21 Dezembro 2020
"Entre nós, a luta contra a pandemia transcende as dimensões técnico-científicas em razão, como sabido, das convicções temerárias do chefe do Executivo e do seu obtuso desconhecimento do que lhe diz respeito, incidindo diretamente na agenda política. Seu reino é o do absurdo, e sua contumácia inveterada em alardear despropósitos – a vacina vai fazer com que nos tornemos jacarés – parece estar orientada em conduzir seu rebanho não para a imunidade, mas direto ao precipício. Tal como se dizia, décadas atrás, em muitos dos filmes do nascente cinema novo, é preciso fazer alguma coisa e colocar um ponto final nessa história de horrores", escreve Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio.
Um ano aziago, sem dúvida, esse que começamos a deixar para trás. Então “que se foda 2020”, como se estampa no rótulo do vinho português da Adega Azoeira, aliás bem caro, porque ele superou todas as medidas ao combinar duas pragas pestilenciais, o covid19 e o governo Bolsonaro. Deixa em seus rastros cerca de 190 mil mortos, até aqui, e uma obra de destruição de muitas instituições frutos de conquistas de lutas democráticas e populares em que se acalentavam aspirações por uma sociedade menos injusta e mais igualitária. Desse flagelo, em que ainda se vive, acumulamos perdas, algumas irreparáveis como a de vidas ceifadas, e outras, que mais à frente, podemos com o tempo recuperar.
Contudo, esses têm sido também os tempos de avanços na valorização da ciência, como no empenho na busca de vacinas eficazes que interrompam a propagação incontrolada da atual pandemia, que ora se realiza por meio de uma comunidade científica que atua em caráter cosmopolita, ultrapassando os estreitos limites do Estado-nação. Igualmente viram renascer a agenda dos ideais da solidariedade, e impuseram com vigor os temas ambientais, especialmente entre os jovens.
Sobretudo, 2020 foi o ano da derrota eleitoral de Donald Trump e seu projeto malévolo de imprimir um movimento de marcha à ré nas coisas do mundo a fim de nos devolver por inteiro, em pleno século XXI, o Estado-nação de infausta memória.
A ascensão de Joe Biden ao governo dos EUA, na esteira dos movimentos sociais mobilizados em sua campanha vitoriosa, não deve ser relativizada em sua importância como o fazem certas análises trêfegas, pois trata-se, na verdade, de um acontecimento de repercussão estratégica que afeta para melhor a disposição de processos fundamentais, tais como os do meio ambiente, cujo alvo é o capitalismo vitoriano predatório, e a revalorização dos organismos internacionais, especialmente da ONU. Muito particularmente, e isso é de evidência solar, a nefasta ação da atual política externa brasileira e do seu ministério do Meio Ambiente, a partir de 20 de janeiro, data da posse de Biden, perderão seus pontos de sustentação, o que não é de pouca monta.
Os dois anos restantes do governo Bolsonaro terão como horizonte pautas e agendas estranhas àquelas de sua afeição, uma sobrevivência exótica do trumpismo sem régua e compasso para agir tanto no cenário internacional como no interno. Difícil, nessas condições, conceber a sua reeleição, a que o faro apurado das elites políticas tradicionais não deixará escapar. De qualquer modo, o novo ano não será como aquele que passou, cabendo a ele dar continuidade criativa ao legado que recebeu das lutas de resistência das instituições republicanas, com papel destacado do STF e de suas câmaras de representação política.
As recentes eleições municipais, embora de modo geral tenham confirmado a natureza conservadora da sociedade, viram nascer novas lideranças, vale ressaltar o caso de Guilherme Boulos de óbvia vocação nacional, inclusive muitas delas originárias do mundo popular e de movimentos sociais libertários como o feminista e dos que se empenham na agenda das denúncias contra as desigualdades raciais.
Numa apreciação mais abrangente, fica do ano do qual nos despedimos uma evidente revalorização da política, revigorada pela decisão do STF que interditou, em leitura literal do texto constitucional, a reeleição do comando das casas legislativas na mesma legislatura, animando partidos e parlamentares a ações autônomas quanto ao poder executivo, vindo a estimular, inesperadamente, práticas de negociação política e ações concertadas em frentes multipartidárias em torno de valores comuns.
Vista da perspectiva de hoje, o que se descortina é uma paisagem em mutação quando confrontada com os idos da última sucessão presidencial. Sem triunfalismo, pode-se sustentar que o fascismo, mesmo que tabajara, apesar de sempre latente numa sociedade com a história de formação da nossa, foi um risco exorcizado ao menos imediatamente, e que ora se abre diante de nós uma via franca para a política, à condição de que saibamos nos desatrelar dos erros que nos levaram ao desastre que aí está. Sobretudo se soubermos aproveitar dos bons ventos que nos vêm de fora, e dar sequência às recentes e benfazejas práticas de alguns partidos e várias personalidades políticas em buscar soluções negociadas em favor da democracia.
A tragédia da pandemia que nos assola e ao mundo, como tantos e tão bem têm registrado, induz à mudança que leve a um combate sem tréguas a fim de reduzir, se possível erradicar, os seus efeitos macabros. Uma delas, visível a olho nu, está na destituição do paradigma neoliberal, influente por décadas, como narrativa capaz de explicar e reger a vida social. Na esteira disso, chega igualmente ao fim a primazia do Estado-nação na ordenação da cena internacional, nenhum deles é uma ilha apartada dos demais, o regime dos ventos que vinha de Chernobil conduzia pelas nuvens sua carga tóxica aos distantes países nórdicos. O efeito bumerangue, magistralmente descrito por Ulrich Beck, em Sociologia do Risco, mantém países ricos e pobres atados ao mesmo destino no que se refere aos perigos ambientais.
Entre nós, a luta contra a pandemia transcende as dimensões técnico-científicas em razão, como sabido, das convicções temerárias do chefe do Executivo e do seu obtuso desconhecimento do que lhe diz respeito, incidindo diretamente na agenda política. Seu reino é o do absurdo, e sua contumácia inveterada em alardear despropósitos – a vacina vai fazer com que nos tornemos jacarés – parece estar orientada em conduzir seu rebanho não para a imunidade, mas direto ao precipício. Tal como se dizia, décadas atrás, em muitos dos filmes do nascente cinema novo, é preciso fazer alguma coisa e colocar um ponto final nessa história de horrores.
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As nossas duas pragas. Artigo de Luiz Werneck Vianna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU