Pesquisadora analisa o impacto das novas tecnologias no trabalho e nos trabalhadores rurais e também as consequências e transformações que se impõem para a cadeia de produção de alimentos
Desde o primeiro movimento da primeira revolução industrial se discute o impacto das máquinas sobre o trabalho. Agora, na era da chamada revolução 4.0, esses impactos se agudizam e geram outros problemas. Um dos exemplos mais explícitos tem se dado no campo, diante da chamada agricultura 4.0. À medida que a tecnologia entra no campo, saem os trabalhadores mais simples, como os que atuam em colheitas. Os que ficam, permanecem em postos cada vez mais precarizados. “Ainda que em algumas ocasiões esses trabalhadores temporários cumpram certas atividades no interior do latifúndio, certamente estão fazendo isso em menor grau e número”, acrescenta a socióloga Fabiana Scoleso, que tem se dedicado ao tema.
Na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ela ainda alerta que é preciso levar em conta que “a tecnologia é produto humano sob controle do capital. Precisamos compreender que não é o único fundamento que determina o desemprego e a maior demanda por qualificação, embora seja um fator importante”. Assim, mesmo quem se qualifica pode não se realocar nessa realidade.
Além disso, grande parte dessas tecnologias do campo só são acessíveis para os grandes produtores, o agronegócio e sua manifestação plena do capital no Brasil rural. “É possível entender que principalmente o médio produtor ainda consegue acessar esses financiamentos e promover algum grau de modernização tecnológica em seus latifúndios. De fato, sua capacidade econômica definirá como será integrado à cadeia assim como sua condição e formas de concorrência neste processo”, detalha.
Só que os problemas não param por aí. “O capitalismo é sistema contraditório e na pandemia revelou ainda mais sua letalidade na medida em que as exportações de commodities permitiram a garantia de acesso à alimentação para os países compradores ao mesmo tempo que produtos básicos da nossa cesta básica encareciam e passavam a ser proibitivos a parcela significativa da população”, revela Fabiana. Ou seja, na mesma proporção em que batíamos recordes de produção de soja para exportação, por exemplo, víamos a população não mais conseguir comprar comida.
Ademais, a agricultura familiar, grande responsável por colocar comida de verdade na mesa, vem ainda sofrendo com as políticas do atual governo. “Minha percepção nos últimos meses é a de que há uma tentativa de deslocar o eixo dela da resistência para a disciplina do agronegócio”, resume Fabiana, em sua análise sobre dilemas e contradições da Agricultura 4.0.
Fabiana Scoleso (Foto: Arquivo pessoal)
Fabiana Scoleso realiza pós-doutorado em Sociologia do Trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - IFCH-Unicamp. Também integra o Grupo de Estudos Mundos do Trabalho. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, atua como professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins - UFT e coordenadora do Observa-TO.
IHU On-Line – Levando em conta a realidade brasileira, como a revolução tecnológica tem impactado a vida no campo tanto no que diz respeito à produtividade como nas relações de trabalho?
Fabiana Scoleso – Na Agricultura 4.0, assim como na Indústria 4.0, há uma nova engenharia de produção que não se limita ao território ou ao espaço fabril. Ela é composta de uma série de elos, conexões e componentes político-econômico-jurídicos, muito embora sua base esteja consolidada na intensificação dos processos produtivos automatizados/tecnologizados e nas mudanças contínuas na cadeia geradora de valor e logística. É na política, nas reformas e na flexibilização das leis que estão dadas a capacidade de ampliação extra de acumulação pelo caráter avalista do estado neoliberal na mediação das regras do jogo econômico e financeiro.
A ciberagricultura do século XXI (ou e-agriculture) está submetida à mesma lógica que ampliou o uso do trabalho morto por meio do maquinário digital substituindo atividades de análise de solo, plantio e colheita por ferramentas automatizadas, robotizadas, supervisionadas e controladas remotamente com uso de drones e smart rovers (veículo não tripulado que coleta imagens das lavouras, analisa e faz a predição das ações que o agricultor deve tomar em sua cultura). Não à toa tem ficado cada vez mais evidente a alteração significativa da atividade laboral na agricultura.
É importante ressaltar que a maior parte destes componentes está presente nas grandes empresas transnacionais espalhadas pelo território nacional e que de certa forma controlam parte importante do setor. Os médios e pequenos agricultores nem sempre têm todas essas tecnologias à sua disposição. Estamos falando de empresas que não apenas produzem no campo como também mantêm importantes complexos agroindustriais formados por usinas de biodiesel e laboratórios e que também investem em terminais portuários. Ou seja, quando falamos em Agricultura 4.0 estamos tratando de uma cadeia de produção de valor bastante ampla e complexa.
No que diz respeito às relações de trabalho, a agricultura, com seus avanços tecnológicos, também tem prescindido do trabalho vivo, ainda que em tantos outros elos e pela via da precarização, ainda exista uma força de trabalho ativa. Não há como negar que a morfologia e a composição laboral se alteraram: um setor que demanda força de trabalho qualificada, que também se vale de outras modalidades de contratação, onde cresce exponencialmente a terceirização/prestação de serviços pelas chamadas AgroTechs e que também se vale de uma quantidade significativa de trabalho informal (de acordo com dados do IBGE compilados pela McKinsey em 2018, o número chega a cerca de 77% de informalidade no campo. “Como a alta informalidade no Brasil freia a produtividade das empresas”. Revista Exame, 30/09/2019).
IHU On-Line – Em que consiste essa revolução tecnológica no campo? Como compreender essas transformações que vão de máquinas e implementos até avanços da biologia, como genética e outras técnicas?
Fabiana Scoleso – É o que pontuei acima. Estamos falando de uma agricultura que está no marco das mudanças tecnológicas e de gestão e que impõe uma reestruturação produtiva permanente. A cadeia de valor do Agro e todos os elementos a ela vinculados como a nano e biotecnologias (ramo das sementes transgênicas), inclusive as Agtechs, Fintechs e Logtechs, formam esse complexo universo que otimiza a produção agrícola em todas as suas etapas e que tem seus processos e decisões orientados a partir de dados climáticos, condições do solo, características da lavoura, entre outros.
Por isso os processos automatizados estão vinculados ao conceito de Internet das Coisas (IoT – Internet of Things), que tem quatro pilares: 1) a gestão de dados; 2) produção utilizando novas ferramentas e técnicas; 3) sustentabilidade; 4) profissionalização. Tudo isso para reduzir perdas, aumentar a produtividade e garantir também a redução de custos.
Sem contar com os sistemas informativos computadorizados como a GIS (Geographic Transformation System), que permite análise de temperatura, umidade e outros fatores climáticos como um grande sistema de controle das plantações e que podem ser administrados remotamente. São inúmeros os aspectos que definitivamente não conseguirei expor aqui, mas acredito que os exemplos dados acima já demonstram muito da capacidade, do modelo produtivo do qual estamos falando e também sobre os impactos que pode gerar nas diversas dimensões da vida, especialmente sobre a natureza, os territórios e os mundos do trabalho.
IHU On-Line – Que tipo de produtor rural consegue acessar essas novas tecnologias do campo? Quais as possibilidades de pequenos produtores, especialmente da agricultura familiar, acessarem esses avanços?
Fabiana Scoleso – São especialmente as grandes corporações que conseguem acessar os recursos em um volume maior. Suas condições econômicas, seus constantes investimentos no desenvolvimento de novas tecnologias, em ciência, evidentemente permitem que estes tenham mais acesso e condições de implementação. Não à toa são as grandes corporações historicamente conhecidas que continuam dominando e controlando globalmente setores como produção de sementes, fertilizantes e outros.
Aos pequenos e médios produtores rurais estão disponíveis os financiamentos e linhas de crédito oferecidos pelo BNDES, o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte - FNO, o Fundo de Desenvolvimento da Amazônia, assim como os Fundos de Investimentos da Amazônia - Finam, recursos que são administrados pelo Banco da Amazônia vinculado ao Ministério da Economia e integrado ao Plano Plurianual para a Amazônia Legal - PPA, que influem no corolário de investimentos e inovação do agro: tecnologias, negócios, gestão, controle, produção e logística. A arquitetura financeira é promovida pelo Estado ou por entidades privadas que têm se ocupado de gerar créditos para o setor.
É possível entender que principalmente o médio produtor ainda consegue acessar esses financiamentos e promover algum grau de modernização tecnológica em seus latifúndios. De fato, sua capacidade econômica definirá como será integrado à cadeia assim como sua condição e formas de concorrência neste processo.
IHU On-Line – Na realidade da fábrica, ou em muitos postos de trabalho na cidade, o avanço tecnológico substitui mão de obra humana, mas há sempre a tese de que essas pessoas não ficarão sem trabalho se buscarem qualificação para operar máquinas. Quais as falhas na premissa dessa tese? Em que medida esse cenário se faz presente no mundo rural?
Fabiana Scoleso – A tecnologia é produto humano sob controle do capital. Precisamos compreender que não é o único fundamento que determina o desemprego e a maior demanda por qualificação, embora seja um fator importante. Devemos também mencionar que o corolário neoliberal em curso no Brasil desde o princípio da década de 1990 pressupôs uma série de reformas como prerrogativa para nossa “melhor” inserção global. A reestruturação produtiva daqueles tempos também nos trouxe o chamado toyotismo sistêmico e uma série de formas renovadas de gestão muito bem analisadas pelo professor Giovanni Alves em seu livro O novo (e precário) mundo do trabalho (São Paulo: Boitempo, 2000).
Giovanni Alves em seu livro O novo (e precário) mundo do trabalho (São Paulo: Boitempo, 2000) | Foto: Divulgação/Boitempo
As reformas na legislação trabalhista alteraram, já naquele momento, a morfologia laboral, especialmente com a intensificação da terceirização. Estas reformas foram acompanhadas de diversas outras, como a educacional, que consolidou a tese de que a qualificação profissional solucionaria a integração da trabalhadora e do trabalhador a esse novo modelo produtivo tecnologizado. Mas é evidente que o ritmo das mudanças não é o mesmo da qualificação profissional.
Da mesma forma, é importante dizer que as novas modalidades de contratação/demissão provocaram enorme rotatividade no emprego e uma mudança importante no próprio perfil da classe trabalhadora, que passou a ser mais jovem comparada com as décadas anteriores. Outro ponto é que não são somente as transformações tecnológicas e as oportunidades de qualificação que determinam as condições de absorção da força de trabalho. É preciso compreender a própria dinâmica do capitalismo e sua incrível capacidade de deslocamento em busca das vantagens que lhes permitem ampliar sua capacidade de acumulação, haja vista o recente caso da saída da Ford do Brasil. O papel do Estado como avalista das “regras do jogo” também não pode ser esquecido.
Por fim, a reestruturação produtiva permanente que ora vivenciamos altera muito rapidamente o modo de produção e a organização do trabalho. Novas empresas prestadoras de serviço, absorção de trabalho altamente qualificado ao mesmo tempo que o setor do agronegócio é o que mais agrega trabalho informal. Todos esses elementos precisam ser considerados para compreendermos para onde vai a classe trabalhadora, seja a do campo ou a da cidade, como se configuram, como se organizam, como se fragmentam e precarizam nesta nova forma de organização social do trabalho.
IHU On-Line – Como os trabalhadores sazonais do campo, aqueles que realizam as piores tarefas em colheitas, por exemplo, devem ser impactados pelo Agro 4.0?
Fabiana Scoleso – Essas trabalhadoras e trabalhadores já foram e continuam sendo afetados pela introdução da maquinaria do nosso tempo. Processos como plantio e colheita já são há algum tempo mecanizados, agora conduzidos por GPS, controlados remotamente e alimentados com base em análise de solo para melhor aproveitamento do terreno. Ou seja, ainda que em algumas ocasiões esses trabalhadores temporários cumpram certas atividades no interior do latifúndio, certamente estão fazendo isso em menor grau e número.
IHU On-Line – Como a sua experiência no Acampamento Dom Celso, do MST, em Porto Nacional (TO), lhe revelou que o avanço tecnológico no campo é uma ameaça aos trabalhadores rurais?
Fabiana Scoleso – O projeto de extensão que começamos a desenvolver dentro do Acampamento Dom Celso - MST em Porto Nacional/TO nos permitiu compreender quem eram aquelas mulheres, homens e crianças que ocupavam aquele território. Fruto de múltiplas vulnerabilidades, pessoas que perderam seus empregos, moradia e com grandes dificuldades de colocar alimento nas mesas de suas famílias, resultado, portanto, de expulsões deliberadas do metabolismo antissocial do capital. Famílias inteiras que viram no acampamento a possibilidade de ter um pedaço de terra para permanecer, plantar, colher e efetivar suas vidas.
Além disso, procuramos compreender aquele território que foi ocupado e que conserva integralmente o bioma Cerrado, algo cada vez mais raro de se ver no cenário tocantinense, especialmente por onde o agronegócio tem se instalado. Em uma pesquisa feita com imagens de satélite observamos que o território onde estava localizado o acampamento era cercado pela produção de soja, sendo ele o único reduto do Cerrado naquela extensão analisada. A demora no processo de reforma agrária e as constantes ameaças daqueles que reivindicavam para si a propriedade daquelas terras, foram também elementos que nos chamaram a atenção na composição do projeto de pós-doutoramento que ora desenvolvo.
Era o avanço das grandes lavouras de soja, seus modos de produção, seus impactos sobre a natureza, territórios e mundos do trabalho que me ajudariam a entender a trípode destrutiva do capital no campo, tendo como referências os estudos do prof. Ricardo Antunes (Sociologia do Trabalho - Unicamp), do prof. Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Geografia - USP) e do prof. Juan Manuel Sandoval Palacios, do Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH - México).
>IHU On-Line – O Agro 4.0 é compatível com a sustentabilidade?
Fabiana Scoleso – Se entendermos que o conceito de sustentabilidade é uma criação do capital, sim. Considerando a letalidade do sistema do capital e sua capacidade destrutiva, a resposta é não. Há uma tentativa histórica de compatibilizar essas duas dimensões, mas o capitalismo, que é, por natureza, expansionista e destrutivo, não nos possibilita concordar com esta tentativa de consenso.
Na história, é apenas na década de 1960 que começa a acontecer uma mudança na percepção ambiental manifesta em acordos, convenções e leis, mas do e para o capital, porque as populações das florestas e rios, em sua grande maioria, sempre tiveram esta percepção. No Brasil, a derrubada de parte da Floresta Amazônica foi considerada um “mal necessário” para o desenvolvimento. Códigos Florestais no Brasil passaram décadas sem serem alterados e sabemos bem qual a posição do atual governo em relação às questões ambientais, ao Acordo de Paris etc. Assim como as empresas buscam vantagens na legislação trabalhista para assegurar suas margens de lucro e definirem sua estratégia de expansão, também sobre a legislação ambiental temos as lacunas que permitem uma nova e próspera acumulação para as empresas.
Não fosse assim certamente não estaríamos cruzando as fronteiras que vão da devastação ambiental, passando pela destruição e chegando a um colapso ecológico, onde encontramos também os fundamentos da pandemia de Covid-19. Vale lembrar do importante livro do prof. Luiz Marques (Unicamp) chamado Capitalismo e colapso ambiental, publicado pela Editora da Unicamp. No prefácio à 3ª edição Marques destaca que “a verdade é que a curva da relação custo ambiental/benefício econômico do capitalismo entrou irreversivelmente em fase negativa, porque a conta ambiental do crescimento econômico vai se tornando impagável não já para a próxima geração, mas para a geração de crianças e jovens de nossos dias (MARQUES, 2018, p. 15).
Será que as grandes corporações transnacionais que têm convergido seus investimentos para a América Latina estão preocupadas, de fato, com a questão ambiental? Será que seus interesses são compatíveis com a preservação ambiental? O tempo do capital não é o mesmo tempo da natureza. Evidente que algum grau de preocupação é imposto pelas chamadas certificações de produtos e seus selos de qualidade que os tornam aptos à venda no mercado internacional. Será que essas iniciativas são suficientes para evitar um colapso ambiental? Pelas reportagens, pesquisas e dados que temos acompanhado, a resposta é não.
IHU On-Line – Como a experiência da pandemia impactou os processos de transformação tecnológica no campo e, por conseguinte, os trabalhadores?
Fabiana Scoleso – A pandemia nos trouxe constatações interessantes a respeito da produtividade do campo e sobre sua relação com o mundo do trabalho. Primeiro aspecto a ser destacado é a medida do governo que transformou mais de 60 atividades laborais em atividades essenciais (Decreto Federal n. 10.282 de 20/03/2020 foi novamente atualizado pelo Decreto n. 10.329 de 28/04/2020 publicado no dia 29/04/2020). Isso é uma demonstração de que, embora a letalidade da pandemia estivesse fazendo vítimas por todo o país, parcela da classe trabalhadora não teve alternativa diante da decisão do governo.
Obviamente não estamos aqui falando dos trabalhadores da área da saúde e da segurança pública, embora também vejamos que faltaram e continuam faltando cuidados com as e os profissionais dessas áreas. Estamos falando de setores econômicos interessados na manutenção de suas atividades. Embora as grandes corporações do campo utilizem tecnologia em seu processo produtivo, é preciso compreender que a produção circula, que existem inúmeros elos da cadeia de valor do agronegócio que foram mantidos ativos para geração de riqueza e valor em plena pandemia.
Não à toa essa circulação acelerou processos de contágio em vários estados, especialmente em municípios que concentram atividades agroindustriais. Nos primeiros meses da pandemia isso ficou bastante evidente nos estudos de espacialização da Covid-19 no Estado do Tocantins. Destaco aqui o importante trabalho realizado pelo prof. Rodolfo Luz do curso de Geografia da Universidade Federal do Tocantins - UFT que, semanalmente, desde que a pandemia foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde - OMS, tem se ocupado desta tarefa.
Outro ponto que preciso destacar para responder a esta pergunta é que a soja brasileira bateu pelo segundo ano consecutivo recorde de produção e exportação. Só esta informação já nos traz muitas respostas. Como, em pleno ciclo pandêmico, o ciclo produtivo da soja obteve tamanho resultado? Somatório de tecnologia, proteção do ciclo produtivo por parte do estado que é avalista do jogo econômico por meio de decretos, a demanda internacional por commodities, dentre outros.
IHU On-Line – Se boa parte dessa produção do Agro 4.0 é voltada para exportação, isso representa um risco para a segurança alimentar no Brasil?
Fabiana Scoleso – Esta resposta de certa forma também completa a anterior. Estamos falando em um dilema entre segurança alimentar e soberania alimentar e não podemos perder o horizonte das diferenças que existem entre esses dois conceitos. Explicando de forma simplificada, o primeiro se refere à necessidade de garantir acesso à alimentação de qualidade enquanto o segundo trata das garantias de um povo em produzir alimentos sem depender de poderes externos. São conceitos que até podem parecer ter suas convergências, mas são definitivamente proposituras relacionadas com interesses profundamente antagônicos, por ser a fome e o acesso à alimentação de qualidade um problema social estrutural que atinge especialmente as classes trabalhadoras e os mais vulneráveis.
Os debates internacionais sobre o tema e as propostas oriundas deles já estiveram mais presentes nas políticas públicas sobre alimentação. O Conselho de Direitos Humanos da ONU nos últimos anos tem tratado da questão propondo, inclusive, a constituição de um “Fundo Mundial de Segurança”, tema presente no relatório elaborado por Olivier De Schutter sobre direito à alimentação.
Mas o capitalismo é sistema contraditório e na pandemia revelou ainda mais sua letalidade na medida em que as exportações de commodities permitiram a garantia de acesso à alimentação para os países compradores ao mesmo tempo que produtos básicos da nossa cesta básica encareciam e passavam a ser proibitivos a parcela significativa da população. Os constantes aumentos nos itens básicos da cesta provaram que as vantagens comparativas e o interesse em tirar proveito delas neste período estavam acima de qualquer garantia de segurança alimentar para as brasileiras e brasileiros.
Em recente entrevista, Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio Brasil-China, disse: “não se pode brincar com a segurança alimentar do povo chinês” (“Com armazéns e fábricas, China amplia presença no agronegócio”. Folha de São Paulo, 27/07/20). Será que as empresas chinesas e transnacionais que têm sido implantadas no Brasil têm alguma preocupação com a segurança ou soberania alimentar das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros? Importante também salientar a mudança de direção nas políticas adotadas pela Companhia Nacional de Abastecimento - Conab, que atualmente não tem condições de influir neste jogo político econômico, quando no passado foi responsável por equilibrar preços no mercado doméstico.
Neste sentido, estamos sim vivendo um risco iminente. A grande responsável pela presença de alimentos saudáveis na mesa dos brasileiros tem sido a Agricultura Familiar. Minha percepção nos últimos meses é a de que há uma tentativa de deslocar o eixo dela da resistência para a disciplina do agronegócio.
A pandemia acelerou a possibilidade de retornarmos ao Mapa da Fome, conforme destacado por reportagem da CNN Brasil de 15 de outubro de 2020 intitulada “O Brasil no caminho de volta ao mapa da fome e o impacto da pandemia”. Outro importante documento que devo mencionar é o relatório elaborado pelo ETC Group/ Glocon/ Inkota/ Fundación Rosa-Luxemburg publicado em setembro de 2019 chamado “La insostenible agricultura 4.0 – digitalización y poder corporativo em la cadena alimentaria”. Nele as pesquisadoras e pesquisadores chegam a inúmeras conclusões, dentre elas a de que existem demonstrações contundentes de que as novas tecnologias estão mudando o mundo e arrastando de passagem a segurança alimentar, demonstrando o poder e o controle que as empresas do setor agrícola e alimentar têm sobre setores como sementes, agroquímicos, fertilizantes, máquinas e dados agrícolas, comércio de grãos, entre outros.
Acredito que o conjunto dessas informações nos permite compreender os motivos pelos quais a segurança alimentar no Brasil e em outras partes da América Latina está severamente comprometida.
IHU On-Line – A agricultura é um dos poucos setores que têm mantido estabilidade e em muitos casos até crescido na pandemia. Mas, ao mesmo tempo, no Brasil pandêmico a fome é algo real e presente e o custo de alimentos básicos é cada vez maior. O que isso revela sobre nosso tempo e nossas políticas para o desenvolvimento no campo?
Fabiana Scoleso – Revela que a configuração do poder global, a força que as empresas do setor, seus respectivos representantes, suas think tanks e a Bancada Ruralista têm no Congresso Nacional, dominam e pressionam poderes em busca da ampliação de seus interesses, forçando, na maior parte das vezes, retrocessos na legislação socioambiental e em diversos outros campos do direito (“O agro e lobby: a bancada ruralista no Congresso”, reportagem escrita por Luis Castilho e publicada no Le Monde Diplomatique Brasil em 4 de setembro de 2018.
Se o lobby do agronegócio está institucionalizado, como aponta a matéria, é evidente que nossas políticas para o desenvolvimento do campo estão subordinadas aos seus setores e interesses. É neste sentido que vimos as ações do governo para manter o funcionamento das suas atividades ao longo do ano de 2020, salvaguardando os interesses desses grupos enquanto milhares de trabalhadoras e trabalhadores colocavam suas vidas em risco por conta da Covid-19, além de perderem renda durante o processo por conta dos programas do governo que suspenderam contratos de trabalho, reduziram jornada e que diminuíram salários (MP 936/2020). Vale ressaltar também que a reforma agrária está paralisada, mas os despejos durante a pandemia não cessaram. Neste sentido dá para compreender em que eixo estão as políticas para o campo e quem está em vantagem ou desvantagem nesta história.
IHU On-line – Quais os desafios para conceber avanços tecnológicos no campo sem prejudicar trabalhadores rurais e pequenos produtores?
Fabiana Scoleso – Os desafios são grandes. Ou o Estado assume sua tarefa na mediação desta relação conflituosa por natureza, ou iremos presenciar um aumento ainda mais expressivo no número de desempregados, desalentados e miseráveis, ou, no caso dos pequenos produtores, da impossibilidade de continuar com suas atividades. É preciso interromper este processo de desconstitucionalização de direitos sociais que só tem colocado trabalhadoras e trabalhadores em condições aviltantes de existência.
Há sempre uma saída institucional, entretanto, está longe de ser uma solução eficaz e mais distante ainda de ser assumida pelo atual governo. E também existem as rupturas institucionais. Estamos prontas e prontos para o quê? Eis o ponto.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Fabiana Scoleso – Gostaria de mencionar que as pesquisas realizadas ainda vão avançar mais. A pandemia também nos impôs limitações, porém estamos nos esforçando para tornar a pesquisa cada vez mais consistente quantitativa e qualitativamente. O certo é que grande parte dos estudos elaborados até agora já nos ajuda a pensar sobre a Agricultura 4.0, seu modo de produção, suas tecnologias, sobre o capital transnacional e seus impactos sobre a natureza, os territórios e os mundos do trabalho.