31 Agosto 2020
Durante a maior parte da minha vida adulta, eu acreditei que a seguinte citação era do presidente Ronald Reagan: “Não há limite para o bem que se pode fazer se você não se importa em receber o crédito”. Provavelmente porque eu estava no colégio quando Reagan foi eleito, eu me lembro dele dizendo isso.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 30-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Recentemente, eu descobri que, na realidade, há múltiplas referências para essa citação, que vão desde Benjamin Jewett, um teólogo de Oxford e classicista do século XIX, passando pelo jornalista britânico Charles Edward Montague, até o presidente Harry Truman. No entanto, de acordo com Garson O’Toole, que se apresenta como um “investigador de citações”, o autor mais provável dessa frase é um jesuíta chamado “Pe. Strickland”, que teria anotado essa frase em um diário de 1863.
A referência, quase certamente, é do padre jesuíta William Strickland, que ajudou a manter os jesuítas unidos na Inglaterra após a supressão da ordem em 1773 pelo Papa Clemente XIV. Ele atuou como procurador da ordem depois que os jesuítas ingleses se filiaram aos jesuítas da Rússia Branca em 1803, onde Catarina, a Grande, se recusou a reconhecer a supressão.
Há algo de apropriado no fato de ter sido um padre católico que cunhou a famosa frase sobre ser capaz de realizar grandes coisas desde que você não queira o crédito, porque, entre todos os lugares da terra onde isso é verdade, o Vaticano merece um destaque especial.
De vez em quando, os altos escalões das autoridades vaticanas podem alcançar uma espécie de celebridade. O cardeal Joseph Ratzinger certamente a alcançou depois de 1984, ano que marcou a publicação de “Rapporto sulla fede”, seu livro de entrevistas best-seller com o jornalista católico italiano Vittorio Messori, publicado em inglês como “The Ratzinger Report” [e em português como “Diálogos sobre a fé”].
Com suas opiniões fortemente conservadoras sobre o estado da Igreja pós-Vaticano II, a linha divisória no debate católico nas duas décadas seguintes passou a ser se a pessoa estava positiva ou negativamente inclinada em relação a Ratzinger.
Neste momento, o típico romano “desigrejado” provavelmente poderia citar duas personalidades vaticanas, uma atualmente empregada e a outra decididamente do lado de fora: o cardeal Konrad Krajewski, da Polônia, que, como braço direito do papa na distribuição da caridade em Roma, pôs a cidade em chamas com gestos como o fato de descer pessoalmente por um bueiro no ano passado para religar a energia elétrica de uma moradia ilegal onde ela havia sido cortada; e o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò, ex-embaixador papal nos Estados Unidos e ex-secretário do Estado da Cidade do Vaticano, que se tornou a voz da oposição a todas as coisas relacionadas a Francisco.
Em geral, entretanto, e especialmente abaixo das fileiras dos cardeais e arcebispos, as autoridades vaticanas vivem e se movem nas sombras. Talvez, elas ocasionalmente apareçam em um painel de um congresso, talvez elas concedam uma rara entrevista a um meio de comunicação, mas, na maioria das vezes, elas podem caminhar pelas ruas, se deslocar pelos aeroportos e ir ao cinema sem problemas.
Muitas autoridades vaticanas podem passar a maior parte de uma década trabalhando em um documento que nunca levará o seu nome e pelo qual nunca receberão nenhum crédito. Elas podem preparar o terreno para uma decisão papal importante, mas no fim será o papa quem a assinará e de que a história se lembrará. Elas podem organizar viagens papais que mudarão o curso dos eventos, mas ninguém nesses lugares sequer poderia reconhecê-las.
Quando pensamos nas figuras importantes da vida católica, por razões óbvias, as nossas mentes tendem a se voltar para as pessoas de quem ouvimos falar. À esquerda, agora, por exemplo, muitos citariam o padre jesuíta James Martin, ou a Ir. Simone Campbell, como católicos importantes. À direita, as pessoas poderiam apontar para o arcebispo Charles Chaput, ou o colunista do New York Times Ross Douthat, ou Raymond Arroyo, da EWTN.
Para ser claro, todos esses jogadores importam. Eles têm seguidores e influência, e ajudam a definir os termos do debate.
Mas o problema é o seguinte: e as pessoas que trabalham nos bastidores, cujos nomes nunca se tornam conhecidos, que nunca terão a experiência – como todos os que eu citei acima, em diversas ocasiões – de entrar em uma sala e ver as pessoas gritarem e aplaudirem simplesmente porque elas estão presentes?
Apesar disso, as pessoas de quem eu estou falando continuam aparecendo para trabalhar todos os dias e continuam tentando realizar mudanças a partir de dentro (certamente, há algumas pessoas no sistema que são simplesmente burocratas batendo ponto, o que os italianos chamariam de “menefreghisti”, ou seja, pessoas que não estão nem aí, mas não são todos).
É preciso um tipo especial de coragem – pode-se quase chamá-la de fé – para continuar, ano após ano, sem realmente se importar se alguém vai aplaudir você por isso.
É claro, nem todo mundo que eu estou descrevendo está seguindo na mesma direção. Alguns são conservadores, tentando silenciosamente defender a tradição, e outros são mais progressistas, tentando pressionar algumas questões tanto quanto eles acreditam que elas estão preparadas para avançar. O que os une são dois pontos: primeiro, a convicção de que vale a pena servir à instituição, quaisquer que sejam as suas falhas; e, segundo, que elogios e renome são menos importantes do que resultados.
A Igreja Católica já tem uma festa de Todos os Santos, destinada principalmente a todas as mulheres e homens que nunca foram formalmente canonizados, mas que, no entanto, viveram vidas de santidade excepcional silenciosamente.
Talvez precisemos também de uma festa de Todas as Autoridades, destinada a essa vasta legião anônima de mulheres e homens que, ao longo dos séculos, tentaram fazer um enorme bem a partir de dentro, sem se importar com quem fica com o crédito.
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Os “reformadores” anônimos da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU