02 Dezembro 2020
O inesperado acontece na vida de Isabel, Maria, Zacarias e José. A teóloga protestante Marion Muller-Colard nos convida a reler o anúncio dos nascimentos de João Batista e de Jesus que inauguram o Novo Testamento, mudando o curso da história e dando um fundamento à esperança cristã.
O artigo é de Marion Muller-Collard, publicado por La Vie, 27-11-2020. A tradução é de André Langer.
Teóloga, autora de livros de espiritualidade e romances, especialmente para jovens, Marion Muller-Colard apresenta regularmente uma crônica bíblica no programa Présence Protestante, nas manhãs de domingo no canal France 2. Desde 2017, é membro do Comitê Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde.
"Isabel primeiro, Maria depois. Nenhuma delas esperava engravidar. Uma é muito idosa, a outra muito jovem. Essas mulheres não estão sozinhas. Ao seu lado estão homens que, como elas, ignoram estar em gestação. Esperar é algo que muitas vezes ignoramos, ocupados que estamos, inutilmente, tentando forçar o amanhã. A expectativa é ampla, muito grande; ela nos causa vertigem diante de tantas possibilidades, então a reduzimos a um programa. O programa de Zacarias naquele dia foi: honrar sua incumbência de sacerdote, sorteado para oferecer perfume no interior do Templo de Jerusalém – um privilégio que acontece uma vez na vida de um sacerdote, e olhe lá. Dia extraordinário, excepcional, que Zacarias pode esperar conforme a sua tradição.
Zacarias está no “santuário do Templo” quando um anjo lhe conta o inesperado: Isabel está grávida. Eles já passaram da idade e acreditavam que Isabel era estéril. Então, o que o anjo anuncia é implausível – mas se não fosse pelo implausível, para que precisaríamos dos anjos? Zacarias titubeia: “Como vou saber se isso é verdade? Sou velho, e minha mulher de idade avançada”. Atingido pela incredulidade, em seguida ficará mudo: é por este sinal paradoxal que ele reconhecerá a veracidade das palavras do anjo, “porque você não acreditou nas minhas palavras, que se cumprirão no tempo certo”. Se o espanto prevalecer, o espanto será sua fiança, e o mutismo será o refúgio de sua expectativa. Isso é uma punição ou uma delicadeza da parte do anjo? Ele toma consciência da inércia produzida pela nossa predisposição à fatalidade, toma consciência da nossa incapacidade de dizer o inédito, de revisar de cima a baixo o que temos com certeza: você saberá que é verdade porque não terá palavras para dizê-lo. O silêncio é a couvade de Zacarias. Isabel fica maior com o inesperado.
Maria aguarda pelo noivado. Num estado de espírito sobre o qual nada sabemos (ela, pelo menos, já viu José? Trata-se de um daqueles casamentos arranjados em que ela pode esperar o melhor e temer o pior? José é um dos aqueles jovens mais velhos que não consegue se casar ou um jovem bastante charmoso invejado pelas outras jovens?). O que Maria espera, com impaciência, medo, indiferença, desejo ou desgosto, é um esposo. Mas o inesperado atingiu sua casa como atingiu, alguns meses antes, a casa da sua prima distante. Como Zacarias, ela está “confusa”. Como Zacarias, ela ingenuamente pergunta “como”. Seu sinal: estar grávida. Como Zacarias: ela dará à luz o Verbo. Sua fiança: a gravidez da sua prima – mas é melhor os anjos se aterem ao inacreditável, porque tentar se tornar confiável comparando uma suposta esterilidade com uma virgindade comprovada não é muito conclusivo.
O fato é que Maria aquiesce. Este “sim” é uma loucura ainda maior do que o anúncio: ela se condena – à morte, segundo a lei – aos olhos do seu noivo e aos olhos do povo a que pertence. Acolher o implausível em um encontro cara a cara com o anjo é uma coisa. Convencer a comunidade humana deste implausível é outra. Mas este trabalho não é seu. Agora Maria espera o inconcebível. Refúgio: encontrar esta prima também acometida por uma gravidez inesperada. Reconhecimento das entranhas: os inesperados se ligam, nossas expectativas nos unem, e todas as incertezas que elas trazem consigo.
Chega o primeiro nascimento (a cronologia retoma seus direitos, segue em frente sem sobrepujar nada do surgimento repentino, do imprevisto que nunca acabará de se apoderar de nós). Espera-se que Zacarias finalmente conceba as palavras: “Você ficará mudo, e não poderá falar, até o dia em que essas coisas acontecerem”, previu o anjo. Mas a criança nasce e Zacarias continua mudo: pois o inesperado ainda não acabou. Zacarias recuperará a fala quando escrever o nome desse filho, nome ao qual a parentela não dá nenhum crédito: ele deve se chamar Zacarias, como seu pai! (Era isso que se esperava). “Ele vai se chamar João”, escreve Zacarias.
E enquanto ele escreve que nada pode ser escrito com antecedência, enquanto ele consente em dar um passo à frente, para sair dos laços sanguíneos, enquanto admite que a chegada deste inesperado não põe fim à espera, mas cava ainda mais fundo, aí então, sim: sua língua se solta. “Você não tem nenhum parente com esse nome”, suspira o círculo familiar. Eles ainda não perceberam que temos que deixar vir ao mundo o novo. E nós, já o admitimos?
João significa: “Deus é cheio de graça”. Entre as graças dadas a Maria está o seu esposo. Ao inconcebível, José disse “sim”. É pouco dizer que ele não tem o ego inflado. Nesse caso, ele herda a ameaça, privado do orgulho paterno de ver o filho como seu filho. Sua couvade: a preocupação. Ele suou de angústia como suará, um dia, esse filho que jamais será seu, e que na sua família, no seu país e no mundo, trará tensões, divisões, assombros – espada e paz.
A paz que ele vai trazer será a mais paradoxal de todas: não será nenhum acordo, nenhum tratado, não vai esperar o fim das lutas, germinará do meio de nossas guerras sem nunca acabar com elas. Então, quando ele nascer, corre o risco de que nasçam Josés e Marias, e todos nós com eles. Esse risco assumido por Deus depende da nossa capacidade de acolher o inesperado, de protegê-lo e deixar que mude radicalmente nossos programas.
O que o Advento diz é que com Zacarias, Isabel, José e Maria, nós estamos grávidos. Nós esperamos e nunca sabemos o que esperar. Grávidos do inesperado: a vida nos esvazia de tudo o que vem. Sempre acontece algo diferente do que esperávamos, sempre acontece outra pessoa. Ninguém esperava um messias que arriscasse sua vida e também nos chamasse a arriscar a nossa, convertendo o próprio sentido da fé. Não se trata mais de questão de acreditar que estamos a salvo da ameaça, mas de acreditar que somos capazes de viver com ela.
A fé talvez seja nada além da nossa capacidade gestacional – nossa capacidade de nascer com o risco de sempre esperar algo diferente de nós mesmos. Jamais deixaremos de esperar por um salvador, que jamais deixará de desafiar nossas expectativas. A maneira como ele vem nos mergulha tanto na precariedade como nas profundezas de nossas vidas. Não esperemos estar protegidos de todo perigo para estarmos totalmente vivos, caso contrário, já estaremos mortos, ou melhor, ainda não nascidos."
Sem Sara ou Débora, sem Isabel, Maria de Nazaré ou Maria de Magdala, não haveria nem Antigo nem Novo Testamento. Porque a Bíblia não é apenas um assunto dos homens. Esta nova edição especial se propõe a seguir o rastro das mulheres na Bíblia, tendo como guias Marion Muller-Colard, Marie Balmary, Éliette Abécassis, Pauline Bebe, Véronique Margron, Christine Pedotti, Sylvie Germain e outras pesquisadoras e/ou escritoras do judaísmo, protestantismo e catolicismo. Ao colocar essas personagens, muitas vezes esquecidas nas histórias bíblicas, de volta ao centro das atenções, elas as colocam em ressonância com as questões que agitam nosso tempo. La Bible e les femmes (A Bíblia e as mulheres), edição especial La Vie – para solicitar clique aqui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O que o Advento diz é que com Zacarias, Isabel, José e Maria, nós estamos ‘grávidos’”. Entrevista com Marion Muller-Colard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU