O discurso do empreendedorismo se tornou uma saída de emergência para responder a uma questão social muito mais ampla, diz o sociólogo
A crise econômica, o desemprego estrutural e a hegemonia do discurso neoliberal são algumas das razões que explicam a ascensão do empreendedorismo popular nas periferias brasileiras. Para entender como este fenômeno está ocorrendo e qual é o perfil dos novos empreendedores no país, o sociólogo Henrique Costa visitou a região de Santo Amaro, próxima do centro expandido de São Paulo, e o distrito de Parelheiros, no extremo sul da cidade.
Segundo ele, o empreendedorismo nessas regiões começou a crescer a partir da valorização dos “bicos” e da “viração” que caracterizavam o trabalho precarizado. “Nos últimos anos, a noção de ‘viração’, que era pejorativa – porque o trabalhador que não tinha emprego formal era visto de forma rebaixada – foi positivada. A partir do momento em que se passa a compreender o camelô como um empreendedor, já não se dá mais a carga negativa que se dava ao trabalho dele. Ao contrário, cresce o discurso de que ele está no caminho certo e isso virou um grande negócio”, afirma. Ao lado dessa transformação, a desvalorização do diploma universitário, o crescimento de cursos técnicos e universitários de curto prazo, a supervalorização da extensão universitária em detrimento da pesquisa e a expansão de cursos de empreendedorismo voltados para as classes populares levam os jovens a buscarem inovação incessantemente, com o objetivo de investirem em um negócio de sucesso.
Nesta entrevista, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Costa narra alguns exemplos de novos empreendedores nas periferias paulistas e também comenta a reação dos empresários populares ao auxílio emergencial, a percepção dos seus entrevistados sobre a atuação do presidente Bolsonaro durante a crise pandêmica e os elementos de distinção social que foram criados a partir de estereótipos.
Henrique Costa (Foto: Arquivo pessoal)
Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP. É autor do livro recém-lançado Entre o lulismo e o ceticismo. Um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo (São Paulo: Alameda, 2018), baseado na etnografia política com bolsistas do Prouni, tema de sua dissertação de mestrado. Ele concedeu a entrevista “A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora” à IHU On-Line em 2016, quando a pesquisa estava sendo realizada.
IHU On-Line - Hoje se fala muito em empreendedorismo no Brasil. Quem são os empreendedores no país?
Henrique Costa – É preciso definir essa categoria porque é comum ver o empreendedor como alguém que cria coisas novas e leva seu negócio para frente. Essa é uma concepção de Schumpeter, um economista austríaco, que pensava o empreendedorismo como destruição criativa, ou seja, o empreendedor era aquele que não tinha medo de encerrar um produto para lançar um novo. Essa é a concepção que os mais jovens têm hoje, e Bill Gates é um exemplo disso, ou seja, são pessoas que estão sempre inovando e continuam nesta busca incessante por inovar. Inovação é uma palavra importante nesse contexto.
A ideia de empreendedorismo foi popularizada nos últimos anos como consequência da crise econômica que perdura desde 2015 e porque o desemprego estrutural não consegue mais prover empregos de boa qualidade para a população brasileira. Nesse contexto, o discurso do empreendedorismo acabou se tornando uma saída de emergência, uma pílula, para tentar responder a uma questão social muito mais ampla.
Hoje, 99% dos Cadastros Nacionais da Pessoa Jurídica - CNPJ das empresas brasileiras, segundo o Sebrae, são micro e pequenas empresas. Então, aquela ideia de empresário como alguém que tem 100, 200 funcionários, é uma minoria. A grande maioria dos empresários no país é formada de comerciários e comerciantes. Por isso, meu trabalho, nos últimos anos, tenta entender quem são essas pessoas, onde elas estão – elas estão nas periferias das grandes cidades e não necessariamente têm empreendimentos na periferia, mas moram na periferia –, por que elas aderem ao empreendedorismo e por que essa tem sido uma escolha entre os jovens. Venho pesquisando esse tema desde o meu mestrado, quando pesquisei bolsistas do ProUni e percebi que o discurso do empreendedorismo era muito constante na fala dos entrevistados.
IHU On-Line – Em artigo recente, você menciona que o empreendedorismo popular está em ascensão. Esse tipo de empreendedorismo sempre esteve presente no Brasil ou é uma novidade? Ele está em ascensão somente por causa da crise econômica e social ou há outras razões?
Henrique Costa – Tem a ver com a crise econômica, mas também com a hegemonia do discurso neoliberal dos últimos anos, que veio se implementando nas classes populares brasileiras. O empreendedorismo não é novo e um dos argumentos que uso é o de que sempre existiu a categoria do “virador” no Brasil, principalmente nas periferias brasileiras. O “virador” é aquele cara que faz “bico”, não tem um emprego formal, precisa se virar e vai de um trabalho a outro. Essa ideia de “viração” sempre esteve presente no Brasil por causa das condições precárias de trabalho.
Nos últimos anos, essa noção de “viração”, que era pejorativa – porque o trabalhador que não tinha emprego formal era visto de forma rebaixada – foi positivada. A partir do momento em que se passa a compreender o camelô como um empreendedor, já não se dá mais a carga negativa que se dava ao trabalho dele. Ao contrário, cresce o discurso de que ele está no caminho certo e isso virou um grande negócio.
Tenho acompanhado, durante os últimos anos, alguns cursos de empreendedorismo voltados para as classes populares e para pessoas mais velhas, que não têm outra opção de trabalho e resolvem vender artesanato ou abrir algum negócio ligado a culinária. Por exemplo, alguns nordestinos que vivem em São Paulo trabalham como pedreiros e, no tempo livre, fazem acarajé para vender. Eles têm esperança de viverem da venda de acarajé, mas para isso, não basta fazerem o que sempre fazem, como vender marmita para os vizinhos localmente. Esses cursos vendem para as pessoas uma esperança de que elas vão conseguir ter um negócio maior e vão conseguir se sustentar a partir disso. As dificuldades, contudo, são evidentes, porque mesmo antes da pandemia o brasileiro já tinha perdido muita renda.
A pandemia acelerou a busca por inovação e muitas pessoas passaram a usar as ferramentas da internet para venderem seus produtos. Muitas não sabiam fazer isso, mas foram forçadas a aprender. De outro lado, muitos dos empreendedores sociais que entrevisto fecharam as portas porque trabalhavam a partir de um contato muito estreito com a classe média. Com a quarentena e o isolamento social, eles tiveram que se manter endogenamente na periferia e o que segurou as pontas foi o auxílio emergencial.
Essas experiências empreendedoras se inserem em uma mudança cultural, econômica e de discurso hegemônico que se está implementando desde os anos 1970 e que agora chegou às periferias – e chegou num momento muito conveniente por causa da crise econômica. As pessoas que já não têm mais a oportunidade de conseguir um emprego estável se valorizam como empreendedoras. Isso é uma falácia, mas é o que está colocado.
IHU On-Line – No artigo, você menciona o relato de um trabalhador que trocou um emprego estável pelo empreendedorismo porque não se sentia valorizado pela empresa e tampouco tinha novas oportunidades, apesar de ter concluído a graduação e cursado uma especialização. Que questões motivam as pessoas a apostarem no empreendedorismo?
Henrique Costa – No artigo, tentei criar um jogo de espelhos para entender como ocorre essa transformação. Os comerciantes mais velhos – que se chamam de comerciantes e, inclusive, o linguajar do empreendedorismo não faz parte do vocabulário deles – valorizam o reconhecimento no trabalho, ou seja, estar fixo num lugar, ser reconhecido pelas pessoas, ter uma relação comunitária e ser um ponto de referência. Nesses casos, o reconhecimento social é até mais importante do que ter o emprego estável, porque eles trabalham mais cuidando do seu negócio do que se estivessem em outro emprego – eles trabalham sete dias por semana.
Os mais jovens, ao contrário, têm uma ambição “neoliberal”; eles querem crescer. Este rapaz que você mencionou abriu um novo negócio no meio da pandemia. Eles têm uma ansiedade, muito característica dessa geração, de fazer as coisas acontecerem.
Os comerciantes mais velhos estão satisfeitos: eles têm seu comércio, que é uma referência local, e alguns trabalham há 15 anos sem tirar férias, mas possuem um negócio razoavelmente sustentável. Muitos alegam que se estabeleceram e se acomodaram nesse perfil porque não têm estudo. Eles são muito diferentes da nova geração, que fez faculdade.
Tiago, o rapaz que você mencionou, tem dois comércios de objetos supérfluos no Jardim Ângela e abriu mais um em Santo Amaro. Ele deu um depoimento interessante, contando como aumentou o consumo dessas coisas nos últimos meses porque as pessoas estão ficando mais tempo em casa. Ele não se sentia valorizado no emprego, tinha um contrato de trabalho confortável, mas como estudou, queria que o seu estudo desse algum retorno. Sentia que poderia fazer mais do que estava fazendo no antigo trabalho e não pensou duas vezes em abrir mão do emprego para se tornar empreendedor. E, neste caso, podemos chamá-lo de empreendedor, porque ele se vê nessa condição e assimila um conjunto de ideias e visões de mundo que estão dentro deste pacote que é o “neoliberalismo”; entende o seu curso de psicologia como algo útil para o seu trabalho e quer abrir outra loja, assim que for possível. Ele também trabalha demais – a exaustão do trabalho é algo muito visível nestes casos. Além disso, tem três filhos e não se importa de estar pouco tempo presente em casa. Este é um retrato muito acurado e exemplar desse empreendedorismo popular que surgiu, ganhou força e passou a ser notado nos últimos anos.
IHU On-Line – Você já esperava ouvir o discurso empreendedor dos mais jovens?
Henrique Costa – Estudo essa temática há algum tempo, mas estava estudando outro perfil de empreendedor: o empreendedorismo de impacto social. Existem muitos cursos universitários sobre esse tema e as universidades vêm investindo nisso, seja em faculdades de administração, seja em cursos de ciências sociais aplicadas ou em gestão de políticas públicas, a partir de um discurso de transformação social. Este tipo de empreendedor quer ter um negócio que gere renda e tenha um impacto social na sua comunidade; essa é uma característica desses negócios de impacto social.
Antes da pandemia, eu participei de eventos de empreendedorismo social na periferia para entender como esse discurso é falado e recebido. Agências de impacto social agenciam negócios e têm algum capital por trás delas, a partir de parcerias com fundações, como a Fundação Casas Bahia, que financiam essas redes. Quando iniciou a pandemia, minha ideia era contrastar o impacto do empreendedorismo social – que identifico como ideológico – com o outro empreendedorismo, aquele por necessidade, em que o sujeito entende seu negócio sobretudo como geração de renda e não tem pretensões de transformar a sociedade, mas sustentar sua família e ter um reconhecimento social na sua região.
Em função da pandemia, visitei duas periferias em São Paulo e tinha a expectativa de entender como as pessoas estavam reagindo ao auxílio emergencial, se elas tinham tido perda de renda e como viam o futuro. O que eu vi foi justamente os personagens que entrevistei e descrevi no artigo: os comerciantes e os novos empreendedores.
IHU On-Line – Como eles reagiram ao auxílio e reagem à proposta do governo de instituir a Renda Cidadã?
Henrique Costa – Este tema é muito controverso e isto me surpreendeu. Nós da academia esperamos que as pessoas sejam coerentes, mas elas não são, e mais contradições aparecem. O auxílio emergencial é sintomático disso. Diante do que vi, é razoável afirmar que as pessoas têm sentimentos ambíguos sobre o auxílio porque são contra a ideia de que o governo deve ajudar. Elas querem que as pessoas trabalhem porque o que traz dignidade para a pessoa é a renda fruto do trabalho. Eu passei uma tarde numa loja de um comerciante e ele não vendeu nada, mas ele trabalha sete dias por semana. Aí você pergunta se é preciso trabalhar tanto, mas a pessoa se sente completa quando está trabalhando. É justamente isto que a pandemia nos mostrou: a importância do trabalho para a vida das pessoas. Claro que o trabalho não é tudo na vida e na identidade de uma pessoa, mas não podemos ignorar que se alguém passa sete dias por semana, dez horas por dia num lugar, é porque ele se vê como um trabalhador e se reconhece ao estar trabalhando. Isso não quer dizer que isso seja toda a vida dele, mas é algo que não dá para ignorar.
Um dos entrevistados recebeu o auxílio, mesmo tendo um comércio essencial, e fez uma distinção social entre o sujeito que não trabalha – que é vagabundo ou noia (usuário de drogas) – e o que trabalha. Existe essa pretensão de distinção social também na periferia e ela se dá pelo trabalho. Quanto mais as pessoas trabalham, mais dignidade elas têm. Na cabeça de muitos deles, quem recebe auxílio é noia e não trabalha. Essa visão se encaixa com o discurso de Bolsonaro na pandemia. Ele captou esse sentimento do trabalhador brasileiro que quer trabalhar e se sente digno ao trabalhar.
Alguns comerciantes reconhecem o fato de o auxílio ter permitido que as pessoas pudessem comprar no comércio, ou seja, percebem que o auxílio dinamiza a economia. Mas é difícil para as pessoas admitirem essa verdade porque isso vai de encontro à ideologia na qual elas acreditam, de que o sujeito digno é o que trabalha. Vários colegas quiseram manter uma rede de solidariedade durante a pandemia, pagando as diaristas, mas muitas mulheres não aceitaram porque, para elas, é inconcebível a ideia de receber sem trabalhar. Não é cômodo e confortável para as pessoas receber sem trabalhar.
Não é por acaso que Bolsonaro fez aquele discurso durante a pandemia. Não é só por ele não querer ver a economia desabar; ele tem uma característica de se comunicar com esse perfil que vai desde o comerciante apegado à ética do trabalho até aquele que se vê como empreendedor, que também é apegado ao trabalho. Para eles, ficar em casa, mesmo ganhando renda do governo, implica em não crescer e estagnar.
A ideologia contemporânea gera esse sentimento, inclusive, em nós pesquisadores. Não é à toa que estamos sempre preocupados em produzir, em escrever artigos, em participar de eventos, porque não se pode ficar parado. O grande pecado contemporâneo é a estagnação, é ficar parado. Mesmo num emprego estável, você é cobrado por se qualificar o tempo todo. Inclusive, nesta pandemia vimos a quantidade de webinars disponíveis – as pessoas estão em casa e não podem ficar sem fazer nada.
Além disso, houve uma intensificação do trabalho no home office. Parece que o home office é um privilégio – e, do ponto de vista da contaminação, é um privilégio porque as pessoas se mantêm seguras do vírus, mas não se mantêm seguras da intensificação do trabalho.
IHU On-Line - Na sua avaliação, o discurso do empreendedorismo, mas também o do teletrabalho, ocultam, de outro lado, a essência da precarização do trabalho. Como a precarização do trabalho tem afetado a vida afetiva das pessoas e suas relações, especialmente neste período de pandemia?
Henrique Costa – Esta é uma das questões interessantes de se analisar neste período. À primeira vista, os trabalhadores ditos “essenciais” ficaram muito visíveis por causa da natureza do seu trabalho. Por outro lado, isso gerou, curiosamente, algumas consequências subjetivas e psicológicas naqueles que estão trabalhando em casa.
Tenho notado que se criou uma oposição entre essas categorias. Os trabalhadores não essenciais olham para os outros trabalhadores como irresponsáveis porque eles não fazem isolamento social e caem no discurso de Bolsonaro. Ou seja, há uma estereotipização de algumas categorias de trabalhadores, mas esta não é uma questão política. As pessoas não saem porque Bolsonaro mandou; é exatamente o contrário. Ele está dizendo o que elas querem: uma legitimação para fazer o que elas já fazem ou fariam. Essa é uma percepção inteligente de Bolsonaro na medida em que ele percebe qual é o sentimento que está colocado para esses trabalhadores. Tanto é assim que ele diz que, para fazer o Renda Cidadã, não quer tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Ou seja, ele está falando para os pobres que têm renda familiar de dois a cinco salários mínimos: os precários, humildes e que têm uma ideia de trabalho que se sobrepõem à política. Aqueles que estão trabalhando em casa olham para esses trabalhadores com preconceito e julgam que são irresponsáveis e bolsonaristas. Eles sentem que estão fazendo a sua parte, se sacrificando com as crianças em casa, sem diarista, para conter o vírus, enquanto outras pessoas não estão fazendo o mesmo.
A pandemia criou mais um elemento de distinção social, fazendo com que a classe média olhasse para si mesma como melhor diante de outras classes que não são responsáveis, não entendem o valor da vida e que, portanto, saem de casa e, para piorar, votam em Bolsonaro. O teletrabalho gerou, por exemplo, esse tipo de comportamento. Mas o fato é que todo mundo precisa sair de casa. Por mais que as pessoas se sintam valorizadas por estarem em casa – em tese, ajudando a conter o vírus, porque na cultura do narcisismo contemporâneo elas acham que sozinhas estão fazendo muita coisa para resolver os problemas sociais, quando na verdade os indivíduos não resolvem problemas dessa dimensão –, elas acabam sofrendo consequências psicológicas que não são irrelevantes, principalmente para quem tem filho em casa.
Quando os pais tinham a escola para deixar os filhos, tinha alguém olhando por eles, mas hoje o filho se tornou mais uma demanda de tempo integral. Não é uma demanda de somente dar a janta à noite e colocar para dormir. As consequências psicológicas entre os trabalhadores do teletrabalho são mais profundas do que para as classes populares que estão, como diz Bolsonaro, “tocando a vida”.
IHU On-Line – Os seus entrevistados, via de regra, aprovam o modo como o presidente tem conduzido a crise. O que eles relatam?
Henrique Costa – O rapaz mais empreendedor tem apreço por Bolsonaro, mas fora ele, as pessoas não sentem um amor incondicional pelo presidente. O fato é que Bolsonaro tem uma sensibilidade grande para entender essas pessoas. Contudo, elas não o amam justamente por causa da ética do trabalho. Numa entrevista, um homem me disse que era errado o presidente xingar os repórteres, porque eles estão trabalhando. A reprimenda é em relação ao comportamento dele com outros trabalhadores e não ao que nós, universitários, entendemos como sendo grave: o fato de ele ser violento e elogiar a tortura. Não é este o problema. As pessoas não gostam de xingamentos, de esporro. Gostaria de enfatizar o papel do trabalho aqui: essas pessoas veem o trabalhador de outra maneira e este é o núcleo de uma constelação de valores. Se a pessoa trabalha, merece respeito, mas se não trabalha, merece desprezo.
Talvez Bolsonaro não tenha essa sintonia fina de perceber que o comportamento dele é visto como imoral quando ofende os trabalhadores. Esse é um traço curioso que notei nessas entrevistas e merece mais aprofundamento.
IHU On-Line – No artigo, você também menciona que essas pessoas não veem o presidente como responsável pelas mortes de covid-19. O que elas dizem?
Henrique Costa - Em relação ao vírus em si, a maioria das pessoas não vê Bolsonaro como o maior responsável pelas mortes de covid-19. A pandemia é vista como um evento da natureza e as pessoas avaliam que ele fez o que pôde.
Nós gostamos de debochar do discurso dele acerca da cloroquina, mas o que passa pelo raciocínio das pessoas não é se o remédio fez efeito ou não, mas sim que o presidente está fazendo alguma coisa, porque ninguém sabe o que funciona até o momento. Então, elas leem os discursos dele como boa intenção de fazer algo. Além disso, veem Bolsonaro como uma pessoa comum que está trabalhando e tentando fazer algo. Nesse sentido, ele pode errar e falar num tom equivocado às vezes ou se expressar mal, porque ele não peca pela omissão. Do mesmo modo, embora saibamos que não era uma proposta do governo conceder o auxílio emergencial, no fim, quem deu a canetada que colocou R$ 600 na conta das pessoas foi ele.
IHU On-Line - Nas universidades também cresce o discurso do empreendedorismo. Como vê esse movimento no horizonte para o futuro econômico e social do país?
Henrique Cota – A universidade está num momento de redefinição dos seus rumos – e a pandemia acelerou esse processo – e há algum tempo está mudando o seu perfil. Existe uma desvalorização do diploma e ele não é mais o que foi antigamente do ponto de vista social – mas é claro que ter o diploma ainda é melhor do que não ter do ponto de vista de remuneração, mas ele não é mais um passaporte para uma vida melhor; ele é um visto temporário.
As universidades, principalmente as de pior qualidade, veem nisso um problema e, ao mesmo tempo, uma solução. Em função disso, começam a se proliferar aqueles cursos de curto prazo, de dois anos, e a ideia de que as pessoas precisam fazer cada vez mais. Ou seja, não basta fazer um curso só; é preciso fazer vários e, portanto, as pessoas precisam pagar por vários. O discurso do empreendedorismo penetra em diversos poros da sociedade, e na universidade isso acontece quando se percebe que o diploma não é mais tão necessário.
A situação fica ainda mais complicada quando essa visão penetra nas instituições públicas que, em tese, por terem financiamento público, estariam preservadas, mas não estão. Elas investem cada vez mais na ideia de inovação, e isso penetra em lugares que não geram valor econômico, como nos cursos de história, pedagogia, sociologia, ou seja, em disciplinas que não servem para gerar valor econômico. Por que alguém tem que ser produtivista numa faculdade de filosofia? Se o professor publicar um ou dez artigos por ano, isso não lhe dará mais dinheiro. Então, de onde vem essa gana por produzir como se fosse uma empresa? Este é o núcleo do neoliberalismo como ideologia e como ele penetra na nossa subjetividade.
Como ele penetra em todos os poros, vai desde o indivíduo até o Estado, que cria editais e mecanismos que empurram a universidade para este lado. Então, a extensão universitária, que tem o seu valor como um tripé universitário, acabou virando uma muleta. A universidade, para se sentir valorizada perante a sociedade, precisa investir em extensão universitária, porque a pesquisa não é vista como algo de valor. A própria universidade e o Estado não veem a pesquisa como valor.
IHU On-Line – A universidade está em crise, sem saber exatamente qual é o seu papel na sociedade?
Henrique Costa – Exatamente. Ao invés de a universidade enfrentar a difamação de ser um lugar de pessoas que não trabalham, e valorizar o que ela tem de melhor, que é a pesquisa, isso não é valorizado pela própria universidade. Ela se vê acuada por esses ataques e responde do jeito errado, ou seja, dizendo que tem um projeto de extensão social e trabalha em parcerias com ONGs. Ou seja, isso vira uma muleta para ela se legitimar. Mas aí entra o papel dos dirigentes universitários.
Se nós, enquanto pesquisadores, nos vemos como empreendedores acadêmicos que precisam produzir cada vez mais e trazer sempre coisas novas, se estamos fazendo isso no nosso cotidiano, como temos condições de cobrar que a universidade seja diferente? Nós reproduzimos a mesma lógica, mesmo quem é crítico.
É um momento difícil e não saberia dar uma receita, mas a universidade deveria enfrentar os ataques. Já tivemos um AI-5 para mostrar que a universidade consegue sobreviver a ataques mais violentos, mas por que não conseguimos resistir ao neoliberalismo – que não é um decreto – no nosso próprio cotidiano, na nossa rotina de trabalho? Por que estamos nos dispondo a trabalhar cada vez mais, incessantemente, tendo inúmeros problemas de saúde mental? Os problemas de saúde mental no ambiente acadêmico são inúmeros, com depressão, casos de suicídio por conta da pressão por produção. Escrever uma boa tese de doutorado é muito melhor do que escrever vinte artigos por ano falando sobre a mesma coisa. No dia a dia, as pessoas se veem incapacitadas de enfrentar esta lógica.