30 Novembro 2020
Na sua história, Biden nunca usou o seu catolicismo como instrumento político; ao contrário, ele o apresentou sem hesitação ou temor como a vivência de fé de um homem na política – com as suas práticas e as suas devoções. Poderia ser um bom antídoto para não exacerbar a rixa quadrienal que o aguarda com grande parte dos bispos e uma ampla fatia do catolicismo estadunidense, que se vê refletida, quer queira quer não, no governo Trump.
A opinião é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 27-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A eleição de Biden como próximo presidente dos Estados Unidos e o mal-estar que a Conferência Episcopal sente ao se deparar com o segundo católico da história do país a desempenhar esse papel apenas deixaram definitivamente evidente um impasse de longa data, cultural antes que político ou eclesiológico, do episcopado estadunidense.
Um breve olhar retrospectivo pode ajudar na compreensão.
O silêncio constrangedor da Conferência Episcopal estadunidense e dos bispos individuais diante da indevida ingerência do secretário de Estado, M. Pompeo, em relação à renovação do acordo entre a Santa Sé e a China.
O silêncio quadrienal da Conferência Episcopal, com exceção de algumas intervenções isoladas de alguns bispos individuais, sobre o perfil anticonstitucional da forma de Donald Trump de entender a política e de gerir o papel de presidente.
O silêncio da Conferência Episcopal que acompanhou o longo período pré-eleitoral diante das afirmações de Trump sobre a sua vontade de permanecer no cargo seja qual fosse o resultado das eleições – porque, em caso de derrota, os votos que teriam levado Biden ao cargo seriam, mesmo assim, ilegais e obtidos de modo fraudulento. Uma evidente ferida em um aspecto-chave da democracia representativa.
Com Biden eleito, a mensagem com reservas do presidente da Conferência Episcopal, Dom Gomez, no qual, por referência a Biden, se opõe o processo democrático que o elegeu às posições dos bispos. Poucos dias depois, o Papa Francisco telefonou ao presidente eleito Biden para felicitá-lo – sem que surgissem quaisquer reservas particulares por parte da Santa Sé em relação a ele. Por um lado, portanto, os bispos estadunidenses que tratam Biden como um católico a ser disciplinado; de outro, o papa que interage com ele no respeito institucional e diplomático ao papel ao qual ele foi eleito.
Durante a plenária de outono da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, o presidente, Dom Gomez, anunciou repentinamente em uma coletiva de imprensa, sem uma efetiva discussão colegiada, que, após ter sido abordado por alguns bispos que expressavam sérias preocupações e reservas em relação a Biden como presidente católico, seria formado um grupo de trabalho ad hoc para gerir a situação complicada e complexa produzida com a eleição de Biden.
No fim da assembleia, o arcebispo de Washington, Wilton Gregory, que será quem terá um contato mais com o novo governo, se distanciou com a posição da Conferência Episcopal, invertendo os termos da situação para tentar sair do impasse criado: há amplas bases comuns, especialmente em matéria de política social e imigração, proteção do ambiente e colaboração internacional, para estabelecer uma relação cordial e fecunda com Biden – permanecendo sobre a mesa algumas questões delicadas sobre as quais as posições do episcopado e do novo presidente divergem ou entram em tensão.
A abordagem de Gregory é a tentativa pessoal de não derrubar as pontes com Biden antes mesmo de ele assumir o cargo, com o risco de afastá-lo definitivamente de uma vontade positiva de interlocução com a Igreja Católica – especialmente levando em consideração o fato de que um governo Biden poderia pôr o seu dedo em intervenções no campo do apoio social, não só em sintonia com o pontificado de Francisco, mas também significativas para uma possível redução do número de abortos no país.
Biden é um católico persuadido e experiente, de uma geração que já está desaparecendo. Ele sabe bem que se deparará com bispos e padres que lhe recusarão a comunhão por causa da sua posição sobre o aborto, e será bom gerir com atenção esses momentos de evidente atrito público com a Igreja estadunidense – desta vez, para não recusar aquele mínimo de proximidade em torno de questões que, não obstante, representam pilares importantes do seu programa presidencial.
E precisamente por pertencer a essa geração do catolicismo estadunidense, ele também deverá evitar a tática de Obama, que se cercou das religiosas do país para garantir um consenso católico em matéria de reforma da previdência social e da saúde – em contraposição à ostensiva recusa por parte da hierarquia episcopal.
Na sua história, Biden nunca usou o seu catolicismo como instrumento político; ao contrário, ele o apresentou sem hesitação ou temor como a vivência de fé de um homem na política – com as suas práticas e as suas devoções. Poderia ser um bom antídoto para não exacerbar a rixa quadrienal que o aguarda com grande parte dos bispos e uma ampla fatia do catolicismo estadunidense, que se vê refletida, quer queira quer não, no governo Trump. Agindo com sabedoria nesse âmbito, Biden poderia mostrar a autoridade institucional do papel do presidente da nação também em relação ao seu próprio partido.
Sem Trump, essa Conferência Episcopal está mais fraca e sem representação política. Sua grande tentação será endurecer ainda mais o choque com Francisco, que também será cobrado pelo apoio convicto dado a Biden – além de todo o restante que divide desde os primeiros dias da sua eleição como bispo de Roma.
O grande projeto, cultivado nos quatro anos de Trump, de um cisma de fato construído em torno de uma aliança iliberal confiada pelo ex-presidente às incursões na Europa dos seus mensageiros alados (o que forçou Salvini a brandir terços e evangelhos nas mais disparatadas ocasiões) fracassou no meio do caminho e desapareceu definitivamente como opção viável com a derrota de Trump.
Mas o húmus eclesial no qual esse projeto se enraizou dentro do catolicismo estadunidense, atraindo também um grande número de bispos, permanece e certamente não jogou a toalha.
Porém, ele se transforma de um grande projeto político-cultural global a uma questão interna: esse filho de um Deus menor poderia dar à luz uma Igreja Católica totalmente esmagada debaixo do nacionalismo estadunidense mais extremo. O catolicismo estadunidense não parece ter em si os anticorpos necessários para frear construtivamente esse americanismo pós-trumpiano de uma Igreja decepcionada com o seu próprio insucesso e de um corpo episcopal que está cavando para si mesmo o túmulo da irrelevância acrimoniosa na vida da nação.
O católico Biden poderia fazer algo, mais de forma biográfica do que eclesialmente estrutural, se conseguisse extrair da cartola dos seus primeiros 100 dias o coelho de um abaixamento dos tons de uma conflitualidade de todos contra todos que está corroendo as bases mínimas de algo pelo menos remotamente semelhante a uma convivência civil.
Ele deu um primeiro passo ao fazer do coronavírus o inimigo comum de um povo dividido em si mesmo, permanecendo sabiamente dentro das fronteiras nacionais e tentando dar uma razão para lutar junto – em vez de lutarem uns contra os outros.
A diplomacia vaticana poderia fazer algo mais, visto que, para o atual núncio em Washington, se aproxima o 75º aniversário de vida: ao novo núncio, caberia a ingrata tarefa de mediar com autoridade o novo governo não em relação ao país dos Estados Unidos, mas em relação à própria Igreja Católica estadunidense da qual Biden é membro.
Porque, se para o primeiro presidente católico, J. F. Kennedy, o fato de ser católico era o problema diante da nação, para o segundo, o país não tem nenhum problema em relação ao fato de ele ser católico – porém, grande parte da Igreja local, dos seus bispos, do seu clero e dos seus fiéis, sim.
Além do fato de Kennedy ter sido um meteoro, tragicamente retirado de cena antes que a dura efetividade da política pudesse tomar o lugar do mito, seria preciso considerar Joe Biden como o primeiro presidente católico dos Estados Unidos – ou seja, aquele em que se decide a catolicidade da política e a capacidade política daquilo que resta do catolicismo. São momentos que podem fazer história, não só a dos Estados Unidos, e que poderiam levar a Igreja estadunidense a reingressar nela como uma das suas construtoras.
No entanto, trata-se de um futurível. Na realidade atual, adensam-se os sinais de que já entramos na época de uma inversão dos termos. Se, no século XX, pelo menos até o Vaticano II, o americanismo da Igreja estadunidense era visto com suspeita do nosso lado do Atlântico, por causa da sua proximidade cordial demais com o sistema democrático e da sua presença massiva na cena social do país como um sujeito entre muitos outros, sem proteções ou isenções particulares, hoje as Igrejas da velha Europa parecem ser as que cultivam com convicção uma salvaguarda da estrutura democrática da convivência civil, dos mecanismos constitucionais postos como garantia do sistema democrático e de uma cultura institucional que se opõe a qualquer tipo de desvios iliberais do poder político e judiciário – mesmo quando estes prometem implementar valores católicos considerados como inegociáveis na arena da contenda política e legislativa.
Do outro lado do Atlântico, o americanismo em ascensão nestes tempos na Igreja Católica parece ser apenas a versão batizada de um nacionalismo fechado em si mesmo que olha com suspeita para as instituições da democracia e com desprezo para todas as formas de diversidade (de raça, de credo, de cultura, de perspectiva política – e também de fé católica).
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Igreja dos EUA: a inversão do americanismo. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU