Um dos gestos recorrentes de organizações de extrema-direita no mundo inteiro tem sido o ataque simbólico e físico a jornalistas profissionais e outros trabalhadores de mídia. Pesquisador de doutorado no Instituto Hannah Arendt para Pesquisa do Totalitarismo, em Dresden, Alemanha, o sociólogo, cientista político e historiador Maximilian Kreter dedica-se a estudar o tema em seu país, onde imprensa, nacionalismo e Estado estão presentes, de forma muitas vezes turbulenta, em momentos decisivos da história. Atualmente, ele associa o aumento dessas ameaças e agressões à chamada crise dos refugiados, a partir de 2012, com a criação do grupo Pegida e a emergência de um partido político de extrema-direita, a Alternativa pela Alemanha (AfD), com uma plataforma xenofóbica. O grupo tornou-se em 2017 o principal partido de oposição ao governo da chanceler Angela Merkel no Parlamento Alemão.
Em artigo publicado em fevereiro no site do Centro para Análise da Direita Radical (CARR, na sigla em inglês) do Instituto Hannah Arendt, intitulado “Ameaça pública pessoal (de morte) I: como a extrema-direita alemã tenta intimidar e silenciar jornalistas” (disponível em inglês, neste link), o pesquisador faz um balanço preocupante: “O número de ataques físicos contra jornalistas cresceu enormemente (39 a 43 em 2015; 16 a 19 em 2016; 8 a 16 em 2017; 22 a 26 em 2018), altamente correlacionados com o número de manifestações de extrema direita”.
A pedido Kreter respondeu por e-mail a 10 perguntas sobre a violência da extrema-direita contra a imprensa na Alemanha, na Europa e no mundo.
IHU On-Line – A violência física e simbólica contra a mídia parece ser central na estratégia de movimentos de extrema-direita. Por quê?
Maximilian Kreter – Ameaças verbais e violência física são um dos elementos estratégicos fundamentais do movimento de extrema-direita porque serve a múltiplos objetivos. Em primeiro lugar, os atores querem sacudir a credibilidade da imprensa de qualidade para abrir caminho a uma “verdade alternativa”, isto é, notícias que apoiem sua visão de mundo. Em um segundo momento, eles tentam desacreditar jornalistas críticos como mentirosos e inimigos das “pessoas comuns” (“nós contra eles”) a fim de silenciá-los ou reduzir seu alcance jornalístico assim como a cobertura crítica da mídia em geral. O terceiro passo é o uso de violência contra jornalistas que cobrem a extrema-direita e complementa os dois primeiros passos. O uso de ameaças verbais e violência física serve ao objetivo fundamental: ditar a agenda política e dominar a esfera pública; a comunicação desses atores é de caráter puramente instrumental, especificamente a negligência intencional do caráter intrínseco de relação da comunicação. Além disso, eles também priorizam objetivos estratégicos sobre objetivos comunicativos: eles não querem “a força não-forçada do melhor argumento” para estabelecer seu poder, mas alcançar seus objetivos predeterminados sem negociações discursivas.
IHU – O senhor notou que um termo depreciativo em alemão (Lügenpresse, imprensa mentirosa) está sendo revivido na Alemanha. Poderia explicar a origem histórica desse termo? Há uma relação entre a moldura histórica original e a situação atual?
Maximilian Kreter – O termo “imprensa mentirosa” tem uma longa história na Alemanha, que remonta ao século XIX. Durante a I Guerra Mundial, o termo foi usado de forma realmente extensiva pela primeira vez a fim de minar a credibilidade da imprensa estrangeira no terreno da cobertura de guerra. Mas os nazistas usaram os termos propaganda mentirosa (Lügenpropaganda) ou imprensa judaico-marxista mentirosa (jüdisch-marxitische Lügenpresse) antes de chegar ao poder mas também durante seu período no poder, especialmente – outra vez – para o propósito de propaganda de guerra. O sentido era fortemente antissemita, antidemocrático e antiesquerdista. Depois da II Guerra Mundial, a imprensa da Alemanha Oriental, especificamente o programa de propaganda O Canal Negro (Der Schwarze Kanal) usou o termo para denunciar a imprensa ocidental como imprensa capitalista mentirosa (kapitalistische Lügenpresse). Hoje esse termo depreciativo é quase exclusivamente usado pela extrema-direita, claramente referindo-se aos sentidos que os nazistas usavam. Ele serve como ferramenta para denunciar jornalistas que cobrem a extrema-direita ou temas relacionados (por exemplo, imigração) e que não apresentam as notícias de uma maneira que a extrema-direita considere adequada. “Lügenpresse” foi escolhida “palavra mais feia de 2014” na Alemanha. As raízes desse retorno podem num sentido (!) ser encontradas na torcida do clube de futebol Dynamo Dresden. Uma faixa com a inscrição “Imprensa mentirosa” é exibida durante as partidas desde 2012 e “Imprensa mentirosa, cale a boca” (“Lügenpresse auf die Fresse”) era uma expressão popular entre certos grupos. O outro detonador, mais vigoroso, foi o movimento Pegida – também originado em Dresden – que tornou esse termo popular outra vez. Mas em publicações da extrema-direita o termo nunca desapareceu, como diversos vídeos e artigos jornalísticos dos anos 1950 aos anos 2010 provam.
IHU On-Line – Há registros de números crescentes desse tipo de ataque na Europa, não apenas em países de tradição democrática recente, como a Hungria, mas também na Áustria e na Alemanha. Como essa situação pode se desdobrar no futuro?
Maximilian Kreter – Na minha opinião, a situação irá se deteriorar no futuro próximo, se você levar em conta os desdobramentos atuais nos Estados Unidos, na Hungria, na Polônia, na Áustria, na Eslováquia e também na Alemanha. A situação nesses países é muito distinta, e as razões para o declínio da liberdade de imprensa e a confiança decrescente nas instituições de mídia são múltiplas. Por exemplo: a relação entre jornalistas e autoridades, especialmente entre a polícia e os repórteres durante manifestações; o Poder Executivo e outros atores políticos – notadamente os partidos políticos – estabeleçam seus próprios canais de mídia onde possam transmitir suas mensagens livremente, incluindo discurso de ódio e propaganda. Essas circunstâncias encorajam algumas pessoas a “resolver as coisas com suas próprias mãos”, indo do justiçamento ordinário ao vigilantismo.
IHU On-Line – O senhor acredita que um dos objetivos desses movimentos seja causar dano à esfera pública tradicional para enfraquecer a vida democrática?
Maximilian Kreter – Como mencionei antes, um dos objetivos estratégicos fundamentais é danificar a esfera pública tradicional num sentido habermasiano e assim enfraquecer as instituições e práticas democráticas.
IHU On-Line – Há um padrão identificável de escalada desses ataques? É possível dizer, por exemplo, que primeiro ocorrem ameaças verbais ou escritas, depois ações de assédio público e finalmente agressão física?
Maximilian Kreter – Remeto a minha resposta à primeira pergunta. Além disso, depende muito do clima social e da correspondente aceitação das regras do discurso democrático: verdade, adequação, veracidade e inteligibilidade. A linguagem usada deveria ser a linguagem da democracia, ou a democracia é a regra de linguagem. Uma vez que o círculo vicioso de depreciação, polarização inconciliável e envenenamento do discurso democrático começar a ameaçar as democracias liberais e seus representantes (incluindo os jornalistas como “Quarto Poder”) por meio da violação das regras de um discurso democrático, é difícil voltar a esse caminho (e deter o desdobramento descrito acima em resposta à primeira pergunta). Resumindo: linguagem violenta incrementa a possibilidade de violência e ataques físicos.
IHU On-Line – Em relação às vítimas, há um perfil comum entre elas? Alvos frequentes são profissionais cobrindo política, polícia, minorias? São repórteres, comentaristas, colunistas? Jovens ou veteranos?
Maximilian Kreter – Em primeiro lugar: não há “a” vítima enquanto tal ou apenas um grupo muito específico afetado, mas, obviamente, jornalistas que cobrem, por exemplo, guerra, polícia, corrupção e movimentos nos extremos políticos estão mais sujeitos a se tornar alvos de ameaças verbais e ataques físicos. A chance de ser atacado aumenta à medida que os jornalistas se aproximam dos círculos centrais dos grupos afetados em relação aos fatos que esses atores pretendem manter ocultos. Em geral, jornalistas preocupados com tópicos menos quentes, comentaristas ou colunistas podem se tornar alvos de ameaças verbais mas, como eles não estão na maioria dos casos fisicamente acessíveis, raramente ocorrem ataques. Jornalistas investigativos e repórteres policiais podem se tornar vítimas de ataques físicos mais facilmente à medida que se aproximam de seus objetos (grupos desviantes, manifestações, cenas de crimes etc). Em relação ao perfil sociodemográfico, apenas a informação sobre casos individuais está disponível, mas nem a organização Repórteres sem Fronteiras nem o Ministério do Interior da Alemanha fornece esse tipo de informação. Ambos apenas divulgam dados quantitativos que mostram que o número de incidentes tem crescido.
IHU On-Line – Como os ataques estão distribuídos entre a mídia corporativa e os novos meios independentes?
Maximilian Kreter – Não há dados consolidados que permitam precisar os traços da situação. Com base na informação disponível, pode-se afirmar que representantes da mídia corporativa são mais frequentemente atingidos por ataques físicos. Mas os dados disponíveis são provavelmente distorcidos por duas razões principais. Em primeiro lugar, as fontes acessíveis são fornecidas por associações profissionais e sindicatos de jornalistas, frequentemente trabalhando para companhias de mídia corporativa, não importa se como freelance ou empregado permanente. Em segundo lugar, repórteres investigativos cobrindo temas sensíveis não têm interesse particular em ter seus dados incorporados a bases de dados policiais em razão da possibilidade de que esses dados sejam vazados (por exemplo, dados pessoais de advogados envolvidos no julgamento do NSUi foram vazados por policiais). Para resumir: há necessidade de dados confiáveis como base para afirmações substantivas sobre esse assunto.
IHU On-Line – Como o senhor define a resposta das autoridades a esses ataques na Alemanha?
Maximilian Kreter – A resposta das autoridades a essas ameaças é ambígua, insuficiente e parcialmente hipócrita ao não ajudar jornalistas a fazer seu trabalho de forma adequada ou protegê-los e à democracia efetivamente. As leis recentemente aprovadas para combater o extremismo da extrema-direita e o discurso de ódio assim como deter a desinformação (impressa e digital) têm sido oficialmente comentada pela maior associação profissional de jornalistas na Alemanha, a DJV, e as duas influentes associações profissionais de advogados alemães, DAV e RAV. Os comentários vão de “inefetivas e supérfluas” a “nocivas para o jornalismo e a democracia”. Em vez de aprovar novas leis mais e mais, seria mais eficaz apoiar a efetiva observação da legislação pertinente, porque a polícia e a fiscalização, por exemplo, estão sobrecarregadas com a execução da corrente contínua de novas leis e os poderes resultantes disso. No topo disso tudo, o financiamento público do reforço da sociedade civil e da democracia estava a ponto de ser cortado pelo governo alemão antes do ataque terrorista de direita em Halle. Somente uma pressão pública massiva assegurou o apoio financeiro a esses projetos pelo próximo período contábil até 2024.
IHU On-Line – O presente assédio de extrema-direita contra a imprensa é subestimado como uma ameaça à democracia?
Maximilian Kreter – Em geral, é exatamente isso, mas especialmente associações profissionais representativas de jornalistas têm advertido os diferentes públicos que os ataques permanentes (verbais e físicos) a jornalistas são uma ameaça massiva à democracia, enquanto alguns públicos liberais e conservadores têm frequente e intencionalmente ignorado essas advertências ao definir as ameaças como parte do que entendem como liberdade de expressão e opinião asseguradas pela Lei Básica alemã (Constituição alemã).
IHU On-Line – Qual deveria ser uma resposta pública e democrática a essas ameaças?
Maximilian Kreter – A resposta deveria ser em múltiplas camadas e apoiada por todos os esforços democráticos: 1. legislação eficiente e policiamento pelas autoridades; 2. fortalecimento da sociedade civil e promoção da democracia; 3. reconstruir um exaustivo “cordão sanitário” contra a extrema-direita; 4. Considerar o jornalismo e a investigação antifascistas (por exemplo, Exif, Searchlight, Der rechte Rand). Não é preciso adotar sua agenda política, mas a informação apresentada deveria servir como parte do conjunto.