15 Janeiro 2021
"O mistério de João Gilberto fica ainda mais distante quando fica cerrada uma janela fundamental para perceber a beleza e fineza de sua música, em razão da inacessibilidade de seus primeiros álbuns: Chega de saudade (1959), O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961)", escreve Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF.
“Quem ouvir o ho-ba-la-la
Terá feliz o coração”
João Gilberto
Em sua obra, "o império dos signos" (1970), Roland Barthes fala da simplicidade do haikai e de seu alojamento no código geral de sentimento por ele nomeado como "emoção poética". É uma pequena "cápsula" que capta "um instante privilegiado" [1]. Ao ler sobre João Gilberto, e sobretudo ao ouvir João Gilberto, algo semelhante vem ao coração.
Curioso constatar a ligação do povo japonês com a música de João Gilberto. No artigo de Shigeki Miyata, recolhido no recente livro sobre João Gilberto, organizado por Walter Garcia (2012) [2], ele relata sua admiração pelo conhecimento demonstrado por João Gilberto em sua viagem ao Japão em 2003.
João manifestou um amplo conhecimento sobre o Japão e já começou falando sobre o zen budismo e os haikais. Estabeleceu-se ali uma sintonia de coração com o público japonês, retribuído com uma sessão de aplausos que durou 25 minutos ininterruptos. Que magia é essa?
Assim como ocorre na pequena cápsula poética do haikai, João também buscou trazer a simplicidade do significado dizendo o mínimo. Para ele, a perfeição do canto conseguia sua realização quanto mais roçava a "indefinição da fala".
Na base de tudo isso, uma visão contemplativa do mundo, já expressa em depoimento de 1959: "Gostava de ficar horas e horas à beira do rio, ouvindo o coaxar dos sapos e vendo a luz, a claridade, os reflexos do sol na água. Tentava compreender aquilo tudo. Consegui sentir - compreender não compreendi. Mas aquilo ficou em mim e ainda hoje carrego comigo um bocado de todo aquele alumbramento" [3].
Essa é a síntese mais clara da compreensão zen: "um modo de viver o real cotidiano sem complicá-lo com ideias" (L.Perrone-Moisés). Num dos mais interessantes artigos do livro sobre João Gilberto [4], Tarik de Souza comenta o "comportamento musical enxuto, quase ascético" de João Gilberto, que como o haikai busca despertar a emoção estética através da alusão. Tarik faz referência a um dos mais fiéis e argutos retratistas de João, o americano John Wilson, do New York Times, que usa as palavras do próprio cantor para traduzir a riqueza do clima que o rodeia: "Hoje, vou me refinando, purificando minha música até que consiga atingir a verdade mais simples. Como quando eu era criança".
Nada de diverso fez o grande mestre dos haikais, Matsuó Bashô, que com sua linda poesia limitava-se a traduzir com poucos elementos o instante privilegiado. Recorrendo à mesma entrevista com John Wilson, Tarik reproduz a fala de João: “Quando eu canto, penso num espaço claro e aberto onde vou colocar meus sons. É como se eu estivesse escrevendo num pedaço de papel em branco: se existem outros sons à minha volta, essas vibrações interferem e prejudicam o desenho limpo da música”.
No magnífico e esgotado livro de Marc Fischer, Ho-ba-la-la (Companhia das Letras, 2011), O autor e sua assistente brasileira, buscam incessantemente no Brasil alguma pista que conduza ao misterioso músico, uma missão quase impossível. Conseguem, porém entrevistas maravilhosas que acentuam o traço enigmático e solitário de João Gilberto, sempre avesso a qualquer aparição pública.
O autor se pergunta mais no início do livro, o porque dessa resistência de João a qualquer relação, a não ser telefônica, em com pessoas que ele escolhe. E nos diz:
“Por que João Gilberto é um enigma. Porque não está claro o que o instiga, ou se alguma coisa ainda o instiga em seu quarto de hotel – ou onde quer que ele more no momento. Porque circulam histórias estranhas a seu respeito, e não se sabe quais são verdadeiras e quais são estapafúrdias, fantasiosas, inventadas” [5].
O mistério de João Gilberto fica ainda mais distante quando fica cerrada uma janela fundamental para perceber a beleza e fineza de sua música, em razão da inacessibilidade de seus primeiros álbuns: Chega de saudade (1959), O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961). Aqueles que conseguiram adquirir um dos três LPs são privilegiados: “Percussão leve, saltitante. Um ritmo de samba, bem seco, como se tamborilado num balde com as pontas dos dedos, mas ainda assim, firme. De muito longe vem o som de um violão, só algumas notas” [6]. Depois entra a voz, operando o milagre da delicadeza.
Em 1988, a gravadora EMI quis reunir os três discos em um CD, mas o problema é que os álbuns não cabiam no CD e então foram feitas mudanças que desagradaram profundamente João Gilberto. A gravadora decidiu “encurtar três faixas ou reunir num medley ´O nosso amor` e ´Felicidade`. Supostamente a gravadora teria feito isso sem a permissão de João Gilberto, e se foi isso de fato o que aconteceu, com certeza a EMI errou. João ficou com tanta raiva que processou a gravadora” [7]. E os álbuns não vieram à tona.
A gravação de Chega de saudade ocorreu em 1958 em estúdio, com a presença de Tom Jobim, orquestra e Milton Banana, com registro num LP de 78 rotações para a Odeon. O clima da gravação não foi fácil, e as tensões com Tom Jobim foram duras, com consequências definitivas. Criou-se um “stress” posterior que comprometeu a amizade dos dois, abalada também pelo caso da gravação de Jobim com Frank Sinatra [8].
A repercussão da canção Chega de saudade no Brasil não foi abrupta. Ela “provoca o que toda forma de arte suscita, quando por ser bom, o novo ameaça o velho: resistência, repugnância, incompreensão” [9]. Ao falar mais tarde sobre sua impressão ao ouvir pela primeira vez a música, aos trezes anos, Nelson Motta assim se expressou: “Foi como um raio. Aquilo era diferente de tudo o que eu já tinha ouvido, fiquei chocado, sem saber se tinha adorado ou detestado. Mas quanto mais ouvia, mais gostava” [10].
A bossa nova de João Gilberto ganhou o mundo, e com ele irradiou “um dos maiores bens culturais que o Brasil já produziu: a Bossa Nova de João Gilberto” [11]. Em 1965, O LP de João Gilberto com Stan Getz venceu o Grammy, ultrapassando tanto os Rolling Stones como Louis Armstrong.
Um dos grandes admiradores japoneses de João Gilberto, Toshimitsu Aono, também entrevistado por Marc Fischer, guarda como um tesouro precioso o LP Chega de saudade. Considera João Gilberto “um dos maiores artistas de todos os tempos”. E diz: “Eu acho que ele não é brasileiro coisa nenhuma, mas japonês, por causa dessa sua estética tão reduzida, sucinta, exata, repetindo-se infinitamente. Além disso canta num ritmo que não bate com o que está tocando. E, ainda assim, tudo se encaixa, como se nascesse daí um instrumento completamente novo” [12].
Algo semelhante diz João Donato, outro dos entrevistados por Fischer em seu livro: “João Donato, o pianista, há muito tempo o melhor amigo dele, explica a coisa da seguinte maneira: João Gilberto busca a perfeição. Perfeição absoluta. Ele maltratava Astrud, sua ex-mulher, que gravou Garota de Ipanema, mandando ela volta e meia para o banheiro, para que ela cantasse uma certa canção, um verso ou uma determinada nota” [13].
Como também lembrou Claudia Faissal, o ouvido de João é absoluto: “Ouve tudo, até os detalhes mais insignificantes! Nada nele funciona tão bem quanto os ouvidos. João é capaz de dizer em que tom um canário está cantando, se uma buzina de carro está desregulada ou que acorde combina com uma brisa de verão. Sabe direitinho como cada corda deve vibrar para que ela soe exatamente como ele quer” [14].
Segundo Donato, a predileção de João pelo banheiro se devia à acústica dos ladrilhos. E muitas vezes, a busca da solidão era condição para o caminho da perfeição: “Quando você quer uma coisa específica, que só você sabe o que é, aí precisa estar sozinho, sem ninguém” [15].
Em artigo em torno de João Gilberto e o projeto utópico da Bossa Nova, Lorenzo Mammì sinaliza que a perfeição de João Gilberto é fruto de uma “intransigência pessoal”. Ele “tenta reproduzir na melodia todos os parâmetros do som, sem que por isso a voz se torne instrumento – ao contrário, aproximando sempre mais o canto à fala” [16]. O compositor tem a proeza de mesmo num estádio manter o clima musical como se estivesse num apartamento, “em que se pede ao convidado uma canção (com o risco, inclusive, de que não cante)” [17].
Outro entrevistado do livro de Fischer foi Carlos Alberto Afonso, um ex-professor de literatura que era proprietário de uma pequena loja de discos chamada Toca de Vinícius, na rua Vinícios de Morais, em Ipanema no Rio de Janeiro. Na visão de Carlos Alberto, João era verdadeiramente um “arquétipo do grande artista”.
Era alguém “que nunca se deixou corromper, nem por dinheiro, nem pela indústria fonográfica ou pelo público. Nunca aceitou nada que não quisesse; nunca se apresentou onde não queria; nunca conversou com quem não quisesse conversar. Porque ele sabe que a grande arte é dádiva e dever ao mesmo tempo” [18]. Como fórmula, continua Carlos, o compositor encontrou
“uma equação de canto e violão, respiração e harmonia, a partir da qual é capaz de transformar tudo o que canta em Bossa Nova. Ou seja, numa canção que flutua, cintila e rebrilha de um modo muito particular, tanto faz de autoria de um compositor brasileiro, como Dorival Caymmi ou Ary Barroso, se de contemporâneos seus, como Jobim, Menescal e Carlos Lyra, ou ainda se de Georges Gershwin (´S` wonderful), Cole Porter (´you do something to me`) ou Charles Trenet (´Que reste-t-il de nos amours`). [19]”
Na pesquisa realizada por Marc Fischer, ele constata que há uma “lacuna na biografia de João. Trata-se da época em que ele viajou pelo Brasil, aquela que o levou, em primeiro lugar, a Porto Alegre; depois, até Diamantina, Juazeiro e, por um breve período. Isso antes de ele voltar ao Rio, em 1958, já de posse de sua fórmula” [20]. Para Fischer, “João encontrou sua personalidade num banheiro de Diamantina” [21]. Ali ele talvez tenha encontrado a fórmula mágica da Bossa Nova. Sublinha que essa história reveladora de João “é uma história quase bíblica”, mas não um conto de fadas, pois está enredada também por muita tristeza.
No capítulo que aborda A garota de João, outros esclarecimentos ocorrem. Trata-se de Cláudia Faisall, com quem João teve uma filha, Lulu. Filha de um dentista famoso no Rio, Cláudia conheceu João desde nova, pois ele era amigo de seu pai. Ela chegou a estudar música No Berklee College de Boston. Ela resolveu, a partir de sua convivência com João, produzir um documentário sobre ele. Dizia: “Registrar por escrito não basta. Escrever é coisa muito pouco moderna para nossos tempos, e as pessoas no Brasil quase não leem” [22]. O documentário ainda está em curso, e Claudia não adianta qual a previsão de sua produção. Assinala: “Tudo que fiz foi coletar a música de João, para que pelo menos alguma coisa sobreviva. Pode ser que, algum dia, Lulu precise terminar o filme” [23].
Claudia relata a grande decepção vivida por João depois dos conflitos em torno de seus primeiros LPs e também do embates com músicos fundamentais, como Tom Jobim. A verdade é que ele se isolou do mundo. A grande mágoa de João remonta aos anos de 1958: “Foi o que acabou com ele. Desde então ele é um ser socialmente morto, como um mutilado de guerra. Imagine que você é Michelangelo, e alguém vai lá e rabisca uns bonequinhos na Capela Sistina. Ou que você é Joyce, e alguém resolve reformular as frase que você escreveu. O que aquilo ainda tem a ver com você?” [24].
Todo o isolamento tem a ver com isto: “Assumiu seu sofrimento, sua dor, sua loucura, sua paixão e se sacrifica agora pelo gênio João”. E Cláudia argumenta que tentou impedir essa radicalização: “Já sugeri tantas vezes, mas ele diz que a cura é sua música. Não percebe que não é saudável viver como ele vive, dentro de casa, no escuro, para sempre”. E acrescenta: “O triste é ele tocar para as paredes, embora conheça todas aquelas canções faz muito tempo, porque domina esse repertório há décadas. É ele tocar a coisa mais linda do mundo como ela nunca foi tocada e, em seguida dizer: ´Ainda não está pronta” [25].
Fischer complementa o argumento, dizendo que a experiência de João é crucial, “quase religiosa. A gente percebe como a arte pode ser verdadeira. E como pode ser ruim, quando é tão absoluta. Porque, aí, ela exclui um bocado de outras coisas. Seres humanos, por exemplo” [26].
São poucas as pessoas que puderam visitar João Gilberto em seu apartamento no final da vida: seu melhor amigo Otávio, Miúcha, Cláudia e Lulu. Miúcha, que também esteve casada com ele, relata o que ocorreu em seu primeiro encontro, quando o viu cantar: “Como se, antes, eu sempre tivesse enxergado tudo em preto e branco e, de repente, alguém tivesse inventado um filme colorido. Aquilo me tocou profundamente e mudou tudo para nós”[27] .
João tinha grande apreço pela religiosidade. Falamos no início de sua relação com o Budismo, mas há também sua devoção pelos mantras e pela meditação com base em Yogananda. Trouxe consigo uma religiosidade da Bahia, “mais rural, mais família, confiança, fé”. Bebeu fundo na religiosidade de sua mãe, que rezava todo dia, e manteve acesa a prática meditativa: “Repete mantras e sons que levam a um nível mais elevado de consciência” [28].
Marc Fischer morreu logo após a publicação de seu livro. O cineasta Georges Gachot decidiu dar continuidade à pesquisa com o longa metragem, de agosto de 2018, Onde está você, João Gilberto ? Um filme guiado e inspirado pelo livro de Fischer: “Com carreira dedicada a filmar a música brasileira, Gachot se identificou com o sonho do autor e, também tocado por seu trágico destino (Fischer se suicidou pouco antes da publicação), decidiu refazer sua jornada, gerando um filme sobre anseios, procuras, contatos e lembranças compartilhadas” [29].
João Gilberto morreu no Rio de Janeiro, em 06 de julho de 2019, mas sua história continua aberta e enigmática. Surpreendentes revelações virão à tona quando as pesquisas e documentários em curso saírem à luz do dia.
[1] Rolan BARTHES. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 90-113.
[2] João Gilberto e Walter GARCIA (Orgs). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 124-129 (O cotidiano de um deus).
[3] Ibidem, p. 28 (Em conversa – entrevistas).
[4] João GILBERTO & Walter Garcia. João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 42 (Tárik de Souza. O mito sem mistério).
[5] Marc FISCHER. Ho-ba-la-la. À procura de João Gilberto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 14.
[6] Ibidem, p. 20.
[7] Ibidem, p. 152.
[8] Ibidem, p. 131.
[9] Ibidem, p. 132.
[10] Ibidem, p. 132.
[11] Ibidem, p. 143.
[12] Ibidem, p. 22.
[13] Ibidem, p. 49.
[14] Ibidem, p. 142.
[15] Ibidem, p. 49.
[16] João Gilberto e Walter GARCIA (Orgs). João Gilberto, p. 160 (Lorenzo Mammì. João Gilberto e o projeto utópico da Bossa Nova).
[17] Ibidem, p. 164.
[18] Marc FISCHER. Ho-ba-la-la. À procura de João Gilberto, p. 32.
[19] Ibidem, p. 32-33.
[20] Ibidem, p. 33.
[21] Ibidem, p. 148.
[22] Ibidem, p. 137.
[23] Ibidem, p. 149.
[24] Ibidem, p, 144.
[25] Ibidem, p. 149.
[26] Ibidem, p. 148.
[27] Ibidem, p. 170.
[28] Ibidem, p. 147.
[29] Veja aqui.
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João Gilberto e o enigma da Bossa Nova - Instituto Humanitas Unisinos - IHU