27 Agosto 2020
Ações dos movimentos camponeses durante a pandemia, que se somam a outras campanhas pelo país, vão muito além da entrega de alimentos; “ao contrário da Solidariedade S/A, compartilhamos o que temos”, diz líder sem-terra.
A reportagem é de Mariana Franco Ramos, publicada por De Olho nos Ruralistas, 26-08-2020.
O Brasil é um país de contrastes. Se, por um lado, passamos das 115 mil mortes em decorrência da Covid-19, muitas das quais evitáveis, por outro crescem as ações de solidariedade entre os povos do campo e da cidade.
Desde o início da pandemia, em março, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) distribuiu 3,1 mil toneladas de comida, número que cresce a cada semana. Somadas com as 200 toneladas entregues até aqui pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), as doações protagonizadas por camponeses ultrapassam 3,3 mil toneladas. A quantidade equivale a 114 contêineres de quarenta pés, usados para exportação, em sua carga máxima. Também correspondem a 550 vezes o volume de alimentos e remédios enviados pelo Brasil ao Líbano após a explosão no porto de Beirute.
As ações não se resumem às doações. Junto a organizações como Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Movimento de Trabalhadores por Direitos (MTD), Levante Popular da Juventude e às frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, os camponeses do MST desenvolvem as campanhas Periferia Viva e Vamos Precisar de Todo Mundo, que reforçam o papel da solidariedade, da agroecologia e dos movimentos sociais no combate à pandemia e à fome.
Camponeses preparam doações em Rio Bonito do Iguaçu. (Foto: Wellington Lenon/MST-PR)
Ambas se colocam como um contraponto à Solidariedade S/A, veiculada diariamente no Jornal Nacional, da Rede Globo, que destaca doações realizadas por grandes empresas — muitas vezes irrelevantes em relação ao tamanho dessas corporações, em grande parte agroindústrias. “Solidariedade para nós não é dar o que sobra, porque não sobra nunca”, resume Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST. “As famílias participam e gostam, porque também receberam doações quando estavam acampadas, debaixo de lona. Para elas é uma forma de retribuir”.
Como forma de dar mais atenção às ações que a Globo não mostra, De Olho nos Ruralistas passa a reunir, por região, informações sobre vaquinhas ou campanhas de arrecadação de fundos para o auxílio a comunidades ameaçadas pela fome. Essa cobertura se soma uma série de reportagens destacando as iniciativas de doação encabeçadas por movimentos do campo, parte da cobertura especial sobre segurança alimentar, De Olho na Fome.
A série começa com a região Sul: “Protagonistas de conflito histórico, Araupel e MST têm atuações distintas na pandemia”.
Anunciada como possibilidade no início da pandemia, a volta do Brasil ao Mapa da Fome parece cada vez mais próxima da realidade. A situação é facilmente constatada pelos voluntários que participam das doações. “Estamos encontrando as panelas vazias de forma desesperadora”, relata Kelli. “São situações brutais. Esse encontro das panelas vazias com o alimento que vem do MST, da roça ou o que a gente doa através de campanhas faz muita diferença para salvar vidas”.
Para Thays Carvalho, da coordenação nacional da campanha Periferia Viva, que agrega movimentos populares de todo o Brasil, em muitos casos a mobilização pela sociedade civil supriu a demora de governos em tomar ações concretas: “A fome chegou antes do vírus nas periferias. Por isso construímos um projeto chamado Marmitas Solidárias, de distribuição para a população de rua”.
Juventude sem-terra entrega alimentos na periferia de Fortaleza. (Foto: Aline Oliveira/MST-CE)
Criada no Recife ainda no início da pandemia, a iniciativa já abrange dez estados, partindo da ideia de que a solidariedade é um processo orgânico, que envolve as pessoas na busca pelos seus direitos. “Não somos apenas um agente externo que entrega o alimento”, explica Thays. “Buscamos mobilizar o território”.
A Periferia Viva trabalha, ainda, com a formação de agentes populares de saúde. A exemplo do que ocorre com o MST, o objetivo é capacitar pessoas para que se organizem, cuidem de si, das suas famílias e da comunidade, complementando o Sistema Único de Saúde (SUS). “Em Recife a gente já tem oitenta turmas”, comenta. “O agente é uma força viva, um organizador da sua comunidade, que ajuda a resolver os problemas”.
Para Kelli Mafort, do MST, a crise financeira e a falta de comida decorrentes da pandemia devem reforçar a pauta de direitos. “Muito provavelmente no pós-pandemia haverá uma retomada da luta pela terra e pela moradia, porque a desigualdade social é extrema”, explica. Além do aumento da produção nos assentamentos, para suprir a demanda por doações, o movimento busca reduzir desigualdades de gênero a partir do desenvolvimento de uma rede de combate à violência doméstica, dentro e fora dos assentamentos.
Allanis Pedrosa, do Levante Popular da Juventude, reforça a importância do combate à desigualdade. O movimento já desenvolvia a campanha Nós por Nós, que se fortaleceu por conta da pandemia. “Com a convergência de crises, econômica, política e social, as condições do povo ficaram mais difíceis”, destaca. Assim como seus parceiros, o Levante procura estabelecer a ponte entre quem quer ajudar e quem precisa de ajuda. “É o povo ajudando o povo; não existem outros interesses além da garantia da sobrevivência”.
Disputar o conceito de solidariedade é outro aspecto que permeia as iniciativas do campo popular. Ao mesmo tempo em que ganham visibilidade na campanha da Rede Globo, setores como o agronegócio expõem milhares de trabalhadores à Covid-19. “A ideia das grandes corporações é fazer propaganda para acumular cada vez mais lucro”, opina Allanis. “Elas escolhem quem vai doar e para quem. Para nós, a solidariedade acontece com o povo sendo protagonista”.
Ela reforça que quem alimenta o povo brasileiro é a agricultura familiar, ou camponesa: “Essa é uma solidariedade horizontal, ativa. O outro não é uma vítima a ser salva, mas um agente que pode transformar a sociedade. Todos os envolvidos participam e têm algo a partilhar”.
Presente em dezessete estados brasileiros, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) criou mutirões de combate à fome. Segundo o camponês e historiador Leomárcio Araújo da Silva, que coordena o coletivo nacional de soberania alimentar, o número de famílias envolvidas nas operações se aproxima de 13 mil.
“Isso diretamente, porque a gente tem iniciativas com outras campanhas de caráter mais local ou regional e que também são importantes”, conta. O movimento registrou até agora 142 ações, chegando à marca oficial de 162,7 toneladas de alimentos doados. “Envolvendo parceiros e na campanha em cada estado, o número passa de duzentas toneladas”. Ao todo, 419 militantes, distribuídos em 58 comitês populares, participaram das atividades.Assentado no município de Ponto Novo, na Bahia, o camponês destaca o esforço gigantesco de deslocar da base à capital, Salvador, produtos em distâncias às vezes superiores a quinhentos quilômetros:
— Além do deslocamento, fazemos a montagem das cestas, com toda a atenção à questão sanitária. Ao final, a gente tem uma participação direta e voluntária imensa, inclusive no produto comercializado. Se a visão fosse puramente capitalista, de orçamento, não valeria tanto esforço. Quem faz é com muito amor e muito gosto.
Silva relata ainda que o MPA não trabalha somente com os alimentos que vêm dos agricultores. Voluntários em diversos municípios contribuem com doações em dinheiro e com produtos. “Outra dimensão é a da comercialização, já que no campo as dificuldades são grandes, especialmente num período em que as feiras livres estão suspensas”, afirma.
De acordo com ele, as estimativas não conseguem abarcar todas as ações de solidariedade. “São várias as ações feitas nas comunidades, pelos agricultores”, prossegue. “Fora do nosso registro há um número muito maior de alimentos sendo doados, a partir do senso humanitário de cada um”.
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Doações do MST e do MPA chegam a 3.300 toneladas, mas não aparecem no Jornal Nacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU