16 Dezembro 2020
Identificada no sul da Inglaterra, ela parece se multiplicar mais rapidamente. Mas seu surgimento era previsível e não há sinais de que ela drible as vacinas. E mais: o Instituto Butantan aumenta a aposta contra a ignorância do governo Bolsonaro.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por OutrasPalavras, 15-12-2020.
O ministro do Reino Unido, Matt Hancock, disse ontem que foi identificada uma nova variante do SARS-CoV-2 que está se espalhando no sul da Inglaterra e que, aparentemente, pode se multiplicar mais rápido do que as outras cepas do vírus. Segundo ele, mais de mil casos foram detectados em 60 localidades, e a OMS foi notificada.
As manchetes viralizaram – junto com uma boa dose de pânico. Até o momento, porém, não há razões para o medo. No mesmo anúncio, feito ao Parlamento britânico, Hancock afirmou que um laboratório vinculado ao ministério da Defesa faria testes para avaliar se há resistência às vacinas. Ele ressaltou no entanto que essa possibilidade é “altamente improvável” segundo os assessores médicos da pasta, e também que nada indica que essa variante possa gerar quadros mais graves de covid-19. Segundo a OMS, ainda não há nenhuma evidência de que essa cepa se comporte de forma diferente das outras (inclusive em relação a se multiplicar mais rápido). “Vimos muitas variantes, este vírus evolui e muda ao longo do tempo“, disse o especialista em emergências da Organização, Mike Ryan, em coletiva de imprensa.
Ainda estão sendo feitas análises para ver se teremos de fato algum problema. Coronavírus como o SARS-CoV-2 sofrem cerca de uma mutação por mês. No jornal The Guardian, a especialista em imunologia da Universidade de Birmingham Zania Stamataki escreve que cada mutação isolada não é suficiente para gerar uma nova cepa, mas, com o tempo, elas se acumulam e as cepas diferentes vão surgindo, muitas vezes com propriedades diferentes.
Não é impossível que alguma delas seja mais infecciosa. A chance de surgir uma nova cepa resistente às vacinas em desenvolvimento também não é zero – mas o editor de ciência do mesmo jornal explica que mesmo isso não seria o fim do mundo. A resistência poderia ocorrer porque a maioria das vacinas contra a covid-19 produz anticorpos que desativam o vírus ao atacar suas proteínas spike; se essas proteínas mudam, podem escapar aos anticorpos gerados por vacinas que miram sua “versão” anterior. Mas “as vacinas produzem uma variedade de anticorpos que atacam o vírus de diferentes ângulos, portanto, é difícil para um vírus escapar de todos eles de uma vez. (…) E se o vírus sofrer mutação para uma forma resistente, as vacinas podem ser ajustadas para torná-las eficazes novamente”, diz ele.
A palavra-chave, de todo modo, é monitoramento. “Os coronavírus geralmente precisam de muito mais de uma mutação para alterar suas proteínas o suficiente para escapar da imunidade, mas alguns vírus, como o da gripe, sofrem mutações muito rápido. Por esse motivo, as autoridades de saúde pública monitoram a gripe e as vacinas são atualizadas para permanecerem relevantes a cada temporada de gripe no mundo. (…) Não podemos prever as propriedades das cepas virais emergentes em termos de sintomas clínicos, mas podemos nos manter à frente do vírus pela vigilância contínua para adaptar nossas vacinas e a gravidade das estratégias de controle de infecção. É improvável que a nova cepa viral já torne as vacinas inúteis, mas isso pode acontecer eventualmente”, conclui Stamataki.
A análise interina dos testes de fase 3 da CoronaVac deveria ser divulgada hoje, mas não será mais. O que à primeira vista poderia soar como atraso é, na verdade, a tentativa de “cercar” a Anvisa com dados mais robustos e aplicar ainda mais pressão sobre a agência e o governo federal. Isso porque hoje sairiam os dados preliminares da eficácia, baseados nas 70 primeiras infecções identificadas entre os voluntários. Mas, com o crescimento da disseminação do vírus, o número de contaminados cresceu rapidamente e superou os 151 casos. Este é o número que o protocolo define como marca para o encerramento da fase 3 e para a avaliação final.
Com isso, a ideia agora é anunciar no próximo dia 23 esse resultado final, em vez do preliminar. E em seguida solicitar não apenas a aprovação emergencial, mas também o registro definitivo – no Brasil e na China ao mesmo tempo, segundo o diretor do Butantan, Dimas Covas: “Esperamos que o registro possa caminhar muito rapidamente na China e, antes do final deste ano, vamos ter o registro da vacina na China. Com a vacina sendo registrada em uma das grandes agências, como a europeia, chinesa, japonesa ou americana, a Anvisa pode autorizar o uso excepcional do produto. Foi uma estratégia que discutimos junto com a Sinovac e acho que isso vai, de fato, emitir uma agilidade maior, embora possa colocar alguma pressão em cima da Anvisa”.
É uma resposta bem direta ao contra-almirante Antonio Barra Torres, diretor da agência. Na semana passada, ele disse que a lei 13.979 (que autoriza o uso de vacinas no Brasil desde que tenham aval das agências estrangeiras mencionadas por Covas) só valia para os imunizantes que tivessem o registro oficial, e não apenas o temporário. Então, se o registro sair logo na China, o problema da CoronaVac fica resolvido. Também serve contra posicionamentos como o de ontem, quando a Anvisa divulgou que os critérios para a autorização de uso emergencial da CoronaVac na China “não são transparentes e não há informações disponíveis sobre os critérios atualmente empregados pelos órgãos chineses para essa tomada de decisão”.
Se uma vacina fosse aprovada hoje pela Anvisa, o Ministério da Saúde teria condições de começar a campanha nacional de imunização quanto tempo depois? Há seringas e insumos suficientes para garantir toda a primeira fase de vacinação sem prejudicar outros imunizantes do calendário nacional? Se não, em quanto tempo o governo espera atingir o abastecimento total desses insumos? Enfim, mais do que uma data para o início da vacinação, o país precisa conhecer o cronograma da campanha em detalhes, saber em que pé estamos e o que falta para chegarmos lá.
Ontem, o pedido do ministro Ricardo Lewandowski chegou à pasta comandada pelo general Eduardo Pazuello. Segundo a imprensa, a tendência é que o governo continue insistindo que não tem condições objetivas para cravar uma data no calendário – e, de acordo com o Valor, deve “assegurar que haveria condições de dar início ao plano de vacinação em ‘x’ dias após registro na Anvisa, por exemplo”. Isso já seria um avanço. E, a partir desse compromisso, seria mais fácil pressionar por todas as outras respostas. Por exemplo, é preciso saber quanto tempo a pasta pretende gastar com cada uma das quatro fases já previstas para os grupos prioritários para se ter uma ideia de quando pode começar a vacinação do restante – e sabemos que há um conjunto de pessoas vulneráveis que não foram priorizadas pelo plano, como a população carcerária e moradores de rua.
É claro que toda essa indefinição anda de mãos dadas com o medo que o governo federal tem de lidar com as reações negativas que virão se admitir que só tem condições de começar a campanha nacional depois do prazo – político – estabelecido por João Doria (PSDB) para São Paulo.
Marco Krieger, da Fiocruz, disse ontem a Reuters que só no segundo semestre o país atingirá um nível de cobertura suficiente para barrar significativamente a circulação do coronavírus. E a presidente da fundação, Nísia Trindade, afirmou a CNN que a previsão da Fiocruz é entregar 30 milhões de doses em fevereiro ao Programa Nacional de Imunização. No total, a fundação anunciou que produzirá 210 milhões de doses em 2021. “Eu sempre tenho dito que serão necessárias mais de uma vacina no Brasil e no mundo”, incentivou sutilmente.
Mas a despeito de declarações do governo federal de que o ministério comprará qualquer vacina que for aprovada pela Anvisa, há não só resistência em dar o braço a torcer para Doria, como a campanha de difamação da CoronaVac continua em curso.
Hamilton Mourão ilustrou muito bem esse ponto. Ontem, o vice-presidente usou o questionamento sobre a data requerida pelo Supremo como trampolim para desacreditar o imunizante da Sinovac produzido em parceria com o centenário Instituto Butantan. “Vamos lembrar só uma coisa, só pra vocês pensarem: quem comprou a CoronaVac? Nenhum país comprou a CoronaVac, tá todo mundo comprando Pfizer ou outras aí. Então vamos aguardar, né gente”, disse ele. Nós por aqui informamos que, sim, outros países encomendaram doses da CoronaVac: Indonésia (128 milhões), Bangladesh (100 mil) e Chile (60 milhões).
Jair Bolsonaro foi pior e deu mais um empurrãozinho para a descrença generalizada nas vacinas: “Eu devo assinar amanhã a MP de R$ 20 bilhões para comprar vacina. Não obrigatório, vocês vão ter que assinar termo de responsabilidade para tomar. A Pfizer é bem clara no contrato, “não nos responsabilizamos por efeitos colaterais”. Tem gente que quer tomar, então toma. A responsabilidade é tua. Se tiver algum problema aí, espero que não dê”, disse ele a apoiadores no pátio do Alvorada, em declarações transmitidas por um site aliado.
O Ministério da Saúde utilizou o site do DataSUS para transmitir ao vivo uma… missa de Natal. O fato inédito aconteceu ontem, às 13h – e é o mais recente exemplo de subversão das estruturas do Estado para fins incompatíveis com o próprio Estado, que é laico enquanto estiver em vigor a atual Constituição. A história, revelada pelo UOL, fica ainda pior porque o rito religioso aconteceu nas dependências do ministério, no auditório Emílio Ribas que deveria estar servindo como palco de coletivas diárias de imprensa sobre a pandemia. Procurada, a pasta respondeu que as orações seriam dirigidas ao enfrentamento da pandemia, às vítimas da covid-19, ao SUS e aos “colaboradores” do Ministério da Saúde.
Na sexta-feira o país ultrapassou a marca das 180 mil mortes, mas no sábado o ministro da saúde, Eduardo Pazuello, estava pronto para um convescote na casa do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). O almoço contou com a presença do cantor Zezé di Camargo e foi até a noite, terminando em karaokê com direito a vídeo que repercutiu nas redes sociais depois que o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) o repostou.
“Você precisa corrigir o texto imediatamente (…) Não me atrapalhe com isso. Implorei que você me deixasse ler o rascunho antes de imprimir… Droga… Agora estou bloqueando tudo”. A mensagem é uma das muitas que vieram a público nas últimas duas semanas graças ao trabalho investigativo de um programa de televisão italiano e, agora, repercutem com força no contexto internacional. Ela foi escrita por Ranieri Guerra, diretor-geral de Iniciativas Estratégicas da OMS – ex-funcionário de alto escalão do Ministério da Saúde da Itália – e é uma das muitas provas que surgiram de que ele atuou para censurar um relatório independente, encomendado pela organização, sobre a resposta do governo italiano na pandemia.
As coisas são ainda mais feias porque o relatório, elaborado por um time de especialistas, apontou como ponto fraco dessa resposta o fato de o governo não ter atualizado seu plano nacional de preparação para pandemias, que era de 2006. Acontece que essa responsabilidade esteve sob as costas do próprio Guerra entre 2014 e 2017, quando ele ocupou a direção do Departamento de Prevenção do ministério. Isso porque o braço europeu da OMS pediu a todos os países que atualizassem o documento, em 2013.
Do ponto de vista institucional, o caso revela um erro sem precedentes, já que apesar de ser comum a contratação de pessoas que trabalharam em variados governos, a OMS sempre estabeleceu um muro entre as atividades relacionadas ao país de origem dos funcionários, conta o site Health Policy Watch.
Os fatos que agora vêm à tona aconteceram em maio. No texto que abre essa nota, Guerra avisa ao oficial da OMS responsável por coordenar a equipe que fez o relatório, Francesco Zambon, que vai barrar o texto junto à cientista-chefe da organização, Soumya Swaminathan. O relatório “Um desafio sem precedentes – a primeira resposta da Itália a covid-19” chegou a ser publicado no site do escritório europeu da OMS, mas foi retirado apenas um dia depois. E enterrado.
O contexto da crise talvez importe mais do que tudo. Além de não estabelecer um muro entre o ex-diretor do ministério italiano e seu país de origem, a OMS tinha acabado de receber uma doação voluntária do governo da Itália de 10 milhões de euros. Agora, com a direção da organização se vendo às voltas com o pedido dos países-membros para investigar as origens da pandemia na China – e com o governo chinês, por enquanto, não dando sequer autorização para que o grupo de cientistas escolhidos para fazer o relatório ponha os pés no país – o caso de censura coloca ainda mais pressão sobre a organização.
Depois de nove meses de pandemia nas costas, a maior parte do mundo ainda não foi capaz de dar conta de uma das ações mais úteis para quebrar a cadeia de transmissão do novo coronavírus: o rastreamento de contatos. Na longa reportagem do site da Nature, Dyani Lewis descreve a abissal distância que separa os países que fizeram isso direito e aqueles que não o conseguiram. Exemplo disso é o quanto varia o número de contatos identificados para cada caso confirmado de covid: 17 em Taiwan, dois no Reino Unido, 1,4 na França e menos de um na maior parte dos Estados Unidos.
Em países asiáticos como Coreia do Sul há, além das entrevistas, o uso de dados de cartão de crédito, celular e imagens de câmeras de vigilância (o que não seria facilmente aceito pela população em vários outros lugares). O Vietnã também verifica os passos das pessoas com postagens no Facebook e no Instagram. O Japão faz o eficiente rastreamento retroativo. Nações como Vietnã e Taiwan não promovem o autoisolamento dos infectados e contactantes, mas sim uma quarentena feita em instalações específicas.
Já em quase todo o Ocidente, há uma cascata de falhas: falta de testes ou atraso para fazê-los, demora para a chegada dos resultados, infectados que não se isolam, e/ou que não são alcançadas pelos rastreadores, e/ou que não fornecem informações sobre seus contatos, e ainda contatos que não são alcançados e não estão dispostos (ou não podem, por questões tão objetivas como: precisam trabalhar) a cumprir a quarentena. E a maioria dos países só tem a quarentena em domicílio, sem locais designados para isso. Na Inglaterra, os rastreadores só conseguem falar com 12,5% dos infectados e, destes, quase um quinto não fornece informações sobre seus contatos próximos. Ninguém sabe quantos contatos entraram efetivamente em quarentena por lá.
A matéria ainda tenta dimensionar o volume de rastreadores que seria necessário para conter surtos, mas nem essa conta é fácil. Em abril, um relatório dos Estados Unidos falou em 30 rastreadores para cada 100 mil pessoas – mas essa é a média do Reino Unido, que no entanto não parece ter sido suficiente. Em contraste, os 24 milhões de habitantes de Taiwan foram monitorados por 600 rastreadores no seu momento de pico: isso dá 2,5 profissionais por cem mil habitantes. É claro que ajuda o fato de eles nunca terem deixado a situação sair do controle, porque a equipe precisa dar vazão ao número de infecções. Por aqui, sempre vamos imaginar o que poderia ter sido feito caso os centenas de milhares de agentes comunitários de saúde brasileiros tivessem sido treinados para fazer rastreamento de contatos desde o início da pandemia.
Ontem, o Conselho Nacional de Saúde reprovou as contas de 2019 do ministério. Dentre os problemas apontados estão inconsistências nos valores transferidos do governo federal para estados e municípios e falta de critérios da pasta para escolher que despesas executar ou não. No ano passado o Ministério da Saúde empenhou R$ 122,2 bilhões, valor acima do investimento mínimo necessário. O conselho já reprovou contas de 2016 e 2018.
Diante de ameaças de ainda mais desmonte, o Conselho resolveu convocar uma nova Conferência Nacional de Saúde Mental. A etapa nacional acontecerá apenas em maio de 2022, mas o evento pode ter um papel importante para mobilizar usuários, famílias, profissionais e pesquisadores.
A campanha ‘O Brasil precisa do SUS’ pode ser assistida clicando aqui.
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O que se sabe sobre a nova variante do coronavírus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU