25 Junho 2020
- Desde o primeiro ano do governo, em 2019, Jair Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, conduzem uma política de combate às normas habituais de proteção ambiental.
- No discurso e em ações já concretas, o governo promete não demarcar mais terras indígenas, flexibilizar o uso das unidades de conservação e excluir grupos da sociedade civil de conselhos e fundos ambientais.
- Ibama e ICMBio, principais órgãos federais de controle, foram entregues a policiais militares. A redução de cargos e de coordenações regionais fragiliza a fiscalização nas áreas protegidas.
- A maioria dos servidores relata que vigora a “lei da mordaça” desde que Ricardo Salles assumiu o ministério. Funcionários vivem em meio a um clima de perseguição e ameaças, veladas ou não.
- Durante a campanha eleitoral, em 2018, Jair Bolsonaro deixou claras suas intenções. O então candidato à presidência da República declarou que pretendia fundir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente e não demarcar mais nenhuma terra indígena. Também avisou que acabaria com a “indústria das multas ambientais” e combateria os “ecoxiitas”.
A reportagem é de Suzana Camargo, publicada por Mongabay, 23-06-2020.
Eleito, Bolsonaro não uniu os ministérios, mas escolheu para a pasta do Meio Ambiente um nome alinhado com sua aversão aos ecologistas e à conservação: o advogado Ricardo Salles, ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo, condenado pelo Ministério Público paulista por participar de uma alteração ilegal do zoneamento do plano de manejo de uma área de proteção para beneficiar empresas de mineração.
Salles demonstrou logo quais seriam seus objetivos. Anunciou que pretendia rever unidades de conservação e liberar ferrovias nessas áreas protegidas; suspendeu parcerias e convênios com organizações não-governamentais; afirmou que não trabalharia pela redução das emissões de carbono caso o Brasil não fosse pago por isso; e decidiu que o país não sediaria mais a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP 25), em Salvador.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro e Salles começaram a minar o trabalho dos órgãos de proteção ambiental do governo federal. Em março de 2019, foi proibida a comunicação direta entre a imprensa e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Qualquer solicitação de informação ou entrevista deveria ser direcionada ao Ministério do Meio Ambiente.
Um mês antes, em decreto no Diário Oficial da União, a presidência tinha reduzido a participação da sociedade civil no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), de 22 para 4 membros, e tirado completamente a sociedade civil do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA).
Houve ainda a extinção do comitê gestor do Fundo Amazônia, criado em 2008, que tinha seus recursos – provenientes em sua maioria dos governos da Alemanha e da Noruega – investidos em projetos de conservação e contra o desmatamento na região. Um dinheiro que vinha “de graça” para o Brasil.
Já em 2020, as últimas medidas foram a exoneração de dois chefes de fiscalização do Ibama, no Pará, responsáveis por operações contra garimpos ilegais em terras indígenas, e a reestruturação do ICMBio, com a nomeação de vários policiais militares para cargos de chefias – entre eles o próprio presidente da instituição, que já havia assumido em 2019.
Com mais uma “canetada”, foram extintos 42 cargos e as até então 11 coordenações regionais, que administravam as 334 unidades de conservação (UCs) do país, foram reduzidas para apenas cinco. Entre os servidores de carreira, o ICMBio passou a ser chamado de “I’PM’Bio”.
“Como é possível transformar coordenações regionais, que já eram estranguladas pela alta demanda de trabalho, sem ampliar equipe e ainda colocando pessoas que não necessariamente têm conhecimento técnico para fazer a gestão?”, questiona Angela Kuczach, diretora executiva da Rede Nacional Pró-UC.
Para Angela, não é factível, em um país de dimensão continental como o Brasil, colocar todas as Ucs federais, que representam quase 10% do território nacional, sob o comando de cinco gerências regionais, sem aumento de pessoal e de infraestrutura física.
“O que acontece é um sucateamento, de tal forma que se coloca em risco cada vez mais o nosso patrimônio natural”, denuncia.
A opinião de Angela é compartilhada por diversos servidores do Ibama, do ICMBio e do Serviço Florestal Brasileiro entrevistados para esta reportagem. Poucos concordaram em ter seus nomes citados. A maioria relata que vigora a “lei da mordaça” desde que Ricardo Salles assumiu o ministério. Funcionários vivem em meio a um clima de perseguição e ameaças, veladas ou não.
“O ataque agora é homem a homem. A intenção é que os servidores não trabalhem mesmo. O Salles veio para destruir por dentro a área ambiental”, afirma Beth Uema, secretária-executiva da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista de Meio Ambiente (Ascema). Ela tem quase 25 anos de trabalho no Ibama, nas áreas de coordenação e licenciamento ambiental.
Segundo Beth, o instituto sempre foi um órgão forte. Havia direito a críticas e ao debate, independentemente do governante no poder. Mas tudo mudou há 15 meses.
“Não há mais diálogo, a mordaça inviabiliza o fluxo de informações. Antes era possível argumentar, hoje não há mais possibilidade de consenso. O processo de decisão é de cima para baixo”, diz.
Atualmente, os funcionários dos órgãos de proteção ambiental no Brasil só ficam a par de mudanças e exonerações através de decretos publicados no Diário Oficial da União. Sem nenhuma conversa ou consulta prévia.
Outra servidora, que pede anonimato, complementa. “A fala de Salles na reunião ministerial é muito emblemática porque mostra para a sociedade, à luz do dia, aquilo que a gente já sabia internamente: o fim da regulamentação ambiental, a simplificação absurda de processos e a retirada de competência desses órgãos”, diz, em referência ao vídeo, do dia 22 de abril, em que o ministro escancara a intenção de se aproveitar do momento da pandemia, quando a imprensa está focada na morte de milhares de brasileiros, para passar por cima do Congresso Nacional e, “a canetadas”, deixar a “boiada passar”.
Por causa da pressão, o geógrafo Denis Rivas está afastado do trabalho. Analista do ICMBio e presidente da Ascema, ele trabalha no Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, e tem uma carreira de 15 anos no órgão governamental. Admite que os desafios sempre foram grandes no setor.
“A área ambiental no Brasil sempre teve importância minúscula, mas conseguíamos ter efeitos multiplicadores mesmo com poucos recursos. Os governos anteriores se colocavam como protetores dos recursos naturais. Nunca antes tivemos o Estado contra o nosso trabalho”, diz.
Para Rivas, o mais alarmante é o discurso que legitima crimes ambientais. Cita, por exemplo, a medida que proibiu equipes de fiscalização de queimar maquinário de grileiros e garimpeiros na Amazônia, que culminou na demissão de funcionários do Ibama.
“São perdas gigantescas que estamos enfrentando. Temos consciência de que o aumento do desmatamento é um retrocesso naquilo que estamos há anos buscando conservar”, conta. “O resultado é que os servidores estão adoecendo, alguns tentando resistir e denunciar. É triste.”
Fernando de Noronha é um exemplo claro. Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco, o arquipélago é protegido por duas unidades de conservação: o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha e a Área de Proteção Ambiental de Fernando de Noronha-Rocas-São Pedro e São Paulo.
Em 2019, depois da primeira visita do ministro do Meio Ambiente à ilha principal, que teve como prioridade uma reunião com empresários locais, um novo chefe do ICMBio local foi nomeado. Desde então, duas colaboradoras foram exoneradas, inclusive a chefe de fiscalização, e até hoje essas vagas não foram repostas.
Empresários interessados em ampliar seus negócios na ilha há tempos reclamavam das normas rígidas que dificultam seus planos de expansão – por exemplo, a construção de novas pousadas, com piscinas, em um lugar onde costuma ocorrer falta de água. Servidores do ICMBio também já tinham feito vários alertas sobre o aumento enorme e insustentável de visitantes, sem levar em consideração a estrutura de Fernando de Noronha.
Outra analista ambiental do ICMBio, que também pede para ter seu nome preservado, foi exonerada do cargo após descobrir que permissões tinham sido dadas sem o seu consentimento – depois disso, foi transferida para outro estado.
Ela relata que, quando foi criado, em 2007, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade começou a fazer um trabalho de gestão ambiental diferenciado daquele realizado pelo Ibama, mais focado na fiscalização. A prioridade era estreitar relações com as comunidades impactadas pela criação das Ucs para garantir que se tornassem aliadas da preservação e fossem beneficiadas, de alguma forma, através de práticas de manejo sustentável dessas áreas.
“Com o trabalho do ICMBio, houve um ganho enorme na gestão socioambiental, assim como no fortalecimento comunitário e na resolução de conflitos territoriais. Começamos a enxergar os crimes ambientais sob outra ótica. Há aqueles com grandes impactos, no caso de desmatamento e garimpo, mas existem outros menores, relacionados com problemas sociais”, explica.
“A gente levou muito tempo para construir essa relação de confiança com as comunidades. O trabalho para alcançar essas pessoas é difícil, principalmente em lugares como a Amazônia e em municípios distantes do interior. E esse esforço de desconstrução do governo está minando o que levou anos para ser conquistado”, lamenta.
De acordo com a analista, com mais de 10 anos de carreira, desde que Bolsonaro assumiu, os servidores públicos passaram a ser o grande problema da gestão ambiental no país e foram demonizados perante a sociedade. “Fomos rotulados de ‘ecoxiitas’ e viramos inimigos. A partir daí, teve início uma limpeza ideológica. Todas as pessoas em cargos de chefia, com posicionamento mais social, foram retiradas. Na maior parte das vezes, substituídas por policiais militares.”
Nunca antes houve a proibição de servidores falarem com a imprensa, diz a analista. Havia total autonomia de comunicação. Agora, nem mesmo as demandas por informações científicas – como pesquisas e dados de espécies – podem ser repassadas sem o aval da assessoria de comunicação do ministério do Meio Ambiente.
“A destruição do ICMBio ocorre da maneira mais perversa: acabando com a instituição por dentro”, desabafa.
Com o desmatamento avançando cada vez mais, para quem dedicou anos da vida a conter a destruição das florestas e da biodiversidade no Brasil, o cenário atual é muito triste.
“A gente pode tentar mensurar a destruição em milhões de quilômetros quadrados perdidos, mas esse é um dado muito frio. Uma floresta é um ambiente que demorou milhões de anos para ficar de pé e existir. De repente, vira terra arrasada, cinzas e pasto. Só quem esteve numa área desmatada e que tenha visto aquela floresta antes, em seu total esplendor, tem noção da tragédia real”, diz Denis Rivas.
Mas ele garante: a luta continua. “Os servidores sempre vão se colocar ao lado da sociedade na conservação do patrimônio ambiental enquanto houver um estado democrático de direito”, finaliza.
*A reportagem enviou e-mails no dia 2 de junho para as assessorias de imprensa do ICMBio, do Ibama e do ministério do Meio Ambiente pedindo uma posição dos órgãos sobre as várias denúncias feitas pelos servidores ouvidos, mas não houve retorno até o fechamento.
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As táticas do governo brasileiro para sucatear órgãos de proteção ambiental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU