativos para evitar a superpopulação. E possivelmente não teria nada contra que seus padres e suas irmãs casassem, se assim quisessem. E, certamente, não diferencia os seus filhos que mantêm relações sexuais antes ou depois do casamento. Que diferença faz?
A maioria de nós, os poucos católicos praticantes que restam na Europa, já está muita cansada de ordens antiquadas, que não servem para enfrentar as ameaças reais que estão sobre nós. Eu, na verdade, estava decidida a sair da Igreja, em sinal de protesto como estão fazendo aqui na Alemanha centenas de milhares de pessoas, exauridas de contribuir a uma organização que não confiam, não obstante, até agora, algo em mim ainda resiste, porque a religião católica, com seus ritos e orações, não é um acessório de fácil substituição, mas sim algo integral em minha vida. Ao mesmo tempo, encontro-me em discordância com tantas prescrições sem sentido.
Por isso, dirijo-me a ti, porque necessito – todos nós, católicos europeus do século XXI, necessitamos – uma comunidade, uma Igreja, aberta às novas verdades que vamos descobrindo como humanidade. Muito do que antes pensávamos ser pecado hoje em dia nos damos conta que não faz mal a ninguém. Talvez seja o próprio Deus quem vai nos iluminando o entendimento, que vai abrindo os nossos olhos. Mas que ironia que vocês, máximos representantes, empenhem-se em mantê-los fechados! Não pode ser, Santo Padre, é uma negação à evidência, que de fato se torna incompreensível para nós todos.
Padre Francisco, entendo que não é uma tarefa fácil ser capitão deste navio e muito obrigado pelo louvável trabalho até agora. Não sei o quanto você pode realmente mudar e até que ponto você tem que se adaptar às demandas dos setores conservadores, mas por favor, faça tudo que puder para renovar nossa amada igreja mãe, porque de que serve os pastores para manter a pureza do dogma se a consequência é que eles acabam sendo alguns poucos homens de cabelos grisalhos, entrincheirados em uma parede de atavismos, enquanto suas ovelhas estão espalhadas pelo mundo?
Desejo que o Espírito Santo o fortaleça e o oriente nesta difícil missão que lhe foi confiada.
Atenciosamente,
Cristina Romero Gaskell
Bonn (Alemanha)
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“Santidade, do que vocês, no Vaticano, têm medo?”. Carta de uma católica ao papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU