Professor traz elementos que indicam o que ainda sustenta esse governo, analisa saídas possíveis e os desafios da esquerda para fazer frente não só ao bolsonarismo, mas às demandas do mundo de hoje
Mais de 300 mil mortos numa pandemia que nunca arrefece, uma crise econômica e social que parece não ter fim, um negacionismo esquizofrênico, escândalos e denúncias de corrupção em toda a família e arroubos totalitários. Esses são alguns dos elementos que envolvem o governo de Jair Bolsonaro. Mas, antes de achar que se tem motivos de sobra para interditar esse governo, o professor Rodrigo Nunes sugere que olhemos com mais vagar para compreender o que, apesar de tudo, mantém os Bolsonaros de pé. Um desses elementos de sustentação é justamente o bolsonarismo. “O bolsonarismo não é nem um fenômeno exclusivamente popular, nem exclusivamente de elite, mas que estabelece uma aliança entre classes”, aponta. E completa: “ele deve ser entendido perspectivamente, isto é, seus participantes o veem como coisas diferentes dependendo do ponto de onde olham”.
Segundo Rodrigo Nunes, para aprofundar a reflexão, é preciso compreender o cenário que levou Bolsonaro ao poder. “A ideia central é que estas diferentes tendências sociais já vinham convergindo no mínimo desde 2015, mas é em torno da campanha de Bolsonaro em 2018 que sua identidade política comum se cristaliza”, explica, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Assim, significa que a maioria que o levou ao Planalto se uniu “menos por quaisquer características pessoais de Bolsonaro do que pelo fato de que a sua candidatura oferecia o espaço ideal para esta convergência naquela conjuntura extremamente singular”.
Isso, ainda segundo o professor, significa compreender que o bolsonarismo não nasce de um séquito de seguidores fiéis, que aliás é muito pequeno. “Embora leve seu nome, o bolsonarismo não é fruto de um gesto criador do líder, mas da contingência que o pôs no lugar certo na hora certa. Nos termos da teoria do discurso de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, ‘Bolsonaro’ foi um dos nomes que serviu para unificar este campo político diverso com um significante ou ponto focal comum, assim como ‘mamata’ e ‘comunismo’ serviram para construir a identidade correspondente ao campo oposto, do inimigo”, detalha.
Rodrigo ainda vai vertebrando sua análise em outros elementos, mas deixa claro que essa mesma ‘coesão’ que elegeu Bolsonaro e que agora começa a se virar contra sua figura só de fato levaria a um impedimento se tivesse outra opção, que referendasse valores de uma elite que quer mais benesses e menos direitos sociais, por exemplo. “Segue não havendo uma candidatura alternativa da direita para 2022. Logo, é melhor deixá-lo onde está. Ninguém realmente acredita que ele possa melhorar. Todo mundo já entendeu que o jogo dele é esse”, observa. Logo, “a situação chegou a um equilíbrio que serve a todas as partes: a Bolsonaro, que segue impune e cultivando seus seguidores; ao grande capital, que assim tem mais escopo para extrair reformas; e ao Centrão, que vai levando tudo que não estiver pregado no chão”.
Só que o professor não fica apenas no diagnóstico, ensaia algumas possibilidades de cenários. Mas deixa bem claro que é preciso bem mais do que ‘Lula Livre’ para de fato a esquerda, e o PT, fazer frente ao bolsonarismo. “A base social que fez do PT a potência que ele já foi não é mais a mesma: mudou o partido, mudaram os sindicatos e movimentos, mudou a sociedade. Se a esquerda quiser se manter relevante no médio e longo prazo, ela precisará construir estruturas e um programa capazes de dialogar com o trabalhador informal, com os entregadores e motoristas de Uber, com o morador da periferia, e a partir daí formar uma base social mobilizada para lutar pela expansão da proteção social, por igualdade econômica, racial e de gênero, pela transição para uma economia pós-carbono”, resume.
Rodrigo Nunes (Foto: Arquivo pessoal)
Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, da Universidade de Londres, e professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É autor dos livros Organisation of the Organisationless: Collective Action After Networks (Mute, 2014) e Neither Vertical Nor Horizontal: A Theory of Political Organisation (Verso, 2021), cuja tradução ao português deve sair ainda este ano pela editora Ubu. Tem textos publicados em diversas revistas nacionais e internacionais, como Les Temps Modernes, Historical Materialism, South Atlantic Quarterly, Nueva Sociedad, Le Monde Diplomatique e Serrote, e em veículos da grande imprensa como Al Jazeera, The Guardian, Folha de São Paulo e Piauí. Recentemente, organizou um dossiê sobre o Brasil para a revista inglesa Radical Philosophy que inclui, além de um ensaio seu sobre o bolsonarismo, artigos de Raquel Barreto sobre a pioneira do feminismo negro Lélia Gonzalez e de Ana Carolina Evangelista sobre os evangélicos e a política.
A entrevista foi publicada originalmente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 07-04-2021.
IHU On-Line – No seu artigo para a revista Piauí, o senhor coloca a pergunta sobre como entender o resistente apoio a Bolsonaro. Por que a morte de mais de 330 mil pessoas parece pesar menos do que deveria sobre a imagem de Bolsonaro?
Rodrigo Nunes – Há quatro coisas para considerar aí.
A primeira é a infraestrutura comunicacional de que Bolsonaro dispõe, uma rede muita ativa e organizada que começa no gabinete presidencial, onde se coordenam os discursos; passa por sites e “influenciadores” que produzem conteúdo; se capilariza pelos grupos de WhatsApp e Telegram; e acaba nos grupos de família, de igreja, do trabalho, e nos ambientes que as pessoas frequentam.
Isto gera uma saturação informacional que faz com que, para cada notícia negativa, a pessoa receba cinco ou dez versões diferentes, desmentidos, “fatos alternativos”, e que chegam através de pessoas próximas, com credibilidade. O resultado é que, quando a notícia ruim chega, a pessoa está inoculada, ela já foi preparada para rejeitá-la. Não sabemos se Bolsonaro será capaz de vacinar a população brasileira, mas ele já conseguiu inocular muita gente contra a verdade.
Foi essa máquina de desinformação que permitiu a ele bater de frente com a mídia e sair de pé. Claro, a coisa talvez tivesse sido diferente se a imprensa tivesse usado toda a artilharia que usou contra Dilma; mas como ninguém está seguro de querer derrubar Bolsonaro, ele segue apanhando com luvas de pelica. Com isso, logrou emplacar amplamente o fato de basicamente afirmar que não havia nada que ele pudesse fazer sobre a pandemia.
Não é só a mentira de que o Supremo Tribunal Federal - STF teria proibido o governo federal de intervir, mas fundamentalmente a ideia de que o Estado não poderia atuar de nenhuma outra maneira porque seria ruim para a economia e fiscalmente irresponsável. A mensagem é: tínhamos uma escolha entre o risco econômico e o risco de vida, e absurdo seria não optar pelo segundo.
Aí entra o segundo ponto. Este discurso funciona não apenas porque é eficientemente difundido, mas porque diz coisas que já estão assentadas na cabeça das pessoas. O Estado no capitalismo sempre teve duas funções básicas: a de assegurar o funcionamento do mercado, e a de eventualmente limitar a liberdade do mercado para assegurar condições de reprodução às pessoas. O período entre o pós-guerra e a década de 1980 foi dominado por um consenso em torno da necessidade de fortalecer a segunda função; o consenso formado desde então é que a boa gestão consiste em exercer esta função o mínimo possível, reduzindo o Estado à primeira.
Isto é o neoliberalismo, isto é o que ouvimos há quatro décadas, e esta ideia de que as pessoas existem para servir à economia volta com ainda mais força em períodos de crise como o atual, quando se escuta diariamente que é preciso “apertar os cintos” e “cortar na carne”. A resposta de Bolsonaro à pandemia é apenas essa lógica sacrificial levada às últimas consequências: não há nada que o Estado possa fazer, é cada um por si e todos pela economia. O objetivo, claro, é tirar de discussão opções como um auxílio permanente, renda mínima, congelamento de aluguéis, apoio a pequenas empresas. E como quatro décadas de neoliberalismo habituaram as pessoas à ideia de que este é o único horizonte possível, elas ouvem isso e concordam: realmente não há alternativa.
O terceiro ponto tem uma dimensão histórica ainda mais longa. É a própria história do Brasil, o fato de sermos um país fundado sobre a normalização da morte e do sofrimento humano, do genocídio indígena à miséria e violência das periferias, passando por quatro séculos de escravidão. E as eleições de 2018 foram um momento em que essa indiferença – ou mais que isso: a ideia de que existe um direito de tratar como inimigo de guerra todos aqueles por quem nos sentimos ameaçados – foi abertamente celebrada. Os candidatos competiam para ver quem deixaria a polícia cometer mais abusos. Antes da pandemia, o brasileiro já convivia com uma brutalização tão grande que muita gente consegue olhar 2 mil mortes diárias e achar que faz parte do jogo.
O quarto ponto é simples: o bolsonarismo é uma realidade. Há uma identidade coletiva que se cristalizou em torno da campanha de Bolsonaro que tem a negação radical de tudo aquilo contra o que Bolsonaro supostamente lutaria como um dos traços que lhe dá consistência. Porque o “inimigo” não é visto como alguém que apenas pensa diferente, mas como alguém cuja mera existência é a negação da minha, toda informação que ponha o governo em questão pode ser identificada com o inimigo e descartada. Se o espaço político é percebido como inteiramente bipartido, não sobra espaço para fatos que existiriam independentemente de servirem a um lado ou outro: tudo que não serve a mim serve ao adversário.
Esse viés de confirmação é reforçado pela saturação informacional descrita antes. Mas aqui é preciso distinguir duas funções que a máquina de comunicação bolsonarista cumpre. Para muita gente, a saturação serve para deixá-los na dúvida: a notícia tem vários lados, quem critica o governo também não está dizendo toda a verdade, “ninguém é santo nessa história”... Já o bolsonarista de verdade crê; ele tem convicção. Sua convicção é tão forte que lhe permite acreditar numa coisa hoje e noutra amanhã se a mensagem do governo mudar, porque sua convicção é acima de tudo a de que é preciso derrotar o inimigo a qualquer custo, e isto vale mais do que qualquer dissonância cognitiva ou perda de credibilidade. É isto que faz do bolsonarismo a força política que ele é.
O bolsonarismo de verdade é 15%, no máximo 20% da população; mas sua convicção e engajamento é suficiente para arrastar consigo o restante que forma estes 30% de apoio que se manteve até aqui. E desde o início está claro que Bolsonaro não tem intenção de governar para mais que esses 30%, porque fidelizando este segmento ele e seus filhos administrarão um patrimônio eleitoral valiosíssimo por muito tempo.
IHU On-Line – O senhor recentemente publicou um artigo na revista inglesa Radical Philosophy sobre o bolsonarismo. Partindo dessa reflexão, como o senhor define o bolsonarismo? Qual é sua composição social e como se caracteriza?
Rodrigo Nunes – A primeira coisa é distinguir entre bolsonaristas e eleitores de Bolsonaro: nem todo mundo que votou em Bolsonaro é bolsonarista. Talvez nem mesmo todos aqueles que ainda apoiam o governo possam ser descritos assim, embora eles certamente estejam sujeitos à atração gravitacional do bolsonarismo e compartilhem de alguns dos elementos que o compõem.
O segundo ponto é justamente que devemos entender o bolsonarismo como um fenômeno compósito, um conjunto de tendências sociais relativamente independentes entre si que convergiram numa identidade política comum. Seguindo a sugestão valiosa de um texto de Gabriel Feltran, penso estes elementos nos termos daquilo que Eder Sader chamava de “matrizes discursivas”, identificando sete, que analiso individualmente: policialismo (ou militarismo), empreendedorismo, anti-intelectualismo, libertarianismo econômico, anticomunismo, oposição à corrupção (em sentido amplo) e conservadorismo social.
Em maior ou menor grau, cada uma destas está presente em todas as classes, ainda que assumam sentidos diferentes conforme a posição social de quem subscreve a eles e cumpram funções diferentes no interior dessa identidade comum.
O terceiro ponto é, então, que o bolsonarismo não é nem um fenômeno exclusivamente popular, nem exclusivamente de elite, mas que estabelece uma aliança entre classes; ao mesmo tempo que, e este seria o quarto ponto, ele deve ser entendido perspectivamente, isto é, seus participantes o veem como coisas diferentes dependendo do ponto de onde olham.
A ideia central é que estas diferentes tendências sociais já vinham convergindo no mínimo desde 2015, mas é em torno da campanha de Bolsonaro em 2018 que sua identidade política comum se cristaliza. Isso se dá menos por quaisquer características pessoais de Bolsonaro do que pelo fato de que a sua candidatura oferecia o espaço ideal para esta convergência naquela conjuntura extremamente singular.
Isto significa que o vínculo entre Bolsonaro e o bolsonarismo não é analítico, mas sintético: embora leve seu nome, o bolsonarismo não é fruto de um gesto criador do líder, mas da contingência que o pôs no lugar certo na hora certa. Nos termos da teoria do discurso de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, “Bolsonaro” foi um dos nomes (junto com “cidadão de bem”, “patriota” etc.) que serviu para unificar este campo político diverso com um significante ou ponto focal comum, assim como “mamata” e “comunismo” serviram para construir a identidade correspondente ao campo oposto, do inimigo.
É óbvio que, a partir daquele instante, Bolsonaro passa a ter mais poder sobre este campo político do que qualquer um. Mas insistir que seu vínculo com o bolsonarismo é sintético implica dizer que pode haver no futuro bolsonarismo sem Bolsonaro, com uma ou mais figuras ocupando a mesma função de unificação política deste segmento social. Suspeito, aliás, que o bolsonarismo tende a sobreviver por bastante tempo, explorado por empreendedores políticos de diferentes matizes, independente do destino da família Bolsonaro. Algo semelhante ao que foi o malufismo, seu antecessor mais próximo, ao longo de três décadas – com a diferença importante de que o bolsonarismo é um fenômeno nacional.
Insistir na contingência da relação Bolsonaro-bolsonarismo também serve para reforçar que, embora a identidade política que se cristaliza em 2018 seja um fato novo, as tendências sociais que a formam já gravitavam na direção umas das outras há tempos; e, embora não deixem de ter contradições entre si, elas se aproximam porque têm muito em comum. Como aponto no texto, elas se alimentam das mesmas condições afetivas – isto é, respondem aos mesmos sentimentos socialmente disseminados – e compartilham de uma mesma gramática moral cujos pontos-chave são o individualismo, o punitivismo e a valorização da ordem acima da lei. É isto que cria uma língua franca entre estas matrizes discursivas traduzíveis e facilita o processo de identificação recíproca entre os que aderem a elas.
Pensar o bolsonarismo nesses termos implica dar a este fenômeno uma espessura temporal que as explicações exclusivamente conjunturais, que buscam apontar quais decisões de quais agentes produziram o atual estado de coisas, não levam em consideração. Ao enxergar a trajetória destes elementos numa duração mais longa, não só temos uma dimensão mais real daquilo com que estamos lidando, de quão fundo vão suas raízes e quão longe podem ir seus efeitos, como botamos Bolsonaro no lugar que lhe cabe: mais sintoma do que causa.
IHU On-Line – Entre as condições afetivas que alimentam o bolsonarismo, o senhor inclui o negacionismo, que também é tema do artigo para a Piauí. Como compreender o negacionismo de nosso tempo?
Rodrigo Nunes – O texto que saiu na última Piauí é, de fato, uma espécie de spin-off deste artigo sobre bolsonarismo. Ao descrever o negacionismo como um afeto ou disposição anímica – mood, como se diz em inglês, ou Stimmung, como diriam os heideggerianos – pretendo mostrar que ele possui mais dimensões do que normalmente pensamos. Em geral, imagino que quando as pessoas chamam alguém como Bolsonaro de negacionista, o que elas querem dizer é que ele nega coisas que ele sabe que são verdade, ou, em outras palavras, que ele está conscientemente mentindo. Não tenho dúvida de que ele esteja, embora não possamos ignorar o quanto de autoengano há em figuras como ele. Mas me parece que a pergunta que deveríamos nos fazer é: por que estas mentiras funcionam? O que faz com que coisas que nos parecem francamente delirantes, como QAnon ou o “globalismo” de Olavo de Carvalho, convençam e mobilizem tanta gente?
Há muitas respostas para isto, claro. Uma delas é a própria arquitetura das redes sociais, que, ao dar preferência a conteúdos que geram engajamento, favorecem manchetes apelativas e ideias extremas, ao mesmo tempo que vão oferecendo ao usuário sempre mais conteúdo do mesmo tipo, construindo caixas de ressonância que reforçam as crenças mais absurdas.
O advento da internet significou uma redução radical dos custos de publicação de conteúdos de todos, diminuindo o poder dos gatekeepers tradicionais e gerando uma democratização da produção de informação que foi inicialmente celebrada como inequivocamente positiva. O problema é que o tempo em que vivemos combina um grande descrédito institucional, que é legítimo sob vários aspectos, com uma enorme sobrecarga informacional, um individualismo extremo que conclama cada um a confiar apenas em si mesmo, e uma quantidade gigantesca de agentes deliberadamente espalhando informação falsa.
E como observou William James, a verdade funciona como um sistema de crédito: assim como a moeda é um pedaço de papel cujo valor é garantido pelo Estado, muitas de nossas crenças se referem a coisas que nós nunca verificamos diretamente, mas que acreditamos serem verdade porque nunca vimos ninguém questioná-las, ou porque confiamos nas instituições e autoridades que as garantem. Quando as instituições perdem credibilidade e há muita moeda falsa circulando, é o sistema de crédito como um todo que entra em crise: as pessoas perdem a capacidade de distinguir a informação suspeita da confiável.
E conforme Fredric Jameson já apontava nos anos 1990, diante de um mundo que se tornou extremamente complexo, confuso e opaco, teorias conspiratórias que encaixam tudo numa narrativa com personagens e motivações bem definidas oferecem a quem se sente perdido o alívio de encontrar algum sentido na realidade.
Mas ao falar do negacionismo como um estado anímico, eu queria apontar para uma condição ainda mais profunda: se há tantos negacionismos que conseguem conquistar milhões de crentes hoje, é porque as pessoas estão buscando maneiras de negar aquilo que está diante delas. Há uma demanda por negacionismo porque estamos todos, em maior ou menor grau, em negação. Em negação, antes de mais nada, sobre a gravidade de nossa crise climática; mas em negação também sobre nossa total falta de controle sobre o sistema político e econômico que rege nossas vidas e segue caminhando em direção ao colapso ambiental como se nada estivesse acontecendo.
Acreditar que trocar a lâmpada que usamos vai salvar o meio ambiente, acreditar nas negociações da ONU, acreditar que é tudo um grande complô de cientistas pagos pela China... No fim das contas, tudo isso é negação. E quanto mais traumáticas se tornam as condições reais de existência, mais longe as pessoas vão buscar refúgio no imaginário – o que explica, me parece, a proliferação de crenças esdrúxulas a que estamos assistindo.
Por outro lado, estas crenças absurdas não são inteiramente arbitrárias, nem deixam de ter sua própria racionalidade. Se você pressente que o mundo está se tornando um lugar cada vez mais inóspito, mas não acredita que seja possível, ou mesmo desejável, modificar o sistema econômico existente, aquilo que a extrema direita oferece faz bastante sentido. Se não há nada que se possa fazer quanto ao fato de que nosso destino final é um retorno ao estado de natureza, é melhor acelerar o processo, tomar a iniciativa em vez de ser pego de surpresa, e começar desde já a fechar fronteiras, expulsar imigrantes, perseguir minorias, tomar terras indígenas, intensificar a exploração do trabalho e da natureza. Por isso eu descrevo a extrema direita como uma política antissistêmica para quem não acredita que o sistema possa mudar.
IHU On-Line – Se este é o caso, como podemos responder ao negacionismo?
Rodrigo Nunes – As respostas se dão em diversos níveis. Em termos gerais, não adianta achar que vamos combater crenças arraigadas na própria identidade das pessoas apresentando “fatos” supostamente autoevidentes – como se o problema todo não fosse justamente a falta de entendimentos compartilhados sobre o que constitui uma evidência. É preciso um grande esforço pessoal de cada um de nós, e do debate público como um todo, para fazer duas coisas.
Por um lado, aumentar a “alfabetização digital” da maioria das pessoas, sua capacidade de filtrar informação, selecionar fontes confiáveis, entender os mecanismos de manipulação a que estão expostos. Por outro, promover uma educação “científica” em sentido amplo, isto é, uma melhor compreensão de como fatos confiáveis podem ser construídos, através de quais procedimentos, sob quais dispositivos de controle de suas respectivas comunidades etc.
Parafraseando Bruno Latour, não se trata de opor o não-construído ao construído, uma vez que mesmo os fatos científicos são obtidos através de um processo de construção, mas de opor o bem construído àquilo que é construído de maneira deficiente ou mal-intencionada. Dizer “confie na ciência” dogmaticamente não ajuda em nada quando é justamente a legitimidade das instituições que está em jogo. É como se um soberano exigisse obediência sem oferecer satisfações: “confie em mim e acabou”. É preciso reconquistar confiança, reconstruir a legitimidade perdida, o que passa naturalmente por reconstruir estas instituições e as relações que as pessoas têm com elas.
Num nível mais alto, a resposta tem de se dar através da regulação e controle de grandes plataformas como Facebook, YouTube, Amazon etc. Que agentes privados com fins lucrativos tenham tanta influência sobre a vida política é obviamente uma ameaça a qualquer noção de democracia. Isto ficou ainda mais evidente quando elas baniram Donald Trump: como teriam sido os últimos quatro anos da história da humanidade se elas tivessem feito isso em 2016?
Para limitar este poder, é urgente introduzir medidas como mecanismos de transparência e controle social para supervisionar decisões sobre algoritmos, códigos de etiqueta etc.; legislação para coibir práticas monopolísticas; e, como horizonte final, a transformação integral ou parcial destas grandes companhias em propriedade pública sujeita a dispositivos de governança com ampla participação da sociedade civil global, visto que seu alcance é o mundo todo.
Mas no fim, se o modo como descrevo o negacionismo está correto, suas causas estão no mundo, logo é o mundo que precisa mudar. Isto implica, primeiro, buscar compreender o que estas crenças oferecem às pessoas, quais sentimentos elas mobilizam e quais necessidades atendem, e focar neles. E, segundo, encarar de frente os grandes problemas de que estamos fugindo: a estagnação do capitalismo, o subemprego estrutural, o aumento da desigualdade, o déficit democrático crescente e, acima de tudo, a crise climática. O pior do negacionismo é nos obrigar a discutir fantasias quando há tantos perigos reais à nossa porta.
IHU On-Line – O clima de impeachment de Bolsonaro foi uma nuvem passageira que já se dissipou ou ainda é uma possibilidade?
Rodrigo Nunes – Na história do Brasil, há uma variável que costuma ser certeira para prevermos situações de ruptura ou degradação institucional: a elite tem um candidato eleitoralmente viável? Se não tem, a probabilidade de golpe ou aventuras como Jânio [Quadros] e [Jair] Bolsonaro é alta. Quando o 1% brasileiro embarcou no impeachment, eles estavam seguros de que o PSDB ganharia em 2018. Quando veio a campanha e eles se deram conta da caixa de Pandora que haviam destapado, só lhes sobrou encampar a candidatura de Bolsonaro.
Assinou-se ali uma espécie de duplo contrato de risco. O 1% desejava reformas para acelerar ainda mais o fluxo de capitais e a exploração do trabalho e da natureza, e por isso apostou num oportunista desqualificado, pouco confiável, com claras tendências autoritárias, interessado unicamente em consolidar uma base extremamente ideologizada e tirar vantagens pessoais do poder. Já Bolsonaro sabia que as medidas que a elite cobrava eram altamente impopulares, mas apostava que toda a direita estaria obrigada a apoiá-lo se ele mantivesse seu capital eleitoral e estreitasse seu controle sobre o aparato estatal.
Em resumo, o 1% apostava que conseguiria atingir todos os seus objetivos antes de Bolsonaro chegar a um fechamento autocrático, enquanto Bolsonaro apostava que, pela força eleitoral ou pela força bruta, tornaria o 1% seu refém. Para usar a linguagem do mercado, a degradação institucional já estava “precificada” por ambas as partes desde o início.
O que mudou desde então? A pandemia complicou o jogo, porque ajudou a “passar a boiada”, mas também aumentou o custo político de medidas privatizantes. Mais importante, ela acentuou muito o impasse fundamental de Bolsonaro: para fidelizar a base, ele precisa governar para os 30%, mas agradar este segmento, ainda mais diante de um choque de realidade como uma crise sanitária, arrisca desagradar todo o resto.
Nossa sorte é que os Bolsonaros têm cabeça de baixo clero – se eles pensassem grande poderiam ter construído uma hegemonia eleitoral como a do PT, e muita gente teria embarcado. Mas esta janela agora parece ter se fechado, e o piso alto cada vez mais se assemelha a um teto baixo: ele não baixa muito de 30%, mas também não sobe. Sua rejeição, por outro lado, tem crescido tanto que tem feito refluir o antipetismo, a tendência política mais importante dos últimos cinco anos.
Qual o cálculo da elite e da classe política nessa hora? Bolsonaro ainda tem muito apoio para sofrer impeachment, mas já não tem força política para fazer ninguém de refém. Além disso, segue não havendo uma candidatura alternativa da direita para 2022. Logo, é melhor deixá-lo onde está. Ninguém realmente acredita que ele possa melhorar. Todo mundo já entendeu que o jogo dele é esse que Fernando Limongi chamou de “presidencialismo de delegação”, e Marcos Nobre descreveu como parasitário: ele deixa aos outros a responsabilidade por fazer as coisas funcionarem e leva crédito pelo que dá certo, joga pedra no que sua base não gosta, e ocasionalmente acena com a ameaça de golpe.
Mas um governo acuado, precisando constantemente conquistar apoio, entrega muito mais a seus aliados. Então a situação chegou a um equilíbrio que serve a todas as partes: a Bolsonaro, que segue impune e cultivando seus seguidores; ao grande capital, que assim tem mais escopo para extrair reformas; e ao Centrão, que vai levando tudo que não estiver pregado no chão.
Se Bolsonaro se tornar politicamente tóxico, ou aparecer um candidato mais ao centro capaz de vencê-lo, será abandonado sem cerimônia no meio da estrada, e todos os que hoje o sustentam se apresentarão como defensores da democracia e o responsabilizarão individualmente pela hecatombe da Covid-19. Se ele se recuperar, ou a elite continuar sem candidato forte, a situação se reequilibra em seu favor, e amplia-se a tolerância para com o aparelhamento do Estado em benefício de sua família. Em suma, o duplo contrato de risco segue válido, ele só se tornou mais perigoso para Bolsonaro.
IHU On-Line – E os militares? Como entender o papel deles e a movimentação da semana passada?
Rodrigo Nunes – Da mesma maneira. Se a oportunidade para um fechamento do regime tivesse se apresentado no início do mandato, não duvido que tivesse havido apoio civil e militar considerável. Mas agora Bolsonaro perdeu força política e a confiança de muita gente. Os eventos da semana passada foram basicamente os militares sinalizando ao presidente e às demais forças políticas que eles são uma variável independente e não morrerão abraçados a Bolsonaro.
Assim como o Centrão e o grande capital, eles entenderam que Bolsonaro agora precisa mais deles do que eles de Bolsonaro. Então eles mantêm os cargos em todos os escalões, retêm seu poder político, e deixam o presidente rosnar sozinho. Se Bolsonaro cair, eles poderão dizer que resistiram ao canto da sereia golpista e, naturalmente, se cacifarão para influir na transição e no próximo governo. Se Bolsonaro se recuperar, elas voltam a fazer o papel de ajudá-lo a intimidar os outros atores.
Creio que o risco de um golpe coordenado pelo Estado-Maior é mínimo. O perigo está nas polícias militares, nas tropas e no baixo oficialato das Forças Armadas, para não falar das milícias; e aí que está o bolsonarismo armado. Eles não possuem capacidade operacional para um golpe bem-sucedido, mas podem criar uma situação como a ocorrida na Bolívia: um caos social que obriga as Forças Armadas a intervir em nome da paz. Se esta intervenção seria contra ou a favor do governo depende muito das circunstâncias, imagino.
A questão é que o Estado-Maior não planeja um golpe porque não precisa. Participar de uma ruptura institucional, ainda mais se for para dar mais poder para alguém tão pouco confiável quanto Bolsonaro, é assumir um ônus completamente desnecessário para quem já tem tantos cargos e poder. E aqui talvez vejamos em breve a fatura destes seis anos de aventureirismo político em que vivandeiras civis como Temer foram bulir nos bivaques para atrair os granadeiros novamente à política.
Depois de botar 6 mil oficiais no governo, gerindo orçamentos, celebrando contratos, negociando com parlamentares, como se manda essa gente toda de volta ao quartel? Talvez no futuro lembremos da semana passada como o momento em que os militares saíram da sombra de Bolsonaro para se afirmar em definitivo como força política independente, cujos interesses terão de ser negociados no futuro como se negocia com os partidos a composição do governo. Considerando que a tropa é mais radicalizada e bolsonarista, os comandantes têm um ótimo argumento para fazer com que os outros atores sentem para conversar.
Resumindo, tenho menos medo de golpe que da possibilidade de já estarmos numa trajetória que conduz inevitavelmente a um arranjo tipo Turquia ou Egito, onde governos civis convivem com a tutela permanente do poder militar. O que, diga-se de passagem, faz perfeito sentido se a elite não está mais interessada em buscar qualquer conciliação com demandas democratizantes vindas das camadas mais pobres, mas apenas impor um regime cada vez mais draconiano de exploração. Parabéns aos liberais que ajudaram a construir isto.
IHU On-Line – E a esquerda, ela tem condições de se realinhar e constituir uma frente para enfrentar a extrema direita em 2022? Ou uma saída mais ao centro, afastando-se das polarizações, ganha mais força?
Rodrigo Nunes – Dentro da esquerda, a conversa sobre uma frente ampla contra Bolsonaro volta a cada tanto. Mas ela me parece ter uma função essencialmente fática, no sentido linguístico da palavra: ela serve para manter o canal aberto, para lembrar que pode ser necessário falar sobre isso mais adiante. Fora isso, ela não tem, por ora, conteúdo nenhum.
Por quê? Porque só há três hipóteses em que a direita moderada se aliaria à esquerda.
A primeira seria se eles se sentissem diretamente ameaçados por uma guinada autoritária e buscassem proteção numa frente democrática. Até aqui eles claramente não tiveram medo disso, logo não há nada a negociar.
A segunda opção seria que a esquerda crescesse tanto que se tornasse impossível pará-la sem ruptura institucional, e eles então se comprometessem a isolar Bolsonaro em troca da esquerda abrir mão de algumas pautas. Tal crescimento não está na ordem do dia, logo aí também não há nada a negociar.
A terceira hipótese seria eles terem um candidato competitivo contra Bolsonaro e convocarem a esquerda a apoiá-los sem oferecer nada em troca fora garantias democráticas mínimas. Como rendição incondicional não se negocia, aí também não há nada a negociar.
Nas atuais circunstâncias, a esquerda não tem nada a oferecer de que a direita necessite. Assim, suas opções são ou a capitulação a um candidato de centro-direita ou a repetição do cenário de 2018, indo para o segundo turno contra Bolsonaro e dependendo do apoio da direita moderada para tentar vencer. E eu simplesmente não vejo que a relação entre Bolsonaro e a direita moderada tenha mudado o suficiente para que esta troque de lado em 2022.
Com Lula no páreo, a coisa muda, porque a esquerda passa a ter chances não apenas de chegar ao segundo turno, mas de ganhar. E aí a questão se torna menos construir uma frente ampla do que certificar-se que a centro-direita não apoiará tentativas de desvirtuar o processo eleitoral. É uma preocupação perfeitamente lógica, porque as ameaças virão de vários lados: da família Bolsonaro, que não hesitará em mobilizar seus apoiadores e a máquina estatal; do ativismo das cortes superiores e da caserna; do bolsonarismo difuso em diversas esferas (polícias, juízes de primeira instância, empresas, milícias). As eleições de 2022 serão as mais perigosas da história da Nova República.
Diante disso, como Lula tem se movido? Os últimos cinco anos foram uma espécie de grande constituinte extraordinária em que o 1% aproveitou a desorganização da esquerda para refazer a Constituição de 1988 unilateralmente, sem negociação. O custo disso, por outro lado, foi uma instabilidade que passou a afetar a economia: imprevisibilidade, insegurança jurídica, política externa na mão de adolescentes, destruição de nossa imagem internacional, aparelhamento crescente do aparato repressivo... Minha impressão é que Lula está sinalizando um acordo: aquilo que a elite tiver ganho nesse ínterim fica como está, é espólio de guerra; mas depois passa-se a régua e faz-se uma repactuação com todas as forças políticas para assegurar um sistema minimamente funcional.
É como se ele dissesse: “eu posso ser o candidato de centro”. Se Bolsonaro se tornar muito tóxico e a centro-direita não tiver candidato, a oferta pode funcionar. Mas será sempre um equilíbrio frágil para a esquerda. Ainda mais se ela estiver escorada unicamente no carisma e capital eleitoral de Lula, e não numa base social capaz de sustentá-la para além das eleições. Reconstruir esta base é uma questão tão ou mais urgente que discutir alianças para 2022, mas é uma conversa que infelizmente atrai bem menos interessados.
É óbvio que as próximas eleições serão decisivas: um segundo governo Bolsonaro seria uma transformação irreversível, como foram Orbán na Hungria ou Modi na Índia. O erro é achar que ganhar eleições é só questão de fazer alianças e uma boa campanha, e não a consequência de um trabalho político bem feito. A base social que fez do PT a potência que ele já foi não é mais a mesma: mudou o partido, mudaram os sindicatos e movimentos, mudou a sociedade. Se a esquerda quiser se manter relevante no médio e longo prazo, ela precisará construir estruturas e um programa capazes de dialogar com o trabalhador informal, com os entregadores e motoristas de Uber, com o morador da periferia, e a partir daí formar uma base social mobilizada para lutar pela expansão da proteção social, por igualdade econômica, racial e de gênero, pela transição para uma economia pós-carbono.
Essa questão é ainda mais urgente hoje porque a extrema direita tem uma base social grande e capilarizada. Eu achava, por exemplo, que em 2020 os partidos e sindicatos deveriam ter investido todos os recursos em apoiar os grupos que estão na linha de frente nas periferias – sem esperar retornos imediatos, mas para estabelecer relação, abrir diálogo, criar confiança.
Já em 2021, em vez de ficar só batendo na tecla do impeachment, deveríamos estar fazendo uma grande campanha coordenada contra o teto de gastos, semeando as condições políticas para derrubá-lo no futuro. Se a estratégia da esquerda for primeiro voltar ao poder e aí ver o que dá para fazer, ela até pode voltar ao poder, mas fatalmente verá que o que dá para fazer é bem pouco.