"Quando novamente for possível respirar politicamente no Brasil, será necessário pensar no procedimento para a responsabilização penal dos militares que estão se 'associando ao genocídio' promovido pelo governo Bolsonaro. Creio que será necessária a instalação de uma nova Comissão Nacional da Verdade, desta feita dedicada a apurar as condutas dos agentes públicos com ou sem farda durante o período pandêmico no país", escreve Leonardo Barros Soares, psicólogo, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Começamos a reunião de um grupo de pesquisa do qual participo fazendo o levantamento das lideranças indígenas recém-vitimadas pelo Covid-19. Relembro de Nelson Rikbaktsa, jovem e enérgica liderança na área da saúde indígena da região noroeste do Mato Grosso, e de Aldecir Arara, este voltado para a temática escolar.
Um dos participantes menciona os anciões que faleceram no nordeste de Roraima.
Outra colega rememora seus anos de trabalho com o cacique Aritana Yawalapiti, ressaltando seu impressionante poder político de mediação de conflitos e construção de alianças. Aliás, penso que nós brasileiros jamais saberemos a real estatura moral de um homem como ele, reconhecido como um dos grandes diplomatas do Xingu. A maioria de nós jamais saberá que entre nós caminhou um gigante que é comparável a alguns dos líderes mais proeminentes da história mundial. Nos calamos, cansados de resignação, tristeza e raiva.
Aritana Yawalapiti. (Foto: Ademir Rodrigues/Brasil Indígena/Funai/Divulgação)
Pouco antes, um amigo que trabalha com a questão indígena há décadas me mandou mensagens com a voz claramente embargada de indignação e impotência. Pedia a minha ajuda para um levantamento de artigos que atestem a ineficácia da Ivermectina que, segundo ele, estava sendo distribuída em aldeias junto com a famigerada Cloroquina numa espécie de “kit-anti Covid”. Queria distribuir esses artigos para as autoridades que estão envolvidas nessa ação, de modo a deixar claro sua discordância. Como nós, ele também pode fazer pouco contra as ordens desarrazoadas que é obrigado a seguir.
Os observadores da questão indígena, seus aliados e suas organizações são unânimes em denunciar o que chamam de genocídio das populações tradicionais perpetrado pelo governo Bolsonaro. O termo é tecnicamente correto, como se sabe, pois diz respeito à ação ou inação potencialmente danosa de um determinado grupo político em desfavor de uma fração étnica, racial ou religiosamente distinguível de sua população majoritária.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes advertiu, de forma clara, aos militares brasileiros que “o exército está se associando a um genocídio”. Sylvia Steiner, única brasileira a integrar a corte do Tribunal Penal Internacional também vê a possibilidade de agentes políticos, a começar por Bolsonaro, serem julgados pela gestão desastrosa da crise sanitária, em especial em relação aos povos indígenas.
Até Gonzalo Vecina Neto, ex-Secretário Nacional de Vigilância Sanitária, afirmou que “estamos promovendo um genocídio com os índios. É um genocídio real. Tem gente se colocando contra o termo genocídio, mas é real. Está acontecendo nas tribos indígenas do Centro-Oeste”.
Em suma, os militares brasileiros sabem que correm o risco de serem condenados internacionalmente por genocídio. Sabem disso e têm medo.
E esse medo não é de hoje. O incontornável livro do jornalista Rubens Valente intitulado “Os fuzis e as flechas: histórias de sangue e resistência indígena na ditadura” narra uma série de episódios de contatos entre povos indígenas e agentes do governo ou de missões religiosas, na década de 1970, que resultaram em contágio massivo e dizimação de aldeias inteiras, sem nenhuma assistência da FUNAI.
Segundo ele, já em 1972 o etnólogo francês Jean Chiappino produzira um relatório para o Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas (IWGIA, em sua sigla em inglês) em que questionava a metodologia de trabalho da instituição indigenista que, a seu ver, era vetor de doenças e mortes.
E se perguntava (p.68), num trecho que poderia muito bem servir para nossos tempos: “esse trabalho de proteção é tão desagradável para certas pessoas ou significa uma política deliberada? O silêncio em que é mantido não revela que certas pessoas estão bem informadas sobre o que estão promovendo? E não temamos uma palavra: isso não é genocídio?”.
As críticas internacionais sobre a capacidade dos governos militares de evitarem o extermínio dos povos indígenas se avolumaram de tal forma que as autoridades buscaram uma chancela de uma organização internacional – no caso, a Cruz Vermelha – que desse um “atestado” de que tudo corria bem com nossos povos tradicionais.
A Comissão Nacional da Verdade – que tanto enfureceu os militares das três armas- estimou que durante a ditadura civil-militar morreram pelo menos 8.350 indígenas, dentre os quais cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, 354 Yanomami e 85 Xavantes de Marãiwatsédé.
É um número claramente subestimado, pois é sabido que milhares mais morreram à míngua de fome e doenças sem terem a dignidade de serem considerados humanos pelos governos da época.
Ainda assim, dá a magnitude do desprezo para com nossos povos tradicionais, algo que, sem exagero, não podemos descartar como impossível de acontecer novamente. Ou é, por acaso, surpresa para alguém que o governo Bolsonaro é um inimigo declarado dos direitos indígenas consagrados pela constituição de 1988?
Os militares brasileiros não sofreram punições pelas atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar. Ao contrário, patrocinaram uma transição democrática tutelada, provavelmente responsável por boa parte das mazelas republicanas que vivenciamos hoje em dia. A anistia desceu amarga pela garganta, mas a vida seguiu. A política normalmente não é bonita, nem justa. Nós aprendemos isso da pior maneira.
No entanto, entendo que, quando novamente for possível respirar politicamente no Brasil, será necessário pensar no procedimento para a responsabilização penal dos militares que estão se “associando ao genocídio” promovido pelo governo Bolsonaro.
Creio que será necessária a instalação de uma nova Comissão Nacional da Verdade, desta feita dedicada a apurar as condutas dos agentes públicos com ou sem farda durante o período pandêmico no país.
E, desta vez, não poderá haver anistia “ampla, geral e irrestrita”, sob pena de nunca conseguirmos fixar os militares nas casernas de uma vez por todas. As mortes de Aritana, Payakan e tantos outros não podem ficar impunes.
Vai doer. Vai ser duro. Eles vão gritar, espernear, vai haver muito choro e ranger de dentes. Vão resistir. Mas é o que tem de ser feito.