19 Novembro 2020
“A sociedade moderna se distingue das formações sociais anteriores por um duplo incremento: uma maior possibilidade de relações impessoais e relações pessoais mais intensas” (Niklas Luhmann, “Amore come passione”).
Essa é a frase que encabeça a reflexão do teólogo italiano Andrea Grillo, em um artigo em duas partes publicado em Vino Nuovo.
O texto abaixo é a segunda parte da reflexão, 18-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A primeira parte está disponível aqui.
À luz do duplo debate aqui referido, parece-me que o tema da “homossexualidade” implica um “porte” muito mais amplo do que podemos reconhecer em média. Tento resumi-lo em poucas questões que se implicam em cascata.
A questão sistemática que me parece decisiva é a seguinte: é possível ou mesmo necessário considerar a homossexualidade sob a categoria das “ofensas à castidade”? Mas talvez, por trás da questão da homossexualidade, esteja uma questão maior, ou seja, a questão geral da sexualidade.
Em outras palavras, o problema não é a variável “homo” da sexualidade, mas sim a sexualidade “tout-court”. Talvez a homossexualidade possa parecer “desordenada” porque a heterossexualidade é pensada como algo ordenado à geração. Mas essa é uma visão totalmente aceitável? Não estou afirmando que ela não tenha fundamento, mas me pergunto se ela é realmente tão decisiva.
Para ir ainda mais longe, podemos nos perguntar: o fato de que o exercício da sexualidade não é “pecado” apenas dentro do matrimônio é realmente a resposta evangélica à descoberta da sexualidade, diferente do simples “sexo”? Não há, em tudo isso, uma indevida sobreposição entre natureza, cultura e Evangelho?
Tento elaborar de forma inicial, como simples impulsos para a reflexão, essas diversas questões, tentando mostrar a exigência de uma acurada elaboração de novas categorias, sem as quais a doutrina católica corre o risco de ser apenas uma “defesa” de princípios sacrossantos, mas com instrumentos teóricos e operacionais não mais adequados.
De fato, para defender a tradição, os “talentos” não podem ser “enterrados debaixo da terra”, mas devem ser empregados com coragem e com paciência, no diálogo cultural de hoje, não na cultura de Agostinho, de Tomás, de Lutero ou do cardeal Gasparri.
Se, por muitos séculos, a Igreja Católica definiu o “contrato de matrimônio” como o exercício do “ius in corpus”, ou seja, o direito exclusivo de cada cônjuge sobre o sexo do outro para fins de geração, é evidente que ela não se achou equipada, conceitualmente, para enfrentar a “transformação da intimidade”.
Quando o sexo se torna sexualidade, isto é, quando, de instrumento, começou também a participar da lógica do fim, não só o pecado está em jogo, mas também se torna central nele a definição (autodefinição e heterodefinição) do sujeito.
Assim, a representação de uma sexualidade legitimamente exercida apenas no marco da relação matrimonial é uma forma exagerada de substituição do “cumprimento” com a realidade complexa da existência. Desse modo, inevitavelmente, tudo o que cai “fora” do matrimônio (antes ou ao lado, para os namorados ou para os celibatários-solteiros) é irremediavelmente compreendido apenas com a categoria do pecado.
Sem querer redimensionar a seriedade dos discursos sobre a continência e sobre a castidade, é óbvio que eles pressupõem um horizonte de experiência comum – no plano pessoal e social – que mudou muito nos últimos dois séculos. Mas aqui, evidentemente, nas reações, o risco de um maximalismo moral se conjuga continuamente com uma organização sistemática das coisas abstrata demais. Um reequilíbrio entre os “bens” do matrimônio implica necessariamente outra repartição entre bem e mal, mais nuançada e menos drástica. O que impõe uma redefinição da sexualidade em ordem não só à geração, mas também à relação e ao “bonum coniugum”, em um matrimônio pensado não mais sobretudo como “ato”, mas como “percurso” e como “processo”. O fato de a sexualidade estar, no processo, apenas no fim é uma conjectura abstrata, que não se baseia na experiência real.
Se permanecermos na percepção “pecaminosa” da questão sexual, porém, devemos reconhecer que mesmo o “sistema dos pecados” nem sempre foi o mesmo. A estrutura “clássica” da meditação cristã sobre o pecado não foi construída sobre o “decálogo”, mas sobre os “sete pecados capitais”.
Essa organização tinha um ordenamento dos pecados: soberba, inveja, ira, avareza, preguiça, gula, luxúria. O último nível era o menos grave. Com o Concílio de Trento, a estrutura dos pecados se enraíza no decálogo.
Mas o “de sexto” se estende aos “atos impuros” e assume um relevo que fará do pecado sexual, na era burguesa, o pecado “por excelência”. Essa desproporção faz parte da nossa herança. Por isso, a percepção da dimensão “de pecado” da homossexualidade interfere emotiva e afetivamente na questão, distorcendo o olhar e a razão.
Pode parecer surpreendente, mas, no inferno de Dante, o vício da “sodomia” está próximo da usura e da blasfêmia. É um pecado da sociedade mais do que da intimidade. A história, até mesmo a mais distante de nós, também pode nos dizer algo de útil para “recontextualizar” o fenômeno e não entendê-lo mal.
Se a referência à “natureza” certamente pode ser significativa, é necessário atentar acuradamente para as mil formas de “inculturação do natural” que inevitavelmente acompanham o discurso sobre o homem e sobre a mulher. Que são animais “nunca apenas naturais”.
A palavra e a mão mudam a natureza e a transformam. Sempre. Por isso, os argumentos que se fundamentam em um “dado natural” devem se proteger de projetar sobre a natureza a ordem social, o medo afetivo ou a desconfiança do caráter. Não há dúvida de que a grande distinção entre “secondo natura” e “contro natura” pode funcionar bastante bem no mundo antigo, medieval e do início da modernidade. Mas, a partir da modernidade tardia, é necessário vigiar com cuidado sobre um uso da referência à “natureza” que pressupõe grandes mediações culturais, às quais se devem dedicar acuradamente considerações e distinções muito preciosas.
É evidente que a natureza impede a uma relação homossexual diversas experiências, que podemos considerar decisivas. Mas definir uma relação “contro natura” apenas a partir de algumas diferenças fisiológicas e biológicas corre o risco de exasperar apenas alguns aspectos dela e de perder a consideração do fato em si.
Eu diria, portanto, que, neste caso, a distinção embora necessária entre pecado e pecador não é suficiente. É a compreensão do pecado e da sua relação com o bem que exige um suplemento de intelecto e de coração.
Não há dúvida de que, como bem assinalou Gilberto Borghi, “a libertação da questão do pecado” é um ponto que une muitas das reações, de direita e esquerda, às palavras do papa. Aceitar a homossexualidade “sem problemas” não é uma solução. Mas a centralidade da relação com o pecado do ser humano, e com a sua superação em Deus, não pode ser o horizonte primeiro de compreensão da homossexualidade. Ou, melhor, não deveria ser o horizonte da sexualidade, porque não o é do restante da experiência. E isso precisamente porque, se o pecado é original, mais original é a graça.
Aqui ainda fazemos a experiência, difícil e dura, de um “primado do pecado” na autoconsciência cristã e católica, que muitas vezes se torna “culpabilização de toda diversidade”. Se tentarmos aduzir “argumentos naturais” – como a objetiva “não diferença” entre dois homens ou entre duas mulheres, que exclui uma “compenetração” – também devemos reconhecer que a sua gestão cultural influi decisivamente sobre a própria percepção natural. E a própria fecundidade, que a natureza exclui, a cultura não exclui.
Sobre isso, creio eu, uma reflexão que não se polarize imediatamente sobre as “patologias pessoais ou sociais”, mas considere o bem real que os sujeitos podem viver para si e para o seu próximo, impõe uma revisão das categorias de fundo. Caso contrário, repetimos evidências que não correspondem à realidade. Tal como acontece com o início e o fim da vida, a natureza e a cultura não se deixam distinguir como evidências. Isso também vale para a sexualidade.
Precisamente a esse respeito, podemos também notar como a absolutização de formas naturais coincide frequentemente com “pactos sociais” de exclusão. Totalmente esclarecedor, para entender essa lógica, que sistematicamente ainda é bastante forte, podemos ler a lista com a qual São Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, apresenta os “motivos de impedimento” para a ordenação.
Naquele texto, encontramos uma límpida lista daqueles que a “natureza” (mas, na realidade, a sociedade) nos entrega como “desprovidos de autoridade”: as mulheres, os menores e os incapazes, os escravos, os condenados por homicídio, os filhos naturais, os deficientes. É um modo de “olhar o mundo” que não é mais o nosso. E no qual o sujeito que qualificamos como “homossexual” também exige um olhar novo.
Mas esse modo de olhar “naturalmente” a sociedade resistiu até o surgimento da “sociedade aberta”, gradualmente desde o fim do século XIX. Ainda nos anos 1950, na Europa, eram muitos os lugares, as nações e os povos nos quais essa lógica “natural” pretendia se impor. E a “pedagogia da lei” também reiterava e repetia inexoravelmente esse “ordo”, considerado natural ou até mesmo divino.
A sociedade “bem-ordenada” conservava essas evidências e as reproduzia. Por isso, a qualificação da homossexualidade como “desordem moral” se baseia, além de em argumentos fisiológico-naturais, também em evidências sociais e relacionais que, em grande parte, não o são mais.
A teologia não pode deixar de levar isso em consideração. Isso absolutamente não significa sacrificar o bem pelo mal, esquecer as lógicas do pecado, mas sim adquirir uma calibragem diferente entre o bem máximo e as porções de bem, que merecem ser lidas não principalmente pelo mal que provocam, mas pelo bem que realizam.
Essas cinco ideias, apenas esboçadas, abrem perspectivas que implicam evidentemente uma “mudança de paradigma”. Os documentos oficiais da Igreja, como a Veritatis gaudium, também assumiram oficialmente essa linguagem. O magistério da cátedra pastoral faz isso e pode fazê-lo em princípio. O magistério da cátedra magistral deve procurar dar um perfil concreto a esse novo paradigma de compreensão da tradição.
Portanto, é preciso predispor, precisamente de modo sistemático, um novo paradigma. Sem se iludir de que é algo fácil de se realizar. Sem fingir que é fácil abrir mão disso.
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A transformação da sexualidade como sinal dos tempos. Cinco pontos para reflexão (parte 2). Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU