09 Junho 2020
Richard R. Gaillardetz, um dos maiores eclesiologistas do mundo, analisa um relatório sem precedentes sobre a governança na Igreja.
Gaillardetz é professor da cátedra Joseph de Teologia Sistemática Católica e atual diretor do Departamento de Teologia do Boston College. Foi presidente da Sociedade Teológica Católica dos EUA e é editor do “The Cambridge Companion to Vatican II” (Cambridge University Press, 2020).
O artigo é publicado por La Croix International, 04-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Conferência dos Bispos da Austrália (ACBC, na sigla em inglês) e os Religiosos Católicos da Austrália (CRA, na sigla em inglês) instituíram o Grupo de Assessoria de Implementação para responder ao Relatório da Comissão Real.
Esse grupo, por sua vez, criou a Equipe de Projeto de Revisão da Governança (GRPT, na sigla em inglês). Essa equipe recebeu a tarefa de elaborar “à luz da eclesiologia católica” uma resposta abrangente à crítica da Comissão Real à governança da Igreja.
Após um ano de estudo e reflexão, essa equipe entregou à ACBC um documento potencialmente inovador: “The Light from the Southern Cross: Promoting Co-Responsible Governance in the Catholic Church in Australia” [A luz do Cruzeiro do Sul: promovendo a governança corresponsável na Igreja Católica na Austrália; disponível aqui, em inglês].
Os bispos australianos decidiram adiar a publicação desse documento por seis meses, enquanto eles mesmos debatiam as suas recomendações.
No entanto, o La Croix International conseguiu obter uma cópia. Eu já forneci um resumo em um artigo anterior, analisando os pontos que têm um valor para a Igreja em geral, além da Austrália.
Aqui, neste artigo, está a minha análise de “A Luz do Cruzeiro do Sul”.
Talvez seja surpreendente que tenhamos prestado tanta atenção àquilo que, em última análise, nada mais é do que o relatório de uma comissão.
Em épocas diferentes e em uma Igreja mais saudável, esse relatório receberia pouca atenção, principalmente porque ele seria desnecessário, para começo de conversa. Hoje, porém, temos uma Igreja devastada por escândalos, mas liderada por um papa com uma visão ousada da conversão eclesial.
Neste período de crise eclesial, o relatório “A luz do Cruzeiro do Sul” pode oferecer um mapa para os principais elementos que essa conversão exigiria.
Esse relatório contém uma promessa considerável. Está fundamentada em uma eclesiologia sólida. Ele oferece uma franca admissão das falhas de governança da Igreja em todos os níveis e ousa oferecer recomendações muito específicas para avançar em uma reforma eclesial substancial.
A equipe de redação incluía pessoas com experiência em governança corporativa e eclesial – clérigos, ministros pastorais leigos, administradores da Igreja, diretores de escolas e líderes de grupos de reforma da Igreja. Também envolveu vários teólogos e especialistas respeitados em Direito Canônico.
Essa amplitude de perspectiva e variedade de conhecimentos geraram boas perspectivas sobre a qualidade geral do texto.
O documento baseia-se em temas importantes centrais para este pontificado. De fato, ele representa a consideração mais abrangente até hoje de como deveria ser uma governança saudável da Igreja à luz do sonho do Papa Francisco com uma Igreja sinodal.
Sua aplicação eclesial frequente do princípio de subsidiariedade é particularmente significativa, já que tanto São João Paulo II e Bento XVI questionaram se era apropriado aplicar esse princípio – articulado pela primeira vez no ensino social católico – a questões de governo da Igreja.
No entanto, os repetidos apelos do Papa Francisco pela descentralização da autoridade da Igreja sugerem que ele adotou plenamente esse princípio.
O papa argentino também insistiu no fato de que a sinodalidade deve ser implementada em todos os níveis da vida da Igreja. Esse documento oferece uma gama de reformas concretas que ajudariam muito a tornar isso realidade.
Seria difícil exagerar as consequências para a vida pastoral da Igreja se os membros batizados de uma Igreja local pudessem contribuir de forma genuína na nomeação de bispos e na designação dos párocos, conforme o relatório propõe.
Quão diferente seria a vida pastoral de uma diocese se os conselhos diocesanos de pastoral refletissem a diversidade da Igreja local e fossem regularmente solicitados a opinar antes que decisões pastorais importantes fossem tomadas?
Isso representaria não apenas um controle sobre o irrestrito poder episcopal, mas também faria a Igreja avançar muito no caminho de se tornar uma comunidade genuína de discernimento eclesial.
Sem nunca usar o termo, o documento reconhece o sexismo desenfreado na Igreja Católica e enfatiza, várias vezes, a necessidade de uma incorporação muito maior de mulheres na governança da Igreja, particularmente nos níveis mais altos de tomada de decisão da Igreja.
Menciona-se brevemente o pedido do Sínodo Pan-Amazônico de considerar a ordenação de mulheres ao diaconato e fala-se vigorosamente do impacto negativo que advém da exclusão das mulheres ao ministério ordenado.
Os redatores devem ser aplaudidos por um consistente apelo à inclusão das mulheres que se recusa a confiar nos apelos equivocados do Papa Francisco a um certo “gênio feminino”. O documento apela à igual dignidade das mulheres e aos seus muitos dons e habilidades para corrigir essa escandalosa falha da Igreja.
Alguns podem ficar desapontados pelo fato de o documento não pressionar mais em determinadas áreas.
Uma das características notáveis do texto é a sua determinação de ficar dentro dos parâmetros da doutrina da Igreja e, com poucas exceções, da lei da Igreja.
Quanto a esta última, o GRPT propõe uma emenda ao cânone 391 que exigiria que os bispos consultassem o conselho diocesano de pastoral e o conselho presbiteral antes de criar uma lei específica.
Uma segunda proposta pedia a alteração do cânone 513 para garantir que os conselhos diocesanos de pastoral continuem a funcionar quando uma sede estiver vacante.
Houve também pedidos de mudanças de leis específicas, exigindo, por exemplo, o estabelecimento de conselhos diocesanos e paroquiais de pastoral em todas as dioceses e paróquias australianas.
O documento é claramente muito melhor quanto às contribuições não apenas dos eclesiologistas nomeados para a equipe, mas também dos especialistas em Direito Canônico. Presumivelmente, suas contribuições ajudaram a garantir que o documento oferecesse, a cada momento, leituras apropriadamente amplas do que a lei da Igreja permite e oportunidades dentro da lei atual que têm sido subutilizadas.
Um exemplo particular se destaca. O relatório defende consistentemente uma maior participação do laicato na governança da Igreja. No entanto, essa defesa precisa lidar com uma escola de interpretação canônica que insiste que os leigos não podem exercer o poder da jurisdição.
O relatório apresenta uma incursão inesperada nesse debate e, por fim, acompanha uma escola de interpretação oposta, encontrando justificativas suficientes na tradição para o exercício leigo da jurisdição. Essa interpretação expandiria consideravelmente os ofícios eclesiásticos aos quais um leigo poderia ser nomeado.
Pode-se argumentar que essa abordagem comedida da doutrina e da lei da Igreja aumentou muito as chances da sua implementação efetiva. Mas há limites para essa abordagem também.
Por exemplo, o relatório simplesmente aceita a afirmação da lei da Igreja de que um bispo é o único responsável perante o papa. Infelizmente, a lei atual, de fato, baseia-se em um equívoco problemático no Concílio Vaticano II.
Embora o relatório invoque ensino conciliar que vincula o ministério do bispo à Igreja local, na realidade o ensino do conselho é um tanto ambíguo nesse ponto.
É verdade que existem textos importantes tanto na Lumen gentium quanto na Christus Dominus que enfatizam o vínculo entre o bispo e a Igreja local. Mas há também textos que parecem fundamentar o ministério do bispo muito mais na sua participação no colégio episcopal e na sua obediência ao chefe desse colégio, o papa.
É essa segunda visão que dominou a lei e os costumes da Igreja pós-conciliar. No entanto, esses textos conciliares que enfatizam a relação do bispo com a Igreja local encontram um apoio considerável na tradição antiga. Nos primeiros séculos do cristianismo, os bispos eram eleitos pela Igreja local, e prelados como São Cipriano de Cartago insistiam que os bispos eram responsáveis perante seu rebanho local.
Em algum momento, essa ambiguidade no ensino da Igreja terá que ser abordada se a lei e os costumes da Igreja tiverem que fortalecer a relação do bispo com a Igreja local.
Fazer isso desafiaria a prática atual de oferecer a ordenação episcopal como uma honraria para aqueles que receberam cargos burocráticos ou diplomáticos. Também desafiaria a frequente transferência de bispos de uma Igreja para outra.
Essa prática comum incentiva o carreirismo eclesiástico e, por essa mesma razão, era proibida na Igreja primitiva.
O que eu quero dizer aqui é que um programa de reforma da Igreja que relute em se envolver com problemas eclesiológicos mais profundos da lei da Igreja atual enfrentará certos limites em relação ao escopo de uma possível reforma da Igreja.
Então, qual será a mais contribuição desse documento? Teremos que esperar e ver.
No início do ano, o Papa Francisco publicou a sua exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”. Esse documento falha em responder adequadamente aos apelos sinodais por um maior papel para as mulheres e pela ordenação de viri probati ao sacerdócio.
Mas essas falhas não deveriam nos permitir ignorar uma série inspiradora de “sonhos” sociais, culturais, ecológicos e eclesiais, e as necessárias conversões para tornar esses sonhos realidade.
Francisco acaba de promulgar um motu proprio que limparia os procedimentos para a compra de bens e de serviços pelo Vaticano. Pode parecer algo enigmático, mas isso representa uma conquista significativa na tão esperada promulgação das reformas financeiras vaticanas.
E estamos esperando para breve a tão aguardada constituição apostólica Predicate Evangelium sobre uma reforma curial mais abrangente. A análise de um esboço anterior sugere que a constituição pode realmente ter um certo “impulso” reformador.
Por exemplo, no esboço anterior, havia uma ênfase consistente na incorporação dos leigos na tomada de decisões da Igreja, particularmente no que diz respeito às nomeações episcopais.
Embora alguns tenham levantado preocupações bastante legítimas de que a energia reformista deste pontificado possa ter se dissipado, ainda pode haver oportunidades substanciais para uma reforma eclesial duradoura.
Nesse caso, “A luz do Cruzeiro do Sul” poderia dar uma contribuição considerável, oferecendo um plano para um exercício de governança muito mais saudável.
No entanto, para que isso ocorre, esse documento não pode permanecer simplesmente como um relatório de uma comissão.
Como a ACBC e a CRA responderão a esse documento? Espera-se que ele encontre o seu caminho entre as deliberações do próximo Concílio Plenário.
E, se chegar a implementar a maior parte dessas recomendações, o Concílio Plenário da Igreja da Austrália poderia marcar o início de uma genuína renovação do catolicismo no continente australiano.
Também poderia contribuir para traduzir a arrojada retórica do Papa Francisco sobre uma Igreja sinodal em uma realidade institucional.
De todos os modos, os bispos australianos devem ficar atentos: a Igreja global estará de olho.
Clique aqui para acessar o relatório na íntegra [em inglês].
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Um mapa promissor para a reforma e conversão eclesiais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU