11 Julho 2020
“A presença de Deus no amor pelo próprio filho se manifesta quando os pais se esforçam ao máximo para usar o nome e os pronomes que honram a verdade da identidade de gênero do filho. Os pais demonstram amor quando exigem que os outros tratem seus filhos com respeito.”
O artigo abaixo foi escrito conjuntamente pelo Dr. Colt St. Amand, homem transgênero, psicólogo e médico da família residente na Mayo Clinic, e cofundador da organização Gender Infinity, e pela Ir. Luisa Derouen, membro das Irmãs Dominicanas da Paz, que começou seu ministério na comunidade transgênero em 1999. Tem mestrado em Teologia Litúrgica e é diretora espiritual, particularmente de pessoas trans.
O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 07-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Quando eu estava pensando em sair do armário como transexual aos meus pais católicos, eu fiquei paralisado de medo. Minha mãe, médica e católica de criação, afirmou que, embora não entendesse, sabia que eu era uma boa pessoa e que Deus me conhecia e me amava mais do que ninguém. Meu pai, psicólogo e católico convertido, demorou mais tempo, mas me garantiu que, independentemente de qualquer coisa, superaríamos isso juntos” (Dr. Colt St. Amand)
“Em meu recente artigo publicado no Global Sisters Report, eu compartilhei a minha decepção com um documento de Dom Thomas Paprocki que pretendia guiar os católicos em sua Diocese de Springfield, Illinois, na sua compreensão e interações com as pessoas trans. Eu tentei explicar a jornada de autoaceitação percorrida pelas pessoas trans para viverem uma vida mais autêntica. Mas, além da autoaceitação, também é crucial que as pessoas trans encontrem a aceitação dos seus pais, e para muitos isso é muito difícil” (Ir. Luisa Derouen)
Ninguém é poupado da experiência humana de navegar por desafios inesperados. Independentemente das circunstâncias, o processo de responder com responsabilidade envolverá três movimentos dinâmicos: estar presente à realidade (reunir), escutar com abertura e depois responder com amor. Esses movimentos tecem-se através de todos os nossos relacionamentos.
Na liturgia católica, a dinâmica de reunir, escutar e responder é a ação fundamental pela qual nos entregamos para nos tornarmos o corpo de Cristo no nosso mundo. Como os ritos da liturgia têm o objetivo de ajudar a moldar as nossas disposições de vida, eles podem ser instrutivos para refletir sobre a relação entre pais e filhos trans. Quando confrontados com um filho ou filha que “sai do armário” como transgênero, o processo dos pais de responder com responsabilidade envolverá estar presente à realidade, escutar com abertura e respeito, e então responder com amor.
Na liturgia e na vida, devemos estar prontos para receber a verdade, gostemos dela ou não, entendamo-la ou não. A verdade sempre nos leva a Deus e levará os pais e seus filhos a se aproximarem de Deus, se puderem permanecer presentes à possibilidade de que, sim, seus próprios filhos podem ser transgêneros.
Ficar sabendo que o próprio filho é transgênero pode ser avassalador para os pais. A tentação de negar e desacreditar essa notícia pode ser forte. Os pais podem temer que a Igreja e Deus sejam contra seus filhos. Alguns temem que seu filho seja alvo de violência ou tente acabar com a própria vida. Alguns temem que não terão energia emocional e força espiritual suficientes para acompanhar o filho. É importante que os pais nomeiem e processem esses medos.
Os pais precisam acreditar na sacralidade inerente de seus filhos e confiar no amor de Deus e no seu amor por eles para sustentá-los na jornada, aonde quer que ela leve. Isso os ajuda a caminhar com o filho e a se manterem centrados em sua fé. É essencial para a busca da verdade a virtude da humildade, pela qual os pais podem reconhecer que não entendem o que significa ser transgênero, mas querem aprender.
Na liturgia e na vida, ouvimos a Palavra de Deus, do modo como ela é contada pelas Escrituras, por outras pessoas e pelas experiências da vida. Escutar bem é nos permitirmos ser mudados por aquilo que ouvimos e experimentamos, e isso requer coragem e compaixão.
Tragicamente, a religião pode desafiar a capacidade dos pais de alimentar seus filhos transgêneros. Embora existam líderes religiosos que oferecem apoio, muitos sabem muito pouco sobre as pessoas trans. Pior do que a ignorância, porém, são os clérigos ansiosos por oferecer orientação baseada em informações terrivelmente desatualizadas e prejudiciais. A incapacidade dos pais de apoiar e de aceitar o próprio filho trans é muitas vezes reforçada por respostas imprecisas e prejudiciais dos lideranças religiosas.
Rejeitar o próprio filho por causa de crenças religiosas traumatiza e empurra o filho para a autoagressão ou até para o suicídio. Os jovens transgênero que são altamente rejeitados por seus pais têm maior probabilidade de tentar o suicídio e relatam altos níveis de depressão.
Escutar é uma habilidade e uma graça. É importante que os pais escutem e façam perguntas a fim de entender, não para corrigir ou julgar. Escutar a dor, os medos, as esperanças e os sonhos de seu filho trans. Os pais podem escutar com respeito, mesmo quando acreditam que ser transgênero é errado.
Os pais precisam que o seu confidente de confiança se apoie neles e processe o luto que acompanha a mudança de expectativas, esperanças e sonhos para o filho. Isso faz parte do processo de permitir que o filho viva gradualmente como a pessoa que eles mesmos sabem que ele é.
Recorrer a outros pais de filhos transgênero e obter informações precisas e profissionais são sinais de um esforço sincero para entender o próprio filho. Recursos úteis são o Family Acceptance Project, a World Professional Association for Transgender Health e a American Psychological Association.
Na liturgia e na vida, uma vida mais profunda só vem por meio de uma rendição ao amor. Ser o corpo de Cristo no nosso mundo é permitir que Deus ame por meio da nossa presença.
O contexto cultural e religioso no nosso país é muitas vezes divisivo e complexo. Isso torna tentador buscar certezas absolutas que enfraquecem o nosso compromisso de incluir a todos, especialmente as pessoas trans.
Quando os pais discordam sobre como responder ao próprio filho, este geralmente é pego no meio de uma tentativa de permanecer conectado com os pais e também de dar sentido às reações conflitantes.
Quando os pais sucumbem à pressão dos outros para afastar o próprio filho, a menos que este entre em conformidade com as expectativas de gênero, o risco de suicídio, depressão e outros graves riscos à saúde aumentam significativamente. A pesquisa do Family Acceptance Project mostra como os comportamentos de rejeição dos pais contribuem para sérios riscos à saúde em seus filhos, assim como em famílias racial e religiosamente diferentes.
A presença de Deus no amor pelo próprio filho se manifesta quando os pais se esforçam ao máximo para usar o nome e os pronomes que honram a verdade da identidade de gênero do filho. Os pais demonstram amor quando exigem que os outros tratem seus filhos com respeito.
O amor se manifesta quando eles falam aberta e orgulhosamente sobre seus filhos e os ajudam a encontrar mentores transgênero positivos.
A incapacidade ou a falta de vontade dos pais de aceitar seu filho transgênero tem profundas ramificações psicológicas e espirituais para o filho. Isso corrói a confiança do filho em seu próprio autoconhecimento interior. O filho acredita que Deus não o ama e não pode amá-lo. Desafiar e negar constantemente a sua realidade e a sua dignidade humanas é um abuso espiritual. Fere o seu senso de valor próprio, corrói o vínculo entre pais e filhos e aumenta os riscos de problemas de saúde.
A vida de cada um é um reflexo bonito, misterioso e complexo de Deus no nosso mundo. Os pais certamente não vão acertar o tempo todo. Ninguém acerta o tempo todo. Nossa palavra final de orientação é reconhecer os erros ao longo do caminho e pedir perdão. Longe de serem um sinal de fraqueza, pedir perdão e ter vontade de perdoar são uma expressão de amor muito poderosa.
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Como reagir a um filho transgênero: três movimentos dinâmicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU