10 Setembro 2020
No fundo de uma valiosa coleção de ensaios, intitulada “Catholic Social Teaching: A Volume of Scholarly Essays” [Ensino social católico: um volume de ensaios acadêmicos] (Ed. Cambridge University Press, 2019), o teólogo moral jesuíta Martin Schlag destaca a distinção feita por Gustavo Gutiérrez entre Igrejas locais que refletem suas comunidades vizinhas (Iglesia-reflejo) e Igrejas locais que trazem algo novo para o mundo (Iglesia-fuente).
O comentário é de Bernard G. Prusak, professor de filosofia e diretor do McGowan Center for Ethics and Social Responsibility, do King’s College, na Pensilvânia, EUA. É autor de “Catholic Moral Philosophy in Practice and Theory: An Introduction” [Filosofia moral católica na prática e na teoria: uma introdução] (Paulist Press, 2016). O artigo foi publicado em Commonweal, 09-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dada a sua erudição, essa coleção reflete as circunstâncias eclesiais e políticas da sua realização. Chame isso de academicismo-reflejo, em vez de fuente.
Mas que reflexo! Não menos importante entre suas virtudes, a obra destaca o estado da Igreja nos Estados Unidos e na Europa.
O ensino social católico (ou pensamento, tradição) é frequentemente contrastado favoravelmente com o ensino moral católico, que tem se focado tradicionalmente na permissibilidade de atos individuais e é comumente identificado com a condenação do magistério de práticas como o aborto, a contracepção e a eutanásia.
Os editores rejeitam aquilo que E. Christian Brugger chama de “bifurcação conceitual espúria” e propõem, em vez disso, que as “normas negativas sem exceção” do ensino moral católico e os princípios positivos do ensino social católico devem ser vistos “como dois lados (...) da mesma preocupação moral” pela realização humana integral. Gerard V. Bradley caracteriza o ensino social católico simplesmente como “aquela parte da Boa Nova que trata da justiça e do genuíno florescimento humano na sociedade”.
Brugger e Bradley apresentam o seu livro, portanto, como “um corretivo a um corpo literário ideologicamente desequilibrado” que discorda do ensino moral católico, embora celebre o ensino social católico como supostamente o segredo mais bem guardado da Igreja.
Dado o ímpeto ideológico do seu projeto, não é surpreendente que alguns dos capítulos sejam marcados por golpes, farpas e outros gestos mentais irritáveis dirigidos contra o Papa Francisco, a teologia da libertação, os progressistas “teilhardistas” e os ministros eclesiais leigos, especialmente quando são mulheres.
Há uma certa genuflexão em relação ao Papa João Paulo II como “o papa santo”. Em contraste, o capítulo de Daniel Mahoney sobre o ensino social do Papa Francisco é absolutamente condescendente.
Em uma frase característica, Mahoney relata que “eu estou preocupado com a tendência crescente do Papa Francisco de confundir a sabedoria católica com um humanitarismo secular de tendência esquerdista”.
Em geral, porém, os ensaios são muito impressionantes (Mahoney também levanta questões importantes sobre o papel dos mercados no enfrentamento da pobreza e das mudanças climáticas).
Os dois capítulos sobre os antecedentes históricos do ensino social católico – um de John Finnis sobre Tomás de Aquino e outro de Thomas Behr sobre o ensino social católico no contexto do século XIX – valem quase o exorbitante preço do livro.
Eles são seguidos por sete capítulos de leituras minuciosas da “tradição documental” de Leão XIII a Francisco, 11 capítulos que investigam diversos temas do ensino social católico e três capítulos que consistem em “reflexões avaliativas e críticas”.
O último desses capítulos, “Uma crítica radical ao ensino social católico”, é também de autoria de Finnis, um filósofo moral natural da Austrália e estudioso do Direito que atualmente leciona em Notre Dame.
Em seu instrutivo capítulo sobre o ensino social católico e as finanças, Robert Kennedy observa que o ensino social católico tem sido “moldado e provocado pelos desafios do dia”, com o resultado de que ele é “atual e absolutamente não é uma reflexão sistemática e abrangente sobre princípios”.
Com base nos capítulos dedicados a leituras minuciosas dos principais documentos do ensino social católico, os capítulos sobre temas específicos reúnem princípios do ensino social católico frequentemente citados, como o bem comum, a chamada destinação universal dos bens da criação (glosado por V. Bradley Lewis como “as coisas são para as pessoas”), a subsidiariedade e a opção preferencial pelos pobres.
Catherine Ruth Pakaluk levanta um argumento convincente de que “o socialismo e o comunismo são as heresias fundadoras” do ensino social católico, aos quais tal ensino foi desenvolvido como reação.
Lewis destaca a clássica preocupação conservadora que molda o início do ensino social católico, de que “a redução do pluralismo das instituições e comunidades na sociedade moderna (...) deixou o indivíduo frente a frente com o Estado”.
Maria Catherine Cahill argumenta, em linhas semelhantes, que o principal ponto do princípio da subsidiariedade “é dizer que as associações existem independentemente do Estado e antes do Estado”, que deve reconhecer uma medida substancial de liberdade de associação “fora do respeito pelas prévias reivindicações de autogoverno [das associações]”.
O capítulo de Martin Schlag sobre a opção preferencial pelos pobres examina a influência da teologia da libertação e a intimamente relacionada “teologia do povo” no ensino social católico, levando, por meio do papado de Paulo VI, ao entendimento dos pobres, por parte de Francisco, como “mestres daquilo que Cristo quer que a Igreja saiba aqui e agora”.
Refletindo sobre a dimensão classicamente conservadora do ensino social católico, Christopher Wolfe adverte que “a ênfase do ensino social católico moderno na expansão dos poderes do governo para cumprir (...) as obrigações exigidas pelo bem comum não foi correspondida por uma preocupação correspondente com os limites institucionais”.
Duas preocupações que permeiam muitos dos ensaios marcam a coleção como uma criação do seu tempo e lugar: a imigração e aquilo que Finnis chama de “alcance clerical”, que mina o direito dos leigos, e não do clero, de determinar a aplicação dos princípios do ensino social católico às polêmicas do momento.
Kevin Flannery examina a base filosófica dos documentos da tradição sobre a imigração no pensamento de Tomás de Aquino e do posterior escolástico espanhol Francisco de Vitoria.
Contra esse pano de fundo, Flannery argumenta que “uma autoridade prudente de um governo soberano seria obrigada pela lei natural da maneira mais forte – senão absolutamente – a admitir refugiados genuínos”.
Da mesma forma, ele sustenta que a justiça exige a aceitação de um chamado “imigrante econômico” (isto é, um imigrante que descobre que uma vida digna não está mais disponível em sua terra natal), “desde que seja provável que a aceitação da pessoa (ou da sua família) contribuirá para o bem do próprio governo”.
Flannery reconhece que esse é um julgamento político a ser feito pelas autoridades seculares, mas comenta que é provável que o imigrante econômico beneficie seu novo país, porque é natural que os seres humanos “encontrem (...) seu bem individual” no bem comum.
Outros contribuintes, mais veementemente Finnis em outra contribuição, favorecem um julgamento prudencial diferente. Escrevendo sobre a globalização, Finnis se refere aos “efeitos colaterais negativos da multietnicidade e do multiculturalismo”, em particular a mistura de “religiões politicamente opostas” (em relação às quais ele parece ter em mente o Islã e o cristianismo), e profere palavras gentis sobre “as políticas restritivas e etnicamente seletivas, como aquelas que estabilizaram cultural e economicamente os Estados Unidos entre 1924 e 1965”.
Em sua leitura, o ensino social católico é compatível e pode até exigir “uma política imigratória que, pelo bem dos mais pobres e mais vulneráveis entre a população indígena (nacional), restringe a entrada a pessoas de qualificações elevadas e necessárias, e recusa a entrada ou deporta aquelas que entraram ilegalmente (‘sem documentos’)”.
A lista de Finnis de quem pode ter a entrada recusada continua – os adeptos de religiões opostas aparecem novamente –, mas essa citação é suficiente para sentir um cheiro do“Make America Great Again”, do Brexit e do orbanismo no ar. Finnis e outros se esforçam para mostrar que o ensino social católico não é, de fato, o Partido Democrata em oração. Nem que o ensino social católico une os fiéis politicamente.
É um ponto de discussão familiar que o ensino social católico permite julgamentos prudenciais divergentes, enquanto as “normas negativas” do ensino moral católico não permitem exceções.
Alguns dos ensaios simplesmente repetem esse ponto, mas outros aprofundam as suas implicações para o papel da Igreja no mundo moderno. O capítulo de Christopher Tollefsen sobre o apostolado leigo explora cuidadosamente a relação entre o clero e o laicato, com o objetivo de entender por que o mandato do Vaticano II de que o apostolado leigo “seja ampliado e intensificado” foi amplamente ignorado.
Assim como Russel Shaw em um capítulo diferente, Tollefsen aponta para a recente ênfase no ministério leigo, como se atuar como leitor ou catequista fosse um substituto para o trabalho para garantir que “a lei divina seja inscrita na vida da cidade terrena”, como ordena a Gaudium et spes.
A “crítica radical” de Finnis ao ensino social católico vai mais longe ao remover o clero de posições de autoridade em relação aos “julgamentos sobre fatos contingentes, causalidades e probabilidades” que devem ser feitos na aplicação dos princípios do ensino social católico a problemas sociais e políticos reais.
De acordo com ele, “os papas e outros pastores, em geral, devem declarar apenas as normas morais atemporais e os princípios morais gerais [da Igreja]; se ensinarem algo além disso como ensino social católico, isso deve ser feito sempre em forma hipotética” (se as circunstâncias forem estas e aquelas, então você deve escolher assim).
O resultado é que grande parte da “práxis” do ensino social católico deveria ser “remetida aos leigos”, e os papas deveriam parar de emitir documentos tão longos – e às vezes mal escritos e mal argumentados – que quase ninguém, exceto os estudiosos, leem na íntegra.
Finnis tem os seus motivos próprios para escrever isso, e é questionável se, por exemplo, a Diocese de Albany teria estabelecido seu programa de troca de agulhas para viciados em opioides se o seu bispo não tivesse recorrido ao ensino social católico.
Além disso, deve-se notar que muitas vezes há julgamentos contestáveis envolvidos na aplicação das normas morais negativas da Igreja.
Dito isso, é outro sinal dos tempos, e talvez outro efeito do escândalo dos abusos sexuais clericais, que até mesmo um católico muito conservador como Finnis esteja cansado do clericalismo.
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Ensino social católico em debate: assunto de leigos? Artigo de Bernard G. Prusak - Instituto Humanitas Unisinos - IHU