19 Junho 2020
Quanto à esquerda um católico pode ir? Cinquenta anos após o desaparecimento da Slant, a revista dos anos 1960 que ultrajou muitos com a sua adesão ao catolicismo e ao marxismo, a questão não desapareceu.
A reportagem é de Madoc Cairns, publicada por The Tablet, 18-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Graham Greene lamentou uma vez o fato de o catolicismo britânico ter produzido excêntricos em vez de revolucionários. Durante os anos 1960, após o Concílio Vaticano II, um grupo de jovens católicos começou a provar que Greene estava errado.
Sua revista, Slant, lançada na primavera de 1964, atraiu críticas furiosas – e apoiadores apaixonados. Circulavam boatos de que os bispos estavam procurando uma forma de fechá-la. As manchetes da imprensa secular e religiosa deploravam a ascensão dos “marxistas católicos”. E então, 50 anos atrás, depois de 30 edições, tudo acabou.
Esse é um dos episódios mais curiosos da história recente da Igreja na Inglaterra e no País de Gales. Tudo começou com um padre e um pub. Ou – como eu percebi quando conversei com os colaboradores da Slant ainda vivos – vários pubs e uma enorme quantidade de bitter. O Pe. Laurence Bright – um frade dominicano alto e de fala mansa – havia começado a sua jornada espiritual como um agnóstico da extrema direita. Agora padre católico, o ex-físico nuclear passou por uma reviravolta semelhante nas suas crenças políticas. Ele estava firmemente à esquerda: um socialista, de um tom distintamente radical.
Em 1964, a esquerda estava em ascensão em instituições em todo o mundo: com o Vaticano II em andamento e a Igreja em fermentação, parecia a Bright que não havia razão para que o mesmo não pudesse ser verdade no catolicismo.
Em torno de Bright, em Cambridge, havia um grupo de jovens intelectuais católicos, parte de um círculo de estudantes universitários e graduados, que vinham de unidades comunitárias católicas irlandesas da classe operária de todo o Reino Unido. Um deles – Terry Eagleton, agora um teórico cultural internacionalmente renomado – fez uma pergunta a Bright. “Até que ponto”, perguntou Eagleton, um socialista, mas ainda não marxista, “um católico pode ir à esquerda?” Sorrindo, Bright respondeu: “Ah, o quanto você quiser”.
Essa era a teoria. Slant foi a prática.
Há uma longa história de católicos britânicos envolvidos com movimentos e ideias políticas de esquerda, do cardeal Manning a Chesterton e os distributistas. Bright e seus copensadores, no entanto, estavam criando algo completamente novo: uma combinação do espírito do Vaticano II e o movimento do marxismo humanista anti-stalinista conhecido como “Nova Esquerda”. A criatura quimérica resultante era irreverente, intelectualmente ambiciosa – e estava ansiosa para lutar.
O alvo número um era a teologia católica tradicional, que exigia uma reformulação total à luz do imperativo político do Evangelho à revolução socialista. Os conservadores teológicos eram escoriados por impedirem a mudança dentro da Igreja; os liberais (“fabianos escatológicos”) eram repreendidos por não irem longe o suficiente. À medida que a Slant ganhava impulso – acumulando grupos de leitura e simpósios – ela ficou famosa, ou notória, pelas críticas marxistas a tudo, da bênção à degeneração política dos Rolling Stones.
Os leitores das primeiras edições descobriram que algo dera muito errado com o cristianismo oficial. Assediados pelo “sobrenaturalismo”, obstaculizados pelo “dualismo”, os católicos abandonaram a diretiva de Cristo a transformar o mundo e se retiraram para uma espiritualidade individualizada e moralista. Mas o mundo agora estava renascendo, enquanto as classes operárias e os povos oprimidos do mundo estavam iniciando a luta pela libertação dos poderes e dos sistemas que os distorciam e os exploravam. E a Igreja poderia desempenhar um papel nessa transformação – se ela conseguisse se transformar. É aí que entra a Slant.
Os números de assinaturas da Slant atingiram o máximo de 2.000 em 1966, um ano depois de começar a ser produzida profissionalmente pela editora católica Sheed & Ward. Mas, apesar do pequeno tamanho do grupo principal – que nunca passou de uma dúzia –, a Slant era intelectualmente muito forte.
Outro padre dominicano, Herbert McCabe, um dos teólogos ingleses mais influentes do século XX, colaborava com a revista – e bebia algumas cervejas com o conselho editorial. McCabe e Denys Turner, hoje professor de Teologia em Princeton, assim como outros que fundaram a Slant, haviam participado das reuniões anuais do “Grupo de Dezembro” no centro de retiros e congressos dos dominicanos ingleses, a Spode House, em Staffordshire, desde o início dos anos 1960.
Outros ex-colaboradores da Slant passaram a ser editores, jornalistas, poetas ou acadêmicos. Quando eu falei com alguns, 50 anos depois do desaparecimento da publicação, nenhum deles se arrependeu do tempo e da energia que haviam investido nela.
É surpreendente que um periódico editado e distribuído principalmente por estudantes de graduação tenha conseguido continuar por seis anos. É espantoso que a publicação tenha mantido padrões intelectuais tão altos durante todo esse tempo. E a Slant – cujas cópias digitais são agora negociadas clandestinamente entre entusiastas nos “becos escuros” da internet – conseguia cobrir teologia, teoria literária, teoria política, reportagem, poesia e sátira, geralmente na mesma edição.
Títulos como “Sacerdócio e leninismo” – no qual um Eagleton jovem e efervescente postulava que os padres deveriam agir como uma vanguarda revolucionária – dão uma ideia do tom.
Mas grande parte da produção da Slant se concentrava em análises sérias das grandes questões – Deus, linguagem, sacramentos, comunidade, cultura –, que alguns de seus colaboradores continuaram explorando nas décadas seguintes à queda da Cortina de Ferro. Terry Eagleton, em particular, voltou-se às questões teológicas nas últimas décadas, escrevendo livros e dando palestras que Fergus Kerr OP, um colaborador que era um “amigo crítico” do grupo, descreve como o legado moderno da Slant.
Como bons marxistas – e como bons católicos – os slantitas tentavam desposar a teoria com a prática. A Slant inspirou cerca de duas dezenas de grupos de discussão. Seus membros davam palestras em todo o país. E uma publicação irmã irlandesa, Grille, foi criada. O grupo até tentou panfletar nas paróquias com interpretações radicais do Evangelho daquela semana. Em um certo momento, a Slant entrou em diálogo com o Partido Comunista.
Com a publicação de “Slant Manifesto: Catholics and the Left” [Manifesto Slant: os católicos e a esquerda], com artigo de Eagleton, Adrian Cunningham, Brian Wicker, Martin Redfern, Neil Middleton e Laurence Bright, em 1966 – logo seguidos por mais uma dezena de livros escritos por membros do grupo – a estrela de Slant estava ascendente. O manifesto foi publicado nos Estados Unidos e traduzido para o espanhol e o português, e os membros do grupo eram procurados como palestrantes e escritores em todo o mundo. Redfern, agora aposentado após mais de 30 anos como diretor administrativo da Sheed & Ward, me disse que, em um mundo anterior à teologia da libertação, a Slant parecia algo verdadeiramente novo.
À luz da ascensão da teologia da libertação os anos 1970 – um movimento que provocou o tipo de revolta revolucionária que a Slant promoveu zelosamente – Terry Eagleton acha evidente que “de certa forma a Slant apareceu com uma década de antecedência”. Cedo demais ou não, a revista teve um papel pequeno, mas significativo, na introdução dos católicos britânicos às teologias radicais que germinavam na América Latina. Ela foi, por exemplo, o primeiro ponto de contato do mundo de língua inglesa com Dom Hélder Câmara, o “Bispo Vermelho” de Recife no Brasil. A Slant publicou textos de Câmara, e seus apoiadores ajudaram a organizar a sua visita ao Reino Unido.
Para vários colaboradores, o envolvimento deles na Slant iniciou um compromisso que durou décadas com as causas latino-americanas. O falecido Leo Pyle, que foi professor de Biotecnologia na Universidade de Reading, chegou a trabalhar para o governo de Allende no Chile, algo que outro membro do grupo, o escritor Francis McDonagh, duvida que teria sido possível sem as credenciais de Pyle como “marxista católico”.
Mas a natureza do “marxismo católico” que caracterizou a Slant é – a se julgar pelos debates na revista – mais difícil de definir. O cristianismo era uma “profundeza” dentro do marxismo? Era uma “atitude”? Era mesmo necessário? O cristianismo precisava ser “desmistificado” ou renovado? O grupo não tinha medo de fazer essas perguntas, mas se esforçava para respondê-las. Além de um compromisso generalizado com o radicalismo teológico e político, a Slant não promovia uma ideologia, mas apresentava uma bricolagem de diferentes visões políticas e teológicas.
Herbert McCabe, um colaborador “semidesvinculado” da revista, não estava entusiasmado com as propostas ousadas de alguns membros de uma “teologia revolucionária”. McCabe preferia, como me disse McDonagh, “tirar a limpo o marxismo e o catolicismo”. Nas décadas após o fechamento da publicação, McCabe persistiu na sua convicção de que um compromisso político radical poderia – e, de fato, deveria – fluir a partir da ortodoxia teológica. Mas a sua visão trágica da natureza humana contrastava fortemente com o otimismo que caracterizava a Slant.
Para McCabe, que faleceu em 2001, o verdadeiro significado do cristianismo era: “Se você não amar, morrerá: e, se você amar, matarão você”. Mas, como Eagleton me disse, essa absolutamente não era uma concepção slantita. Eagleton acha que a visão mais sombria e irônica de McCabe sobre os limites da política é mais adequada aos tempos que estamos vivendo agora. E, do grupo da Slant, foi McCabe – e particularmente o seu ensaio de 1980 intitulado “A luta de classes e o amor cristão” – que teve mais influência nos esquerdistas católicos contemporâneos.
A maioria dos ex-colaboradores com quem eu falei concordou que a Slant era muito filha “do seu tempo”. Os slantitas se embebiam das esperanças de uma década em que se pensava, como lembra a poeta e tradutora Dinah Livingstone, que “paz e amor” poderiam superar qualquer obstáculo. Nos anos imediatamente seguintes ao Vaticano II, muitos sentiram que uma renovação radical do catolicismo era possível. E, no campo da política, era um momento em que a revolução parecia não apenas necessária, mas também plausível.
A Slant mal conseguiu sair da década de 1960. Ela fechou em janeiro de 1970, quando as grandes esperanças da década anterior estavam desaparecendo, dentro e fora da Igreja. Olhando para trás, a maioria dos que escreveram nela me disseram que era o momento certo para seguir em frente. O momento da Slant havia passado. Alguns dos editores queriam manter a publicação, mas foram prejudicados pela quantidade de dinheiro que ela estava custando à editora. Os membros do grupo estavam se afastando geograficamente. Mas – como lembra Redfern – eles também sentiam que não tinham muito mais a dizer.
Se o clima dos anos 1960 deu à Slant um tom milenarista, vale a pena lembrar como a Igreja era diferente na sua época. Redfern ressaltou que, para a maioria dos católicos agora, não é absurdo que um católico também seja socialista, mas, na Igreja pré-conciliar, as coisas eram muito diferentes. A eleição de João Paulo II, como pensa o acadêmico e escritor aposentado Bernard Sharratt, pode ter bloqueado os movimentos radicais dentro da Igreja, mas o catolicismo autoritário e pietista em que ele e os outros colaboradores da Slant cresceram nunca retornou. Os bispos estão muito mais confortáveis em condenar a guerra, a pobreza e o racismo do que antes, e, com a eleição do Papa Francisco, as várias formas da teologia da libertação são agora relativamente dominantes na Igreja.
A peculiar mistura entre marxismo e cristianismo promovida pela Slant também tem um certo prestígio entre um circuito mais jovem e baseado na internet de socialistas católicos. O livro de 2013 de Jay Corrin sobre a Slant reavivou o interesse por ela na academia. E, desde 2015, com o advento do desafortunado projeto “Tradinista!”, certas partes da Igreja foram novamente assombradas por visões de jovens bolcheviques de olhos vidrados empunhando “Das Kapital” em uma mão e o Evangelho na outra.
A ameaça foi considerada suficientemente séria para motivar um livro, inventivamente intitulado “Can a Catholic Be a Socialist? The Answer Is No – Here’s Why” [Pode um católico ser socialista? A resposta é não – eis o porquê]. E um grupo, o Instituto para o Socialismo Cristão, iniciou uma publicação, chamado Bias, um nome escolhido em homenagem explícita à Slant.
Até quanto à esquerda um católico pode ir? Cinquenta anos depois, essa pergunta ainda está em aberto.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Teologia revolucionária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU