"Àqueles que tecem a crítica e fazem a resistência a esse processo depredatório, expropriador e opressivo da privatização da água utilizam a ideia de que a água é um direito de todos, por isso não pode ser concessionada (privatizada), afinal, quando algo é entendido como direito geralmente se subentende que é universal e deve ser universalizado igualmente para todos. Na contramão, temos convicção que a água (assim como outros bens/meios naturais) não é um direito, mas uma condição vital para todas as formas de vida do/no planeta, inclusive a que nos diz respeito mais diretamente: a humana", escreve Iael de Souza, professora efetiva da UFPI/Teresina, lotada no curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC/Teresina), colaboradora do curso de Ciências Econômicas da UFPI/Teresina, doutora em Educação pela UNICAMP/SP, mestre em Ciências Sociais pela UNESP/Marília e pesquisadora do NESPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Emancipação Humana), da UFPI/Teresina.
Na abertura de sua obra de maturidade, O Capital – Crítica da Economia Política, Marx abre dizendo:
A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em “imensa acumulação de mercadorias”, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza (...) A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (MARX, 1982, p. 41 e 42).
Com o capital (relação social de apropriação privada, por uma minoria, da riqueza socialmente produzida pela maioria) tudo se transforma em mercadoria e o valor de troca subsume o valor de uso (as relações entre os indivíduos é estabelecida pelo mercado, pela troca, daí vivermos em uma sociabilidade de mercado sob o sistema do capital), que se transforma em suporte material para a realização do valor.
Através da mundialização do capital e seu império global iniciado no final do século XIX e consolidado no século XX, assiste-se à mercantilização de tudo, efetivamente, em escala planetária. A partir do final da década de 1980 e início de 1990, principiando com Fernando Collor de Mello (1990-1992) e seu Programa Nacional de Desnacionalização[1] (PND) – leia-se privatização, condição da nova fase de acumulação do capital global, agora atuando via regime político-econômico neoliberal –, o Brasil passa a seguir e colocar em prática a cartilha do Consenso de Washington, chegando ao ápice com Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), que através da Reforma do Aparelho e Aparato do Estado, mediante as reformas infraconstitucionais, criará o arcabouço jurídico-legal para implementar o processo de mercadorização e empresariamento do público e das políticas públicas-sociais[2]. Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016) fariam um governo pautado na política de concessão/colaboração de classes para a governabilidade, ambíguo, contraditório e um golpe fatal para a mobilização e organização combativa dos movimentos sociais em geral, e mesmo que a Lei Nacional do Saneamento Básico (LNSB), lei nº 11.445/2007, possa ser considerada um avanço no setor, a contradição da forma de política de governo está posta na Lei nº 11.079/2004, avançando no processo de privatização com a Lei de Parcerias Público-Privadas (PPPs).
A questão da queda de braço (relações de poder e força medidas entre representantes políticos e movimentos sociais, estes últimos recebendo apoio de outras instituições da sociedade civil organizada) pela privatização do saneamento básico se arrasta desde a década de 1990. Porém, encontra, a partir do governo golpista de Michel Temer, em 2016, um mecanismo de rolo compressor de Medidas Provisórias (MPs) e Decretos que aceleram o processo das privatizações. Põe em prática imediatamente, logo ao assumir a presidência ainda como interino, o Projeto Uma Ponte para o Futuro[3] que, na verdade, deve ser lido como uma ponte para o aprofundamento da barbárie social, retirando todos os direitos dos trabalhadores(as), impondo o máximo de austeridade econômico-social e precarizando, de modo deletério, as condições de vida (existência) e trabalho de todos(as) que vivem do trabalho assalariado.
Por duas vezes Temer, através da MP 844/2018 e da MP 868/2018 – esta última editada dias antes de deixar a presidência da República – procurou garantir a atualização do Marco Legal do Saneamento Básico, abrindo todas as prerrogativas ao seu processo de privatização. A validade da MP 868/2018 caducou em 3 de junho de 2019. Prontamente um PL (Projeto de Lei) apresentado pelo governo Bolsonaro (PL 3.261/2019) é aprovado e encaminhado para a Câmara. Moções de Repúdio e outras manifestações de movimentos e entidades acabaram forçando a suspensão da tramitação. No entanto, com a deflagração da SARS-COV-2 em fevereiro/março de 2020 a questão do saneamento básico vem novamente à tona. É a hora perfeita para o reaparecimento do PL, agora como o 4.162/2019, desmantelando o sistema brasileiro de saneamento básico e entregando-o para o setor privado/empresarial e para o capital transnacional, aprovado pelo Senado no dia 24 de junho de 2020, por 65 votos contra 13 (na Câmara foi aprovado em dezembro de 2019), aguardando apenas sanção presidencial.
Os intelectuais orgânicos do capital e dos capitalistas, como as emissoras de TV – ainda é o meio principal de veiculação de notícias junto às periferias urbanas e rurais – que transmitem os jornais oficiais, preparam e fabricam o consenso para a formação do senso comum em torno da necessidade de privatização do serviço de saneamento básico (abastecimento e distribuição, coleta, tratamento dos esgotos e resíduos, manejo da água da chuva), utilizando como justificativa que o Estado é ineficiente e não dispõe de recursos para universalizar o serviço em todo o território nacional. Daí a privatização, ou como preferem dizer, eufemisticamente, a concessão/outorga às corporações e empresas privadas, nacionais e internacionais, como forma de garantir a todos a disponibilização e o acesso aos serviços de água e esgotamento. Nada mais falacioso!
Assistir aos noticiários das emissoras é, no mínimo, repugnante. Não há exceções. Nada se diz a respeito de que o Brasil caminha em sentido contrário a países europeus, como França e Alemanha, aos Estados Unidos e à própria América Latina, como comprovam Argentina, Bolívia e Equador, atualmente reestatizando/remunicipalizando – ou já sido reestatizado/remunicipalizado – os serviços públicos, dentre eles o saneamento básico. Conforme levantamento realizado pelo Instituto Transnacional, sediado na Holanda, de 2000 a 2017, mais de 800 municípios, em mais de 35 países, reestatizaram seus serviços.
Também há silêncio total – e mesmo proposital, como bem sabido – ao caso elucidativo da Guerra da Água, na Bolívia, ocorrida em 2000. No documentário The Corporation, de 2003, e no de Carlos Pronzato: Bolívia, la Guerra del Agua (A Guerra da Água), de 2020, a problemática da água na Bolívia é retratada. No primeiro, vemos cenas dos enfrentamentos e da guerra civil que toma conta das ruas, a repressão policial e a resistência aguerrida do povo, que vai se politizando e elevando sua consciência através da luta, tornada pedagógica, educativa, formadora (formação político-social). No segundo, temos os depoimentos de vários indivíduos que participaram ativamente de todo o processo, lideranças emergidas da e na luta, militantes de movimentos sociais, sindicatos, partidos; no entanto, o embrionariamente novo foi a articulação/organização do povo em um órgão próprio, popular, autônomo e independente das instituições sociais formalizadas participantes, uma coalização denominada Coordenadoria de Defesa da Água e da Vida.
Os únicos jornais que falam sobre o acontecimento/fato são os alternativos, via de regra intitulados de esquerda, na internet e redes sociais (Revista Ópera, Brasil de Fato, Outras Palavras, Instituto Humanitas Unisinos, Escola Técnica Joaquim Venâncio – RADIS –, Carta Capital, EcoDebate, dentre outros). O caso boliviano é ilustrativo e faz refletir e pensar nos desdobramentos das “concessões” e “outorgas”, ou, claramente dizendo, da privatização e criação do mercado de água no Brasil. Sim, isto mesmo, mercado de água (PL 495/2017). A primeira medida é tratar a água como recurso e não como bem comum. As palavras tem poder, dado que difundem ideias e manipulam ideologicamente os indivíduos. Recursos são comercializáveis, entram no mercado como valores de troca. Mercantiliza-se, assim, a água, o “recurso hídrico”, algo taxativamente legitimado pela própria Lei Nacional nº 9.433/1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, transformando a água em valor econômico, como posto no Art. 1º, inciso II: “a água é recurso natural limitado, dotado de valor econômico” e também tornando-a comercializável, uma mercadoria como outra qualquer, ao “reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor” (Lei nº 9.433/1997, Art. 19º, inciso I).
No documentário de Pronzato, os povos nativos/originais, chamados por nossa cultura ocidental de indígenas, maioria da população boliviana, têm um sábio princípio. Um dos seus entrevistados diz que conforme a cultura nativa, “a água é um presente generoso da Pachamama (mãe terra) e que a água é de todos e ao mesmo tempo de ninguém, e, portanto, ninguém, muito menos uma transnacional, pode se apropriar da água” (Bolívia, la guerra del agua. PRONZATO, 2020). O impacto da privatização na Bolívia, além dos setores econômicos, se deu de modo arrasador sobre os pobres, pessoas que não têm água. Nas palavras de um dos entrevistados:
A privatização da água significou elevação das tarifas aos que estavam conectados à rede central de até 300%, uma expropriação dos sistemas de água autônomos, construídos com o esforço das pessoas nas zonas urbanas e no campo, mas antes de mais nada significa a criação de um mercado de água onde as fontes de água, como: rios, lagos, lagoas e poços, eram utilizados pelas comunidades camponesas durante séculos de maneira absolutamente autônoma, segundo suas próprias leis dentro das perspectivas da comunidade. Com a lei das águas isso desaparece e qualquer investidor estrangeiro poderia se apropriar dessas fontes de água deixando em absoluta insegurança as comunidades camponesas (Documentário: Bolívia, la guerra del agua. Pronzato, 2020).
Nos fragmentos mostrados no documentário de Jennifer Abbott e Mark Achbar (The Corporation, 2003), há uma cena onde se denuncia que a população boliviana foi proibida de coletar a própria água da chuva, entendido como um absurdo, gerando ainda maior revolta e indignação das pessoas, fortalecendo-as ainda mais para continuar lutando até vencer a guerra. Isso nos lembra o caso da Índia, de Gandhi, e a tentativa da colonizadora Inglaterra de impedir que os indianos extraíssem o sal do mar, prática geracional comum. Ou então, como demonstra o mesmo documentário, a tentativa das grandes corporações do agronegócio, como a Cargil e Monsanto, de criar sementes geneticamente modificadas (suicidas) para serem usadas somente uma vez, aumentando a dependência dos agricultores dessas grandes companhias, que teriam o monopólio sobre as sementes. A militante indiana Shiwa, articulada com outros movimentos e instituições, mobilizam e organizam os camponeses e povos tradicionais para proteger e garantir a continuidade do cultivo das sementes e a transmissão do conhecimento para as demais gerações, assegurando a própria reprodução da vida desses povos e sua autodeterminação.
Interessante notar que a sentença de Marx transcrita inicialmente é mais atual do que nunca: o valor de uso se transforma em suporte material para a realização do valor de troca, e é o valor de troca que se torna hegemônico e passa a ser o momento predominante das relações sociais e de produção estabelecidas entre os indivíduos. Há até a possibilidade de se vincular o preço da água ao preço da energia, de modo que “ao bebermos água, pagaremos como se estivéssemos bebendo eletricidade” (“O avanço estratégico de privatização...”. Brasil de Fato, 2020).
Àqueles que tecem a crítica e fazem a resistência a esse processo depredatório, expropriador e opressivo da privatização da água utilizam a ideia de que a água é um direito de todos, por isso não pode ser concessionada (privatizada), afinal, quando algo é entendido como direito geralmente se subentende que é universal e deve ser universalizado igualmente para todos. Na contramão, temos convicção que a água (assim como outros bens/meios naturais) não é um direito, mas uma condição vital para todas as formas de vida do/no planeta, inclusive a que nos diz respeito mais diretamente: a humana.
Justamente por ser uma condição de vida tem por pressuposto ser pública e assim ser resguardada e reproduzida como bem público, bem comum. Além do mais, os direitos, hoje, deixaram de ser universais e se tornaram focais, assim como as próprias políticas públicas, dado que se trata de mitigar e aliviar o sofrimento dos mais miseráveis e pobres-carentes, fazendo jus aos cortes estatais nos gastos públicos-sociais, fortalecendo o Estado do Capital e dos Capitalistas[4] para que este subsidie as atividades e negócios de suas personas e da acumulação e expansão do capital. O que o Estado faz, atualmente, é privatizar as políticas públicas através das Parcerias Público-Privadas (PPPs), onde os maiores beneficiários são os capitais privados, responsáveis por administrar o gerenciamento da oferta, tendo como garantia o lucro, enquanto o Estado fica encarregado pelos investimentos de longo prazo de capital fixo, ou seja, pela manutenção e ampliação de infraestrutura. É assim que os governos promovem a privatização da água como política pública.
O lobby empresarial no Congresso é tremendo para a privatização da água e conta com a colaboração dos congressistas. Um deles, o senador Tasso Jereissati, é um dos grandes interessados particulares, dado que dentre seus vários negócios está a franquia da Coca-Cola em território nacional. Não é por outra razão que foi ele quem apresentou o primeiro Projeto de Lei da privatização e do Mercado de Água, sendo o relator do PL 4.162/2019 do saneamento básico do governo Bolsonaro. Junto com ele, na frente de pressão, estão: Ambev, Vale, Suez, BTG, Pactual, Itaú, AEGEA, BRK Ambiental (irônico o ambiental no nome), Nestlé, dentre outras. Trata-se, na verdade, do neocolonialismo e imperialismo do capital internacional através de sua entrada maciça no “mercado da água” brasileiro. Como diz a Tribo de Jah, em sua canção: Globalização, o Delírio do Dragão, é “o império do capital em ação, fazendo sua rotineira ronda. (...) Não vêem seres humanos e os seus valores, só milhões e milhões de consumidores (...). A água pode virar ouro”.
A Tribo de Jah está correta, a mercantilização da água, sua transformação em valor econômico, de troca, em recurso comercializável para o agronegócio, setor elétrico, mineração, saneamento e toda a cadeia produtiva, concentrando, ainda mais, nas mãos de grandes grupos econômicos o poder político-econômico e sobre os povos, fez com que seja conhecida como “ouro branco”. “Quem controla a água domina e manipula os povos” (“Privatização da água:...”. Brasil de Fato, 2017). Vem à mente o filme WaterWorld – O Segredo das Águas, de 1995. Nesse mundo, a água doce quase desapareceu, os indivíduos padecem por sua falta, mas há um seleto grupo que detêm o monopólio de água doce e uma guerra é estabelecida para que todos os demais reassumam o controle social sobre a água.
Costumo repetir que os filmes de ficção não são ficcionais tanto quanto imaginamos. Na verdade, são tendências da realidade, virtualidades latentes que ainda não se generalizaram, mas que não tardam a se concretizar e universalizar. A escassez da água doce, devido à produção destrutiva do sistema capital e às contaminações, principalmente pela agropecuária e pelo agronegócio, responsáveis por 70% da deterioração e degradação do ecossistema, biomassa e habitats naturais de espécies animais e vegetais, das florestas[5] (grandes contribuidoras para a formação dos “rios voadores”[6]), enfim, da Natureza, ameaça exterminar essa riqueza natural vital para a manutenção de todas as formas de vida do planeta Terra.
Todos nós, através de nossa omissão, que é uma forma de posicionamento, estamos colaborando diretamente para o genocídio de todos os seres vivos, de todas as espécies, inclusive a humana. O problema é que como essa morte é gradual, lenta, continua-se a viver a vida como se nada estivesse acontecendo, apesar dos furacões, das chuvas, das secas, dos terremotos, do aumento da temperatura, das desertificações, das pragas, dos novos vírus e bactérias e todas as demais tragédias naturais causadas pela ação sócio-produtiva nefasta do modo de produção capitalista. Estamos nos matando! O pior é que a alienação e estágio atual de manipulação e controle das nossas consciências nos desvia e desfoca do que é essencial: precisamos retomar o controle social sobre nossas vidas! Sob a sua forma de produção/reprodução.
Voltando ao caso da Guerra da Água na Bolívia, no momento de maior radicalização da luta assistiu-se a reabsorção/reassunção do poder político pela população, de modo que o poder político se transformou, de fato, naquilo que ele verdadeira e essencialmente é: poder social (pena que, na sequência, com a vitória, é transferido/alienado novamente para as instituições e órgãos do aparelho de Estado). Como conta outro dos entrevistados de Pronzato:
Durante os últimos 8 dias, na denominada “batalha final pela água e pela vida”, em abril do ano 2000, é que se estabelece, durante 8 dias, uma espécie de auto-governo, onde a única instância que governa essa região de mais de 2 milhões de habitantes eram as assembleias populares, onde haviam mais de 100 mil pessoas na praça principal sendo a única autoridade. Havia desaparecido toda aquela autoridade legalmente estabelecida, como o governo, a prefeitura e os partidos políticos. Não havia nenhum tipo de organização partidária institucional, ou civil tradicional, mas era o povo organizado em torno à Coordenadoria da Água que tomava as decisões e indicava o rumo do conflito. Isso assustou muito o governo que não teve outra alternativa que romper o contrato com a empresa norte-americana Bechtel (renomeada de Águas del Tunari, na Bolívia) que havia conseguido uma concessão para a administração da empresa de água durante 40 anos, mas não durou meio ano essa concessão[7] e, além disso, o congresso Nacional, em 24h, aprovou uma nova lei proposta pela base, pelas comunidades camponesas e as regiões populares, que minimamente garantia a água como um bem comum, como um direito (condição) coletivo e que não podia ser privatizada (Documentário: Bolívia, la guerra del agua. Pronzato, 2020. Os parênteses são nossos).
Um outro entrevistado de Pronzato diz que
a Guerra da Água obriga um governo a desfazer um contrato, a modificar uma lei. Na Guerra da Água não se suspendia a mobilização, embora a empresa Águas del Tunari (Bechtel) já havia ido embora, porque não se aprovava a modificação da lei no Parlamento. Se obrigou que durante esses dias de abril se reunissem as Câmaras de deputados e senadores para a aprovação. E até que não tivesse sido aprovada, a mobilização em Cochabamba não se suspendia. Então foi um fato contundente: o poder legislativo e o executivo sob a pressão dos movimentos sociais até que isso seja cumprido totalmente (Documentário: Bolívia, la guerra del agua. Pronzato, 2020. Os parênteses são meus).
Está mais do que comprovado o que nos aguarda se não pressionarmos para a revogação dessa lei, já aprovada. O fato de o Estado não investir, há décadas (pra não dizer séculos) na infraestrutura do saneamento básico (água e esgotamento), contribui para tornar o quadro já deplorável em calamitoso com a crise sanitária que estamos vivendo, servindo para amplificar, como uma lupa, os graves e profundos problemas e desigualdades sociais no acesso e distribuição de água potável de qualidade e esgotamento. Segundo dados da Unicef, “duas em cada 5 pessoas em todo o mundo não têm instalações básicas com água e sabão para lavar as mãos. O número equivale acerca de 3 bilhões de pessoas, concentradas principalmente em países menos desenvolvidos”. Também deve ser considerado que, segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), “na média brasileira, 83,5% da população é servida por rede de água e apenas 52,4% tem o esgoto coletado, do qual somente 46% é tratado, conforme dados mais recentes divulgados em fevereiro” (“Coronavírus: 40% da população mundial...”. IHU, 2020).
Para destruir de forma fulminante as justificativas falaciosas do governo, da mídia e do setor privado, desmascarando-os, bastaria dar o exemplo do que está acontecendo em Manaus. Depois de 20 anos de privatização dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário, os segmentos mais pobres continuam sem acesso ou foram expropriados por não poderem pagar pelo cada vez mais alto custo dos serviços; os investimentos prometidos não foram – nem serão – realizados; a universalização dos serviços não ocorreu; a corrupção[8] se alastrou; as tarifas aumentaram; os mananciais e fontes foram privatizados expropriando as pessoas de seu uso coletivo, principalmente nas áreas florestais, ribeirinhas. É suficiente para evidenciar que os empreendimentos privados, as grandes corporações transnacionais não se interessam, nem priorizam, a saúde coletiva, os interesses coletivos, mas sim os lucros dos acionistas.
Geralmente, ocorre exatamente o contrário do que é dito para convencer as pessoas de que privatizar é a melhor solução. Os capitais privados não fazem investimentos para melhorar e ampliar a infraestrutura, muito menos se importam com a manutenção e qualidade dos serviços que, infelizmente, pioram. Também não garantem os serviços para àqueles que não podem pagar por eles, de modo que as regiões, bairros, municípios mais pobres e necessitados ficam desassistidos e, na grande maioria das vezes, o Estado é que precisa socorrê-los, criando uma empresa estatal para garantir o abastecimento, o que não cobre o tratamento adequado da água e o esgotamento[9]. As empresas privadas de saneamento priorizam as cidades maiores e mais ricas. Aí as tarifas atingem valores abusivos, exorbitantes e todo o lucro obtido é aplicado nas bolsas de valores, contribuindo para a financeirização do setor hídrico.
Sabotagens são feitas pelos homens de negócio do capital, pelos grandes capitalistas, contando com seus representantes no Congresso Nacional e na mass media, para sucatear e deslegitimar os serviços públicos mantidos pelo Estado a fim de aplicar-lhe a pecha de ineficiente, ineficaz, incapaz, improdutivo e todos os adjetivos desqualificadores possíveis e inimagináveis. É o que acontece no Rio de Janeiro com a Companhia Estadual de Águas e Esgoto (CEDAE). Não se trata de “teoria da conspiração”, como gostam de acusar os detratores, mas sim de interesses de poderosos capitalistas ávidos em expandir seus domínios e seus capitais, dispostos a tudo, a utilizar quaisquer meios, mesmo sabendo que isso afetará a vida e saúde das pessoas[10].
As cidades crescem com o passar dos anos. Aumenta o número de habitantes, de imóveis, de veículos, mas as ruas, avenidas, vias de acesso aos locais de trabalho, estudo, lazer, moradia, compras continuam os mesmos. Planejamento com investimentos inexiste.
Não se investe na manutenção e conservação das adutoras e encanações que integram a rede de abastecimento, não se amplia as instalações de tratamento de água e esgoto. No Rio de Janeiro, por exemplo, o sistema de tratamento faliu porque não têm investimento contínuo e na proporção adequada desde 1951, ano em que o sistema foi implantado. Um dado interessante é que no Brasil, apenas 37% do esgoto domiciliar é tratado. Os mananciais do Rio de Janeiro recebem 22 piscinas olímpicas de esgoto não tratado por dia.
Aproveitando a crise sanitária que entreabre a possibilidade de menor visibilidade às ações dos congressistas, voltados aos seus interesses particulares e dos seus patrocinadores (os grandes empresários, os homens de negócio, as corporações transnacionais), dizendo estar preocupados com a população mais pobre e carente (periferias rurais e urbanas), aprovam a privatização do saneamento básico. Vale lembrar que o presidente Bolsonaro já havia desferido há um tempo outro golpe, reduzindo em 21% o orçamento para o saneamento básico do Brasil em 2020.
Voltemos à Guerra da Água na Bolívia. Em visita ao Brasil no ano de 2017 à convite do vereador Renato Cinco (PSOL), o sindicalista boliviano Oscar Oliveira, participante ativo de todo o processo, veio compartilhar da experiência boliviana, da luta e da organização popular através da criação da Coordenação de Defesa da Água e da Vida. Em entrevista cedida ao Jornal Brasil de Fato, diz:
A privatização da perspectiva dos que sofrem com ela, significa expropriação. Não somente das riquezas naturais, mas do patrimônio coletivo, que são as empresas públicas, construídas com esforço de gerações e gerações. Toda privatização significa expropriação de algo que tem a ver com a construção coletiva. (...) A privatização significa corrupção, um desconhecimento do que estão negociando. (...) Uma das coisas mais importantes que os brasileiros podem fazer é difundir informação. Um povo desinformado é um povo derrotado. (...) Informação é uma arma importante na organização das pessoas. (...) A organização e mobilização das pessoas é importante para que os poderosos vejam que existimos, porque senão nos tratam como invisíveis e, assim, podem dar prosseguimento a suas políticas de expropriação e de crime (“Privatização da água:...”. Brasil de Fato, 2017).
Não há dúvida de que a privatização conduz à escassez social, o que significa que há água disponível mas encontra-se inacessível, uma vez que seu manancial foi privatizado. Privatização não é sinônimo de eficiência, mas sim de saque e roubo de bens coletivos, concentrados e centralizados em mãos de uma minoria levando a maioria ao desespero.
Em artigo publicado no Instituto Humanitas Unisinos no dia 21 de janeiro de 2020, em suas linhas finais, a autora diz que está posta a “Revolta da Água” e que se deve acumular forças para que se insurja a “Revolta das Cidades”. Acredito que resistir é preciso, urgente e essencial, a questão é: como. Revolta é pouco, é atuação moderada. É mais do que premente radicalizar a forma de luta, assim como fizeram nossos vizinhos latino-americanos. É necessário declarar “a” e entrar “numa” Guerra da Água (“A arma da crítica não pode (...) substituir a crítica da arma (...) a teoria também se torna força material quando se apodera das massas” – MARX, 2013, p. 157), senão não haverá êxito em impor limites ao ímpeto de acumulação exponencial do capital e de suas personas, os capitalistas nacionais e transnacionais e suas corporações/empresas privadas. Temos que (re)aprender a nos organizar coletiva e popularmente, sem intermediários e representantes, assim como fizeram na Bolívia. Lá tratou-se de uma auto-organização, auto-convocação, organizada da
maneira como a água nos ensina: uma maneira organizativa transparente, horizontal e em movimento. Essa coalização composta por crianças, jovens, mulheres e idosos do campo e da cidade, é a que se mobiliza durante cinco meses e consegue executar medidas de mobilização, mas também de proposição, porque a privatização da água significou elevação das tarifas. (...) essa luta foi como uma inspiração para mostrar a todos os povos empobrecidos, pequenos mas muito dignos, como o nosso, que não há invencíveis. Esses poderes transnacionais, esses governos de direita, esses órgãos financeiros internacionais que são os operadores deste modelo, que esse exército e essa polícia repressora defensora do grande capital e dos governos, podem ser vencidos com a força e a dignidade (organização) das pessoas. Os povos entenderam que a única forma de enfrentar o capital transnacional, a única forma de derrotar as políticas imperialistas e a única forma de transformar as condições de vida e o mundo é na realidade desenvolvendo novas formas organizativas: horizontais, transparentes, participativas (em movimento) (Documentário: Bolívia, la guerra del agua. Pronzato, 2020. Os parênteses são nossos).
Outras formas de Organizações Mediativas de luta precisam ser construídas pelos próprios trabalhadores do campo e da cidade em aliança, articulados. Devem lutar conjuntamente para transitar e construir um outro modo de vida, uma nova forma histórica-social que supere o capital e o capitalismo. Precisamos nos libertar das formas de manipulação e alienação das nossas consciências e através da luta social, de classes, retomar, reassumir, reaver o poder que nos foi legalmente tirado porque dele nos alienamos/alienaram e transferimos para indivíduos que jamais poderão atender aos verdadeiros interesses e necessidades humanos, já que estão absortos em atender aos seus próprios interesses particulares e aos interesses do capital e dos capitalistas.
Por fim, acima de tudo, precisamos aprender com o passado e aperfeiçoar os ensaios e tentativas do presente. O povo necessita organizar-se como um poder paralelo permanente, e não apenas em momentos críticos e de crise, como em Roma, quando da constituição dos Tribunos da Plebe, inicialmente 2 até chegar ao número de 46. Porém, com um cuidado especial em relação à forma de organização, garantindo que não haja hierarquias e nem burocracia, de modo horizontal, por democracia direta, tendo nas assembleias populares sua instância suprema de decisão, assim como os conselhos populares surgidos ao longo da história da luta de classes. Organização paralela e permanente, independente e autônoma de todos os modos de organização tradicional, como partidos, sindicatos, igreja e demais instituições sociais formalizadas, institucionalizadas e burocratizadas.
[1] Veio a lume por força da Medida Provisória nº 155, de 15 de março de 1990. Esta MP foi convertida na Lei nº 8.031/90 que vigorou até o ano de 1997, quando foi revogada pela Lei 9.491/97 que passou a ocupar o posto de diploma regulador do PND.
[2] Ver SOUZA, Iael de. A Pedagogia Gerencialista do Capital: neoliberalismo, empresariamento e mercantilização da educação “pública”-estatal (Fundação Lemann, Instituto Unibanco e Estado do Piauí – 2003/2017). Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. Pós-Graduação em Educação. Campinas/SP: [s.n.], 2020, p. 265 a 284.
[3] Ver SOUZA, Iael de. A Pedagogia Gerencialista do Capital: neoliberalismo, empresariamento e mercantilização da educação “pública”-estatal (Fundação Lemann, Instituto Unibanco e Estado do Piauí – 2003/2017). Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. Pós-Graduação em Educação. Campinas/SP: [s.n.], 2020, p. 367 a 370.
[4] “(O Estado capitalista) vale-se de vários fatores ideológicos e políticos, como, por exemplo, as pressões que as classes economicamente dominantes podem exercer sobre Estado e sociedade e a congruência ideológica entre essas classes e aqueles que dispõem de poder no Estado. (Já o Estado do capital) ressalta as ‘coerções estruturais’ a que o Estado está sujeito numa sociedade capitalista e o fato de que, a despeito das disposições ideológicas e políticas daqueles que dirigem o Estado, suas políticas devem forçosamente assegurar a acumulação e a reprodução do capital” (BOTTOMORE, 1997, p. 134).
[5] Ver o Documentário: COWSPIRACY – The Sustainability Secret.
[6] “É assim que são popularmente conhecidos os fluxos aéreos maciços de água sob a forma de vapor que vêm de áreas tropicais do Oceano Atlântico e são alimentados pela umidade que se evapora da Amazônia. (...) Esses rios de umidade, que atravessam a atmosfera rapidamente sobre a Amazônia até encontrar com os Andes, causam chuvas a mais de 3 mil km de distância, no sul do Brasil, no Uruguai, no Paraguai e no norte da Argentina e são vitais para a produção agrícola e a vida de milhões de pessoas na América Latina. (...) Outro componente essencial dos rios voadores é a umidade produzida pelas árvores da floresta amazônica. (...) Uma árvore frondosa, com uma copa de 20 metros de diâmetro, transpira mais de 1.000 litros em um único dia. (Estudioso diz que) “na Amazônia, temos 5,5 milhões de quilômetros quadrados ocupados por florestas nativas, com aproximadamente 400 bilhões de árvores dos mais variados tamanhos. Nós fizemos a conta, que também foi verificada de forma independente, e surgiu o incrível número de 20 bilhões de toneladas (ou 20 bilhões de litros) de água que são produzidos todos os dias pelas árvores da Bacia Amazônica” (“O que são os ‘rios voadores’...”. IHU – Instituto Humanistas Unisinos, 2017).
[7] Assim como ocorre em outros países que estão reestatizando/remunicipalizando os serviços públicos, as corporações e empresas privadas que têm seus contratos rompidos cobram o prejuízo do Estado, ou seja, dos contribuintes, portanto, dos trabalhadores(as), que terão que arcar com os prejuízos. Porém, na Bolívia, o povo boliviano se recusou a pagar os 50 milhões de dólares cobrados pela Brechtel. A luta judicial se arrastou de 2000 a 2006. Após a pressão exercida por uma campanha mundial, a Brechtel abandonou o julgamento. No entanto, outros países não têm essa saída, que depende de muita luta, organização e capacidade de fazer denúncia e exercer pressão, como é o caso da cidade de Berlim, cujos serviços de saneamento básico foram privatizados em 1999 e reestatizados em 2013, após referendo em 2011. A indenização que o Estado está obrigado judicialmente a pagar está calculada em 1,3 bilhão de euros, a ser quitada no espaço de 30 anos. O que é uma tremenda insanidade.
[8] Como enfatiza Lênin (1978, p. 17 e 18), pautado em Engels: “fazer política, na República democrática, é utilizar como princípio a corrupção e a cooptação. Diz Engels: na República democrática a riqueza utiliza-se do seu poder indiretamente, mas com maior segurança, primeiro pela corrupção pura e simples dos funcionários, depois pela aliança entre o Governo e a Bolsa. (...) A onipotência da riqueza, tanto melhor assegurada numa república democrática, (...) firmou o seu poder de maneira tão sólida, tão segura que nenhuma mudança de pessoas, instituições ou partidos, na república democrática burguesa, é suscetível de abalar esse poder”.
[9] Ao viajar para os interiores do Brasil, para aquelas cidades que poucos conhecem o nome e a existência, alguém já viu outro posto senão o BR? Somente os empreendimentos estatais atendem essas populações, pois Shell, Ipiranga, Texaco não têm nenhum interesse de se instalar nessas áreas. Para que, para ter “prejuízo”? O Estado que se encarregue.
[10] Ver o Documentário: Zeitgeist – O filme e as revelações do caso do 11 de setembro de 2001.
“O avanço da estratégia de privatização da água no Brasil”. Danila Calisto; José Josivaldo Alves. Brasil de Fato, 27 de junho de 2020. Disponível aqui.
“O que são os ‘rios voadores’ que distribuem a água da Amazônia”. IHU – Instituto Humanistas Unisinos, 06 de setembro de 2017. Disponível aqui.
“Privatização da água: ‘O que aconteceu na Bolívia, ocorre aqui com maior dureza’”. Mariana Pitasse. Brasil de Fato, 24 de março de 2017. Disponível aqui.
Bolívia, la Guerra del Água. Gênero: Documentário. Direção: Carlos Pronzato. Duração: 40 min. Ano de produção: 2020.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
COWSPIRACY – The Sustainability Secret. Gênero: Documentário. Direção: Kip Andersen, Keegan Kuhn. AUM Films. First Spark Media. Duração: 91 min. Ano de produção: 2014.
LÊNIN, Vladimir I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1978.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus; [supervisão e notas Marcelo Backes]; [prefácio à terceira edição Alysson Leandro Mascaro]. 3 ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro 1: O processo de produção do capital. 8ª ed. vol. 1. Trad. de Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Difel Difusão Editorial S/A, 1982.
The Corporation. Gênero: Documentário; História. Direção: Jennifer Abbott; Mark Achbar. Duração: 145 min. Ano de produção: 2003.
Waterworld – O Segredo das Águas. Gênero: Ação, Aventura, Ficção Científica. Direção: Kevin Reynolds. Duração: 135 min. Ano de produção: 1995.
Zeitgeist – O filme. Gênero: Documentário/Cinema Militante. Direção: Peter Joseph. Duração: 123 min. Ano de produção: 2007.