26 Novembro 2020
Mais do que um relatório sobre a culpabilidade por abusos sexuais que duram décadas, o relatório do Vaticano sobre Theodore McCarrick é uma acusação ao conhecimento institucional e à tomada de decisões na Igreja Católica. O relatório, divulgado em 10 de novembro pelo Secretário de Estado do Vaticano, não apenas mostra quem sabia o que e quando sobre o ex-cardeal. Também nos dá uma visão aguda das pessoas, decisões e processos que permitiram sua ascensão a cargos de autoridade na igreja, apesar do conhecimento de seus crimes de abuso de poder e abuso sexual – de bispo a arcebispo e depois cardeal.
Existe uma maneira melhor de selecionar bispos? O processo de seleção de candidatos à promoção episcopal na Igreja Católica pode ser mais transparente?
O artigo é de Ricardo da Silva, editor associado da America Media e ordenado diácono jesuíta para a África do Sul, publicado por America, 24-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Denunciantes expressaram suas preocupações antes da ascensão de McCarrick ao posto de arcebispo – e que depois foi ao cardinalato. Agora sabemos que as alegações de má conduta sexual foram repetidamente ignoradas ou explicadas por aqueles que tinham o poder de garantir proteção e justiça para suas vítimas e impedir sua ascensão na hierarquia. Uma linha do tempo detalhada da ascensão e queda de McCarrick pode ser encontrada neste link (em inglês).
Entre os muitos elementos preocupantes do Relatório McCarrick está a admissão de que existiam cartas que deveriam ter levantado sérias bandeiras vermelhas. Por exemplo, em 1999, o hoje falecido cardeal John O’Connor, então arcebispo de Nova York, enviou uma carta ao arcebispo Gabriel Montalvo, o núncio apostólico nos Estados Unidos na época. A carta continha denúncias nomeadas e anônimas de abuso sexual de menores e adultos e abusos de poder por parte de McCarrick. O cardeal O'Connor informou ao núncio que soube desses abusos de “autoridades incontestáveis e altamente informadas”.
As alegações na carta afirmavam que o então arcebispo McCarrick teve “conduta sexual com outro padre em junho de 1987” e “era conhecido por compartilhar a mesma cama com jovens adultos no bispado em Metuchen e Newark”, e com “seminaristas adultos em uma casa de praia na costa de Nova Jersey”. O cardeal O'Connor também escreveu sobre “uma série de cartas anônimas” em 1992 e 1993 que “acusavam McCarrick de pedofilia”.
Após a carta do cardeal O'Connor e a rejeição inicial de McCarrick para promoção a Washington, vários bispos dos Estados Unidos enviaram cartas ao Vaticano atestando o excelente caráter do então arcebispo McCarrick e atestando sua adequação para promoção. O próprio McCarrick também escreveu uma carta ao secretário do Papa e fez uma visita pessoal ao Papa no Vaticano. Após a visita, João Paulo II revisou pessoalmente a promoção de McCarrick – contornando os processos usuais seguidos pelo Vaticano para a seleção dos bispos – e o aprovou como o próximo arcebispo de Washington no Dia de Ação de Graças de 2000.
A ascensão de McCarrick mostra o funcionamento interno da burocracia da Igreja quando se trata de nomear bispos e as falhas que por vezes ocorrem.
“Esta investigação, que notavelmente revela que três bispos americanos não disseram tudo o que sabiam sobre as ações de McCarrick, tem o mérito de fazer perguntas muito concretas”, disse Hans Zollner, jesuíta, presidente do Centro de Proteção à Criança da Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma e membro inaugural da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, quando entrevistado pela LaCroix International sobre o impacto do relatório na semana seguinte à sua divulgação. “Quem está envolvido na escolha dos futuros bispos? Quem decide? Como? Que perguntas devem ser feitas a ele e o seu entorno? Como podemos garantir o mais alto grau de sinceridade e transparência dentro deste próprio processo?”.
As qualidades que fazem com que qualquer candidato a bispo seja considerado digno do cargo são descritas no direito canônico da Igreja Católica. Entre essas, a Igreja pede que o candidato “se destaque pela solidez da fé, boa moral, piedade, zelo pelas almas, sabedoria, prudência e virtudes humanas, e dotado de outras qualidades que o tornam adequado para cumprir o cargo em questão” e que ele seja “de boa reputação” e “possua um doutorado”.
A Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos também descreve o processo de nomeação de um bispo em seu site. O processo começa quando o bispo local recomenda a seu arcebispo metropolitano padres de sua diocese que ele acredita que dariam bons bispos. Os candidatos são então discutidos por todos os bispos da área metropolitana, ou província, e então votados. Os nomes selecionados são então encaminhados ao núncio apostólico em Washington, que reúne informações antes de decidir sobre três candidatos dignos e encaminha seus nomes ao Vaticano em um relatório conhecido como “terna”. A lei da Igreja também recomenda que “se ele julgar conveniente”, o núncio “também deve buscar individualmente e em segredo a opinião de outros, tanto do clero secular quanto não secular e de leigos que se destacam em sabedoria”.
Uma vez que o núncio tenha decidido sobre sua “terna”, um relatório completo de sua investigação sobre os três candidatos a bispos, junto com suas opiniões sobre cada um e a recomendação do candidato mais digno, é enviado à Congregação para os Bispos em Roma. Um cardeal-relator é nomeado para digerir e resumir a “terna” do núncio. Ele então apresenta seu candidato preferido em uma reunião da congregação onde os membros votam.
Quando a congregação finalmente concorda com um claro candidato a bispo, o chefe da congregação apresenta o nome ao Papa. Mas o Papa não é obrigado a escolher nenhum dos três candidatos identificados por meio do longo processo de seleção – geralmente de seis a oito meses e muitas vezes mais, de acordo com os bispos dos EUA. Ele tem a liberdade de aceitar ou rejeitar as recomendações e pedir o reinício do processo ou nomear um sacerdote de sua escolha de qualquer parte do mundo.
O processo de nomeação de bispos nem sempre foi assim. Na Igreja primitiva, os leigos e o clero elegiam seus bispos, e só em 1917 uma grande revisão da lei canônica deu ao Papa muito maior autoridade sobre a nomeação de bispos.
O padre James A. Coriden, canonista e reitor emérito da União Teológica de Washington, há muito tempo escreve sobre a reforma do processo de seleção dos bispos. Quando questionado sobre a inclusão de leigos no processo de consulta do núncio, ele escreveu por e-mail à America: “Não acredito que muitos leigos sejam de fato consultados em circunstâncias normais”. Ele acrescentou que “qualquer processo que rompa o monopólio clerical seria uma melhoria”.
Em uma entrevista à América, Susan K. Wood, religiosa, reitora acadêmica e professora do Regis College em Toronto, Canadá, observou que, embora “o processo de seleção de bispos tenha mudado dramaticamente na história”, sempre foi “um ato de equilíbrio de uma série de interesses que precisam ser protegidos”.
“Quando a Igreja centraliza autoridade e poder, às vezes hoje somos tentados a pensar que isso é uma coisa ruim”, disse ela, apontando para exemplos na história em que o poder do Papa foi necessário e usado para o grande bem da Igreja.
Durante a controvérsia de investidura leiga na Idade Média, quando reis e imperadores queriam o poder de nomear seus bispos locais, o Papa interveio para localizar o poder de nomear bispos com o papado. Uma controvérsia semelhante surgiu na época da Revolução Francesa, onde em muitos lugares os bispos foram nomeados por reis e o Papa era solicitado somente para dar seu selo de aprovação.
Mas, a irmã Wood disse, “estamos vendo cada vez mais que talvez seja hora de outro ajuste a este processo”. Em sua opinião, vários problemas surgem ao centralizar a seleção de bispos apenas para bispos.
Para ela, confiar de boa-fé que um bispo apresentaria seu padrinho ao núncio é “presumir a generosidade do bispo para apresentar um candidato”. E se, ela perguntou, “um bispo não quer perder seu melhor padre [e] não colocá-lo na lista?” Da mesma forma, um bispo pode excluir candidatos bons e santos por discordar dos seus pontoes de vista.
Outro campo onde os preconceitos dos bispos podem entrar em jogo é nas conferências episcopais. “Eu gostaria de ver as conferências desempenhando um papel mais importante nisso”, disse ela. “Nos Estados Unidos, teríamos que dizer honestamente que frequentemente os bispos parecem estar associados a um partido político específico. E você não quer que esse tipo de politização flua para a seleção dos bispos”.
Não querendo colocar toda a culpa nos pés dos bispos, a irmã Wood disse que “os leigos são tão politizados quanto qualquer bispo”. A igreja não deve “se precipitar e dizer que os leigos são a solução porque também podem ser o problema”, disse ela. “Acho que o perigo na Igreja é sempre quando ‘semelhante fala com semelhante’, quando se torna uma cultura isolada que não permite a entrada de outras vozes e não pode ouvi-las e guardar seus próprios segredos”, com o resultado de que “Você tem as mesmas pessoas falando com as mesmas pessoas, preservando certos valores que preservam certos privilégios”.
“Acho que o que tem prejudicado a Igreja na crise dos abusos sexuais – e isso não é novidade – é a falta de transparência”, acrescentou ela.
O processo de nomeação de bispos deve ser pensado como um “tripé” envolvendo os leigos, o bispo e o Papa, disse a irmã Wood, antes de sugerir que a Igreja Católica Romana busque outras igrejas para estudar como o processo pode ser revisado.
Nas Igrejas Católicas Orientais, por exemplo, a irmã Wood disse que “eles criam uma lista de candidatos, eles enviam essa lista para Roma e o Papa então tem o direito de retirar os nomes dessa lista. E então a lista volta. E a seleção é realmente feita pelo bispo”.
Nos Estados Unidos, Voice of the Faithful, um grupo de católicos leigos fundado em 2002 para responder aos sobreviventes e garantir uma voz maior para os leigos após as revelações de abuso sexual infantil na Arquidiocese de Boston, há muito clama por reformas no processo para selecionar bispos. O grupo redigiu um documento pedindo ao Papa “que restaure um papel para os leigos na seleção de seus bispos, expandindo os processos de recomendação em níveis diocesanos e arquidiocesanos para exigir consulta formal com grupos de homens e mulheres católicos comprometidos”.
Mary Pat Fox, a presidente do grupo, acredita que a igreja pode adotar as melhores práticas do mundo corporativo moderno. “Acho que haveria verificações de antecedentes e coisas assim que aconteceriam para deixar os leigos à vontade sobre quem estava liderando a Igreja em sua diocese”, disse ela à America. Parte de um processo de triagem do mundo real também deve testar o manuseio do dinheiro dos candidatos a bispo. “Eles estão sendo transparentes em suas finanças?”. A Sra. Fox perguntou, falando sobre a necessidade de revisar os registros dos candidatos a bispo com dinheiro. “Porque, muito honestamente”, acrescentou ela, referindo-se aos pagamentos não divulgados pelas dioceses às vítimas-sobreviventes no passado, “como eles poderiam pagar a todas essas pessoas não sendo transparentes?”.
“É como se você tivesse que ir de atrás disso de várias maneiras diferentes”, ela acrescentou, “porque não somos nós que estamos no poder e então você tem que dizer: ‘Ok, então qual seria uma indicação de que haveria um problema?’ Esta é uma indicação de que há um problema: se você não estiver disposto a publicar suas finanças”.
Em uma entrevista com America para o podcast “Deliver Us” sobre a crise dos abusos sexuais na Igreja Católica, Richard Gaillardetz, professor e chefe do departamento de teologia do Boston College, disse que “deve haver maneiras pelas quais tenhamos conselhos de supervisão, compostos por leigos e talvez também clérigos, que teriam, no mínimo, o direito de sinalizar o que eles acham que pode ser má conduta episcopal e levar isso ao conhecimento do Vaticano”. Lembrando aos ouvintes que “o papa Francisco disse que precisamos ter certeza de que a consulta não significa apenas consultar pessoas que provavelmente concordarão comigo”, Gaillardetz citou Celestino I, um Papa do século V, que disse: “que um bispo não é impostos às pessoas que não o querem”.
Para Gaillardetz, “o que está claro era o quão importante era que o bispo fosse parente da igreja local”. O problema hoje é “pensar a vocação em termos muito privatizados”, disse ele. “Temos a tendência de não enfatizar o discernimento da comunidade quanto à existência de vocação para servir a igreja”.
Em 2004, o Conselho Nacional de Revisão da USCCB para a Proteção de Crianças e Jovens, em seu relatório que analisa a resposta da Igreja à crise de abuso sexual, recomendou que o processo de seleção de bispos “precisa de maior envolvimento dos leigos, tanto na apresentação os nomes dos padres que podem ser considerados para o episcopado e na avaliação daqueles que foram indicados, para garantir que uma rede ampla seja lançada ao selecionar os bispos”.
No relatório, o conselho lamentou que “os leigos foram amplamente excluídos dos assuntos de governança da Igreja nos Estados Unidos” e “um maior envolvimento dos leigos na governança da Igreja pode muito bem ter diminuído tanto a extensão da crise atual quanto a magnitude da resposta negativa dos leigos a ela”.
Há indícios de que alguns bispos aceitariam modificações no processo de nomeação dos bispos. Discutindo o Relatório McCarrick na Assembleia Geral da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, menos de uma semana após sua divulgação, o bispo Mark E. Brennan, da Diocese de Wheeling-Charleston, concordou que o escrutínio dos candidatos a bispo deve seguir um processo secreto, “Para evitar, em parte, a disputa de clérigos por promoção”, disse ele. Mas, ele acrescentou, “seria útil – para evitar problemas futuros – que o nome fosse divulgado, que o nome fosse publicado e fornecesse um prazo de 30 a 60 dias para as pessoas comentarem. As coisas podem vir à tona naquele momento”, acrescentou o bispo. “Qualquer acusação séria pode ser investigada e podemos evitar promover ao episcopado alguém que realmente não é merecedor”.
O bispo Brennan baseou-se no relato de uma testemunha no Relatório McCarrick para ilustrar o benefício de modificar o processo de seleção para candidatos a bispo. O relatório revela que quando o McCarrick era bispo de Metuchen, uma mulher identificada como "Mãe 1" “escreveu e enviou cartas anônimas para membros da hierarquia eclesiástica expressando sua angústia sobre a conduta de McCarrick com menores”.
As investigações sobre o McCarrick nunca trouxeram à tona nenhuma das supostas cartas da Mãe 1, e ela não manteve cópias. Segundo ela, suas cartas não identificaram seu gênero, que ela era mãe, os detalhes das vítimas e se outras pessoas suspeitavam da conduta inadequada de McCarrick com menores. O relatório documenta que “ela estava ‘tentando explicar que McCarrick tinha atração por meninos’. Referindo-se à vez em que viu McCarrick ‘esfregando o interior das coxas [de seus filhos]’”, e “que ela testemunhou pessoalmente McCarrick ‘tocando inapropriadamente’ os meninos”.
É impossível especular – dada a falta de detalhes de identificação nas cartas, questões em torno da confiabilidade dos reclamantes anônimos e o ônus da prova exigido – se uma investigação sobre as alegações da Mãe 1 teria impedido o abuso de McCarrick ou mesmo sua ascensão através das fileiras. Mas se queixas anônimas tivessem sido registradas no arquivo pessoal do bispo, tal documentação poderia ter levado a uma coleta de opiniões mais completa e levantado questões ao considerar McCarrick para dioceses mais proeminentes.
Se houvesse um processo mais participativo, semelhante ao sugerido por dom Brennan e outros, essas alegações, as alegações feitas por seminaristas sobre a conduta criminosa de McCarrick em sua casa de praia e as outras acusações detalhadas no relatório de 449 páginas não teriam sido em vão.
Mãe 1 “via coisas a respeito de seus próprios filhos”, disse dom Brennan. “Se isso tivesse sido antecipado – se ela tivesse tido tempo ou oportunidade para fazer isso – talvez não tivéssemos um arcebispo como McCarrick e não teríamos esses enormes problemas”.
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Poderá a Igreja Católica encontrar uma maneira melhor de escolher bispos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU