14 Janeiro 2021
"Existe uma gama de intelectuais, muitos jornalistas, artistas e palpiteiros, que andam difundindo por aí que alguns versos do hino rio-grandense constituem uma abstração classicista. E o pior: supõem que os versos sobre 'tiranos' identificam o Império do Brasil; e que 'povo que não tem virtude acaba por ser escravo' também se refere a uma rejeição servil ao sistema monárquico. Estão absolutamente enganados. Tentam construir artificialmente significados sem o suporte real da história, os eventos do decênio 1835-1845", escreve Tau Golin, jornalista e professor-pesquisador dos cursos de graduação e pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo, Pós-doutor em História pela Universidade de Lisboa (Portugal) e pela Universidad de la República (Uruguai), em artigo publicado por Sul21, 13-01-2021.
Existe uma gama de intelectuais, muitos jornalistas, artistas e palpiteiros, que andam difundindo por aí que alguns versos do hino rio-grandense constituem uma abstração classicista. E o pior: supõem que os versos sobre “tiranos” identificam o Império do Brasil; e que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” também se refere a uma rejeição servil ao sistema monárquico. Estão absolutamente enganados. Tentam construir artificialmente significados sem o suporte real da história, os eventos do decênio 1835-1845.
Tais versos eram dirigidos ao partido farroupilha da maioria, liderado por Bento Gonçalves da Silva, que, ao assumir o poder, transformou o movimento numa tirania, cujo grupo do “gênio do mal” havia atrelado seus próprios partidários e as duas outras facções, especialmente o Partido da Minoria, composto por muitos civis, e liderado pelos irmãos Fontoura, entre outros.
O soldado-poeta Francisco Pinto da Fontoura, popularmente chamado Chiquinho da Vovó, fazia oposição aos tiranos de Bento Gonçalves, apelidado de Bambá e de Corvo. Antônio Vicente da Fontoura, liderança e ministro farroupilha, os denominava como o partido dos “masorqueiros”, sem apreço às práticas normativas da vida social e política. Eram autoritários, caudilhos tiranos. E sabia do que estava falando. Fora vereador, juiz de paz, admirador e leitor de Lafayette, o herói dos dois mundos, diretamente envolvido na elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Em seu artigo primeiro promulgava que “Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos.” Seus princípios impregnaram a Revolução Francesa, serviram de base aos Estados-nação de inspiração iluministas, e estabeleceu o paradigma da “igualdade” como norma e direito. De sua concepção adveio a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O poeta opositor interveio com nova letra às duas anteriores em uma conjuntura de completo ódio e desavença entre os farroupilhas. Ofensas, duelos, acusações e assassinatos eram comuns entre eles. Foi necessária uma mobilização tremenda da facção mais “constitucionalista” para a convocação de uma “assembleia constituinte”, pois as barbaridades da “mazorca” eram intolerável. Além da vontade exclusiva do Partido da Maioria ser o governo dos decretos e da vontade suprema de seus chefes, as denúncias de roubos, desvios de dinheiro “público” eram comuns. O coronel Netto obtinha imensos lucros, apresentando gastos que não realizara, forjando “justificativas pagamentos inexistentes” para ser ressarcido etc. Tais práticas chegaram até a comissão formada após o pedido coletivo de anistia pelos líderes farroupilhas, encarregada de ressarcir os seus gastos durante os dez anos de guerra civil. Antônio Vicente da Fontoura, ministro plenipotenciário dos rebeldes nos acertos de paz, e integrante da comissão, escreveu em seu diário que estava “cheio de desgostos e antevendo já as exigências e as ladroeiras dos ambiciosos, dos egoístas e dos mashorqueiros, que muito devem importunar essa comissão de que sou membro”.
O Chiquinho da Vovó estava imerso a tudo. A luta interna entre os farroupilhas para a convocação e eleição de uma Constituinte. Por fim, uma Instrução só foi aprovada por uma comissão eleitoral em agosto de 1842, quando os farroupilhas vinham em derrocada há três anos e chegando no Rio Grande o barão de Caxias como comandante geral das tropas do Império e das milícias formadas pelas cidades, vilas, e a maioria dos proprietários rurais. Nessa eleição farroupilha votava somente quem tivesse nascido livre e possuísse a renda anual de no mínimo cem mil réis. Para ser deputado constituinte, o candidato precisava de rendimentos de trezentos mil réis. Esse critério censitário foi incluído mais tarde no projeto de Constituição, plagiado do Império.
O pleito estava previsto para somente aquelas regiões em que havia mobilização militar farroupilhas, em Piratini, Triunfo, Caçapava, Alegrete, Rio Pardo, Jaguarão, Cachoeira, Cruz Alta, São Borja e Lages. Entretanto, a perda de territórios implicou diretamente no número dos eleitores. Votavam em cédulas de 36 nomes, número previsto de constituintes. O partido de Bento Gonçalves foi acusado de imprimir e distribuir cédulas prontas, com a nominata fechada. Votaram 3.025 pessoas. Para cargos inferiores, mais 655 eleitores foram credenciados porque a exigência de renda era menor. Essa eleição demonstra, sem devaneios helenísticos, que a plêiade de cidadãos farroupilhas era formada por 3.680 pessoas. Seus representantes políticos e suplentes perfaziam 21 militares, 9 fazendeiros, 4 médicos, 4 clérigos, 4 negociantes, 4 ministros, 4 funcionários públicos, 2 proprietários e 2 advogados. A nominata cita apenas a profissão. Praticamente, todos senhores de escravos.
Se tomarmos a cifra relativa de 250 mil habitantes para a província do Rio Grande, mesmo com a imprecisão dos censos, que deixavam de fora populações de regiões remotas, aldeias indígenas e quilombos, os farroupilhas detentores de direitos representavam 1,4% da população. No auge da arregimentação, o contingente farroupilha não se manteve com mais de cinco mil homens. O que significa limitar-se a 2% da população. O restante era pró-Brasil, ou neutros.
Quando a Constituinte se reuniu no final de 1842, em Alegrete, a “maioria farroupilha” apresentou o projeto que propunha a suspensão das garantias individuais. Justificativa: os demais farroupilhas estavam articulando “uma conspiração” contra o presidente Bento Gonçalves da Silva. Só quem não lê história se deslumbra com a cultura cívica pilchada, sufocada no classicismo estético, não considerando a conjuntura real da luta interna dos farroupilhas, cuja intensidade não permitia qualquer unidade para uma visão utópica de comunidade de destino.
Os versos do poeta Chiquinho da Vovó tratam de um desejo inicialmente contestador deturpado pela prática real da maioria farroupilha. Estão no nexo exclusivo do mundo farroupilha e sua deterioração. Eles são parte do movimento expressado no Manifesto da Minoria, posição pública de deputados da constituinte do Alegrete, dado à público em 18 de fevereiro de 1843. E o que dizia? O governo de Bento Gonçalves da Silva representava a vigência do “gênio do mal”, sustentado por uma maioria “despótica”, em uma eleição influenciada por cédulas eleitorais previamente distribuídas. Esse assunto encontra-se nos livros dos melhores autores-pesquisadores. Particularmente, demonstrei o tema em artigos e no livro A Tradicionalidade na cultura e na história do Rio Grande do Sul (Tchê, 1989).
O poeta Chiquinho Fontoura dizia em versos para um hino destinado à representação de seu partido vilipendiado por outra facção farroupilha. Por isso o verso começa com a conjunção “mas”. Uma “restrição ao que foi dito” (Houaiss), a necessidade de correção, pois não se podia concluir que, ao passar do tempo, “foi o vinte de setembro / precursor da liberdade.” Para retomar esse espírito utópico, de princípio, profanado pelo bentismo tirânico, era necessário que o povo tivesse virtude, pois não bastava ser livre formalmente.
O espírito do Chiquinho estava conforme com o Manifesto: “A maioria da Assembleia parece estar persuadida” a conservar “por toda a vida na presidência o Sr. General Bento Gonçalves da Silva; e neste sentido não tem o menor escrúpulo [em] votar pelos projetos mais repugnantes.” Além disso, na organização do Estado pretendia manter um Conselho de Estado dedicado à vigilância e controle dos cidadãos. O grupo do Bento fazia do parlamento a extensão dos decretos do general: “Estabeleceu ou promulgou a horrorosa lei das confiscações; animou com prêmio aos denunciantes (um dos maiores flagelos da sociedade); promulgou a pena de morte sobre crimes vagos e não especificou com a precisa clareza; decretou a lei [que] punindo não fosse igual para todos os cidadãos. […] Talvez não haja uma só garantia dos direitos civis e políticos dos cidadãos que não fosse por S. Exa. calcada aos pés! Talvez não haja um só artigo da Constituição que juramos que não fosse de fato ferido, atropelado e suspenso por S. Exa. e seus ministros prediletos”.
É verdade também que a tirania chegou a tal ponto que alguns membros da maioria se colocaram contra. O ministro da guerra, Manuel Lucas de Oliveira, foi destituído por ser contra ao projeto de Bento que suspendia as garantias. Para que não fosse divulgado o discurso também contrário de Domingos José de Almeida, compadre do presidente e ex-ministro, Bento instituiu a censura prévia ao jornal Folha, que cobria os trabalhos da constituinte. Diversos episódios dramáticos fazem parte desse conflito entre farroupilhas; repressão, inclusive com o cercamento militar da constituinte, quando alguma matéria a ser votada não era de interesse do governo de Bento, ou para assegurar aprovação; ameaças à parlamentares para mantê-los em casa e substituí-los por suplentes pró-governo; brigas e duelos, como o de Bento com seu parente Onofre Pires, que o acusou de traidor e ladrão da honra; do assassinato do vice-presidente Paulino da Fontoura (parente do poeta Chiquinho) etc.
Enquanto o flagelo dos farroupilhas encenava os trabalhos constituintes para a formação de um Estado, por um lado; por outro, diversos “rebeldes” pediam anistia à Coroa. O próprio Bento Gonçalves da Silva, não podendo mais sustentar-se, renunciou. Imediatamente traiu o novo governo farroupilha. Sigilosamente foi negociar com o barão de Caxias, do qual recebeu um salvo-conduto, em outubro de 1844. Nessa conjuntura, Caxias escreveu ao ministro Jerônimo Coelho, informando que, em vista “do estado de desunião entre os rebeldes, […] não sei com quem se poderá tratar [a pacificação], com probabilidade de bom resultado… Os chefes que capitaneiam forças estão tão rivalizados entre si, que estou bem certo, pela experiência, que nenhum deles se poderá comprometer a qualquer arranjo amigável, receoso dos outros rivais…”
Caxias também concluiu, e a história em seguida demonstrou estar certo em sua previsão, que, ao conceder o salvo-conduto a Bento, o qual passou a viver mais na estância do pai de Netto, no Uruguai, se fazendo de doente, “terei dado o último golpe nos rebeldes desta Província. […] Conquanto Bento Gonçalves e Netto sejam hoje chefes secundários, ainda exercem muita influência na campanha, e estou quase certo de que Canabarro em poucos dias terá de abandonar a Província, se não depuser também as armas, como é natural.” Canabarro preferiu o caminho da derrota em uma batalha final, sem que os chefes de pequenas colunas pudessem continuar o movimento farroupilha. Deixou-se surpreender em Porongos. Estavam dadas as condições imorais, sem virtude, para a negociação de pacificação, em que os farroupilhas pediram perdão ao imperador e receberam a anistia. Foram ressarcidos dos gastos que puderam provar por recibo verdadeiro ou forjado. Os oficiais receberam o prêmio de incorporação ao Exército imperial. E os negros que sobreviveram ao massacre de Porongos foram levados para as galés no Rio de Janeiro.
Ficou tão-somente os versos desesperados de Chiquinho Fontoura, com o desejo literário de “assombro dos tiranos” – os membros do partido da maioria farroupilha, liderados por Bento Gonçalves da Silva. Aliás, versos que foram deletados do hino rio-grandense. Lembrar de “tiranos” pareceu anacrônico para os censores que adaptaram o original para se transformar em hino rio-grandense no decorrer do século XX; naturalizar a condição de escravos, não!
Decepcionado com os correligionários farroupilhas, Antônio Vicente da Fontoura, finalizou seu diário, em 11 de março de 1845, com “os seguintes versinhos”, conforme os classificou num gesto de humildade:
Sim, ó pátria sempre amada,
Todo teu sempre serei;
Desta glória sou contente,
Que a ti só me dediquei.
Se outrora a teu lado
Expus a existência,
Seria demência
Servir os algozes,
Que escrava te tem.
Se o sangue te sugam,
Despojam teus cofres,
O mérito fugam,
Perseguem, mal vêm;
Seria imitá-los
Em seus desvarios,
Seria trair-te,
Ó pátria querida,
Unir minha vida
À desses vadios
Que além de si mesmos
Não amam ninguém.
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O partido tirânico dos farroupilhas no hino rio-grandense - Instituto Humanitas Unisinos - IHU