22 Março 2021
Na quarta-feira, 17 de março, o Osservatore Romano colocou uma notícia de 10 linhas na página 5. Título "Rumo às sanções dos EUA por interferência na votação". Sanções para quem? Para descobrir, é preciso ler as linhas da matéria. Washington poderia punir Rússia, China e Irã. “Os 007 estadunidenses apontam o dedo principalmente para Moscou, que durante a campanha eleitoral teria tentado desacreditar a figura de Biden”. "Na opinião deles", acrescenta o editor do Vaticano, encerrando a matéria.
Na quinta-feira, 18 de março, a imprensa mundial publicou manchetes com grande relevo sobre a bofetada de Biden a Putin “killer”. O L'Osservatore Romano traz um título de duas colunas na página 4: "Depois das acusações de Biden contra Putin / Moscou, chama de volta o embaixador em Washington". Somente na matéria se encontra a já famosa pergunta do entrevistador a Biden e sua resposta: "Eu acredito". O fraseado do Vaticano deve ser decifrado. Nada acontece por acaso no palácio apostólico e seus arredores. Não se fala nem se escreve ao acaso, não se silencia ao acaso, não se aumentam ou esvaziam notícias ao acaso.
A reportagem é de Marco Politi, publicada por Il Fatto Quotidiano, 21-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A extrema sobriedade do jornal do Vaticano tem suas origens em uma preocupação que assola o Papa Francisco desde o advento de Trump: o medo de que o mundo possa deslizar para uma guerra fria com todos os riscos associados.
Na primeira cúpula sino-americana desde a posse do governo Biden, o novo secretário de Estado Antony Blinken criticou duramente o governo de Pequim pela repressão em Hong Kong e pela dura perseguição aos uigures. Ao que seu homólogo chinês replicou que Washington "não pode mais falar com a China de uma posição de força".
O ponto crucial do problema está aqui. A euforia da década seguinte à dissolução da União Soviética, que havia produzido a ideia narcisista de um "fim da história" e a embriaguez de acreditar em uma única potência mundial dos Estados Unidos, deu lugar no novo milênio para a constatação de que Washington não é mais o “dominus” incontestado - político, econômico, militar - do cenário internacional. O resultado desastroso das aventuras militares no Afeganistão e no Iraque deixou sua marca. A Rússia de Putin, embora com sérios problemas internos, começou a desempenhar um papel importante no Oriente Médio e na Líbia, enquanto Pequim se estabeleceu como um gigante econômico com consideráveis ambições militares e espaciais.
Nessa situação, a Santa Sé acompanha o desenrolar dos acontecimentos com extrema atenção. Os diplomatas vaticanos, como todos os atores internacionais, não deixaram de perceber o fato de que nos círculos político-militares ocidentais aflora em algumas ocasiões a opinião de que mais cedo ou mais tarde podemos chegar a um conflito entre os Estados Unidos e a China. Não escapou que o presidente russo, Putin, tenha atualizado a doutrina nuclear de Moscou, prevendo novas hipóteses sobre a possibilidade de desferir o "primeiro golpe". Não escapou que Boris Johnson tenha decidido incrementar as ogivas nucleares da Grã-Bretanha em 40%. Nem que a atitude da China, que tenta ampliar seu espaço marinho com ações de intimidação, ameaçando ao mesmo tempo a independência de Taiwan. Nem escapa que Washington pressiona para alinhar a OTAN contra a China.
A questão diante da qual se encontra a política internacional hoje é se a competição e a rivalidade que ocorrem entre as grandes nações encontrarão seu equilíbrio de gestão como o era na Europa nos séculos XVIII e XIX (ao fim da aventura napoleônica) em um "concerto das potências” ou se correremos cegamente em direção a uma nova guerra fria.
O Papa Francisco está claramente a favor da primeira opção e não tem nenhuma intenção de permitir que o Vaticano seja arrolado numa guerra fria entre Washington e Moscou ou entre Washington e Pequim. Há sessenta anos, desde a época de João XXIII, a Santa Sé se coloca fora dos blocos. Não será Bergoglio quem permitirá que os pontífices banquem os capelães do Ocidente.
É por isso que o papa argentino rejeitou no ano passado a tentativa grosseira de Mike Pompeo de pressionar a Santa Sé a romper com a China, não renovando o acordo para a nomeação de bispos. Francisco nem mesmo quis receber o então secretário de Estado do governo Trump, justamente para enfatizar que ele não participava de um "chamado às armas".
Tampouco escapa à Santa Sé o fato de que há setores da mídia que alimentam o retorno ao clima de guerra fria, quando pintam a missão militar sanitária russa - que veio à Itália no ano passado para ajudar na luta contra Covid-19 - como uma longa manobra de espionagem de uma "KGB" de soviética memória ou quando descrevem a hipótese de um acordo entre uma empresa italiana e a empresa produtora da vacina Sputnik como uma tentativa russa de "colocar o pé" na União Europeia.
A Santa Sé saudou com satisfação a vitória de Biden nas eleições presidenciais dos Estados Unidos e seu retorno a uma abordagem multilateral revelada por gestos concretos como o retorno ao acordo climático, sua permanência na Organização Mundial de Saúde, a intenção de revitalizar o acordo com o Irã, a decisão estender o acordo New Start por mais cinco anos com Moscou para a limitação das armas nucleares.
Mas a Santa Sé não quer um retorno a novas formas (e histerias) de guerra fria. Francisco está pressionando para que a perspectiva de desarmamento nuclear seja seriamente relançada. Em sua viagem ao Japão em 2019 e em sua mensagem pelo 75º aniversário de Hiroshima, o Papa condenou não só o uso, mas a própria posse de armas nucleares.
Justamente na próxima semana, a comissão do Vaticano para o estudo do mundo pós-Covid, com o dicastério para o desenvolvimento humano integral, organizaram uma conferência para um cessar fogo global e o fim da produção e proliferação das armas.
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Vaticano cauteloso sobre o confronto EUA / Rússia. O Papa teme acima de tudo o retorno da guerra fria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU