08 Mai 2020
"Resgatar a casa comum, recuperar a corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres, é condição para adiar o fim do mundo", escreve José Geraldo de Sousa Junior, mestre (1981) e doutor (2008) em Direito pela Universidade de Brasília, ex-reitor (período 2008-2012) e professor titular da Universidade de Brasília, membro da Associação Corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua, em artigo publicado por Estado de Direito, 07-05-2020.
Ideias para Adiar o Fim do Mundo.
Ailton Krenak. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, 85 p.
Entre o carisma da imagem histórica do jovem Krenak defendendo no Plenário da Assembléia Nacional Constituinte, em 1988, as propostas dos povos indígenas representados pela UNI – União das Nações Indígenas e as ideias que estão lançadas neste livro Lido para Você, muitos ciclos podem ser designados.
Em entrevista que concedeu para Amanda Massuela e Bruno Weis, da Revista Cult, a propósito desse livro (acesse aqui), aquele instante é lembrado como que numa passagem entre ciclos, de sorte que, dizem os entrevistadores, “Quando Ailton Krenak pintou a cara de jenipapo, em plena Assembleia Nacional Constituinte, em setembro de 1987, estava produzindo uma imagem histórica, síntese da luta dos povos indígenas pelos seus direitos no Brasil. ‘Sangrei dez anos por conta daquele gesto’, diz ele. ‘Aquele protesto não pode ser reproduzido, revisitado. Mesmo nos dias de hoje.’ Difícil esquecer o contraste elegante de seu paletó branco e o rosto pintado de preto. Foi o ponto alto da vitoriosa campanha das mais de 300 etnias indígenas que vivem no Brasil pelo direito simples de existir. O feito, inédito, está inscrito na Constituição de 1988: o direito de existir como povo, cultura, território, modo de vida”.
Conheci Ailton Krenak nessa altura quando, nas grandes mobilizações que conduziram à Constituinte como uma mediação política possível entre a ditadura e um regime civil de enunciado democrático. Ele, juntamente com outras lideranças que assumiam o protagonismo autêntico da causa indígena e de sua luta por autonomia, vencendo o obstáculo redutor assimilacionista com a desconstituição da titularidade subjetiva coletiva dos povos originários, elaborava a agenda política para sua inscrição nos debates sobre a Constituição em elaboração. Sobre ele, no livro, há um bom verbete biográfico, p. 81-82.
Com Ailton, que se empenhou na criação da UNI – União das Nações Indígenas, plataforma a partir da qual ele teve presença na tribuna da ANC, foi muito atuante nessa conjuntura Álvaro Tukano. Com Álvaro continuei um rico diálogo, na medida em que continuou seu mergulho xamânico nos fundamentos cosmológicos de sua ancestralidade e na afirmação do seu simbólico, em relevo, o Povo Tukano. Álvaro chegou a assumir a direção do Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília. Também nos encontramos em momentos acadêmicos, com a proximidade de sua filha Daiara Figueroa, aluna ativista da UnB no Instituto de Artes durante o meu reitorado e, depois, sob a orientação de minha esposa a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, ao desenvolver sua dissertação de mestrado, cuja defesa assisti, acompanhado de Álvaro, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, do CEAM (Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), da UnB.
Aqui um parêntese. A dissertação de Daiara – Uhushé Kiti Niíshé. Direito à memória e verdade na perspectiva da educação cerimonial de quatro mestres indígenas (UnB/PPGDH, 2018), é um notável trabalho que tem “como principal referência pensadores indígenas e usando conceitos indígenas sobre educação, memória, verdade”. Na página 76, da dissertação, uma bela foto registra o acolhimento de Daiara no abraço que lhe dão seu pai Álvaro, Davi Kopenawa e Ailton Krenak. A foto é de 2017, do acervo pessoal de Daiara. E na dissertação, duas citações. A primeira de Álvaro Tukano (p. 4): “Os povos indígenas lutamos pela liberdade e pela dignidade humana, o que nos une é a luta pela memória da terra, pois somente assim podemos garantir nossa sobrevivência”.
A segunda, é uma epígrafe, que abre a dissertação (p. 2). Precisamente, uma afirmação de Ailton Krenak: “Eu acho que teve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, e depois uma descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo é a última. Os índios descobriram que, apesar deles serem simbolicamente os donos do Brasil, eles não têm lugar nenhum para viver neste país. Terão que fazer esse lugar existir no dia a dia. Não é uma conquista pronta e feita. Vão ter que fazer isso dia a dia, e fazer isso expressando sua visão de mundo, sua potência como seres humanos, sua pluralidade, sua vontade de ser e viver” (in Ailton Krenak, organização Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Editora Azougue, 2015).
Conquanto eu tivesse mantido contato intermitente com Álvaro Tukano, com Ailton somente de quando em quando por referências, notícias aqui e ali, sempre pondo em relevo seu percurso na busca de conhecimento para a interpretação identitária de seu povo e de seus parentes. Algo que está na parte final da citação feita por Daiara, em palavras dele, para expressar o mergulho que faz para compreender “o mundo –indígena –, sua potência como seres humanos, sua pluralidade, sua vontade de ser e viver”. É o que penso está nesse livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Ele próprio o diz: “A longa história de resistência do nosso povo me faz acreditar que, quando este mundo acabar, nós vamos assistir. Porque nós sabemos onde estamos. Os nossos netos, tataranetos, vão sobreviver a essa experiência ruim de desencontro que a gente persiste em manter se repetindo. Esses brancos, eles saíram algum dia, num tempo muito antigo, do nosso meio. Conviveram com a gente, depois esqueceram quem eram e foram viver de outro jeito. Se agarraram às suas invenções, ferramentas, ciência e tecnologia. Eles se extraviaram, saíram predando o planeta. Então a gente se reencontra e há uma espécie de ira por termos permanecido fiéis a um caminho aqui na Terra que eles não conseguiram manter. Ficam horrorizados e dizem que somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se “civilizar-se” fosse um destino. Isso é bobagem, uma religião deles. A religião da civilização. Eles mudam de repertório, mas repetem a dança. A coreografia deles é a mesma. É pisar duro sobre a Terra. A nossa é pisar leve, bem leve, sobre a Terra”.
Neste início de semestre interrompido, na UnB, no programa de acolhimento que a Universidade realiza para abrir o ano letivo – o #InspiraUnB – Ailton Krenack foi o convidado escolhido pelo seu carisma inspirador. Para um auditório tomado, presentes a Reitora Márcia Abrahão e sua equipe, o convidado foi incisivo: “Aos jovens que estão chegando nesse lugar onde as linguagens são múltiplas, não se esqueçam de onde vieram. Valorizem sua herança ancestral, suas memórias. Não descartem suas memórias só porque vocês estão entrando em contato com uma nova epistemologia.”
Contra o individualismo e a meritocracia, que segundo ele marcam a sociedade brasileira é preciso repensar valores e talvez adiar o fim do mundo: “Esse tipo de sociedade retira de cada um de nós o que há de mais capaz de invenção, que é a nossa subjetividade. Ela nos põe em um lugar em que nossa imaginação e sonho ficam em subterfúgio”, afirmou, conforme registra o Portal da UnB (acesse aqui).
Assinalo essa passagem, porque Krenak revela que foi exatamente na UnB, que o tema síntese que dá título ao livro – uma adaptação de duas palestras e uma entrevista realizadas em Portugal entre 2017 e 2019 – surgiu quando foi chamado para fazer uma palestra na Universidade em seu Programa de Desenvolvimento Sustentável: “Eu estava no quintal de casa quando me trouxeram o telefone, dizendo: ‘Estão te chamando lá da Universidade de Brasília, para você participar de um encontro sobre desenvolvimento sustentável’. (A UnB tem um centro de desenvolvimento sustentável, com programa de mestrado.) Eu fiquei muito feliz com o convite e o aceitei, então me disseram: ‘Você precisa dar um título para a sua palestra’. Eu estava tão envolvido com as minhas atividades no quintal que respondi: ‘Ideias para adiar o fim do mundo’. A pessoa levou a sério e colocou isso no programa’. Depois de uns três meses, me ligaram: ‘É amanhã, você está com a sua passagem de avião para Brasília?’. ‘Amanhã?’. ‘É amanhã, você vai fazer aquela palestra sobre as ideias para adiar o fim do mundo.’ (p. 15).
Meu dileto amigo Hernan Layme Yepez, juiz de direito em Puno no altiplano andino peruano e que conheci em Lima nas Jornadas do I Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural – Protección Internacional de los Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas Derechos Territoriales y Consulta Previa, organizado por IIDS-Instituto Internacional Derecho y Sociedad (Raquel Yrigoyen), com apoio e participação da UnB (CEAM), em outubro de 2019, convidou-me há pouco para participar da grande assembléia das rondas campesinas do altiplano, e da cerimônia de consulta a pachamama para a realização dos eventos, afinal adiado por conta da pandemia. Hernan, fiel a sua ancestralidade indígena, interpela a visão eurocentrada, pós-colonial do direito internacional e constitucional, repercutindo a mesma unidade de vida, (diz Hernan: “La muerte no existe en nuestra cultura. Nuestros seres queridos viven con nosotros en cada instante. La cosmovisión andina ha generado saberes de derrotabilidad de la muerte, una cultura de respeto a la vida, armonía del cosmos. Vida-muerte-vida, una unidad dialéctica. ‘Así nomás nos iremos, así nomás volveremos’”), um outro humanismo a que remete Krenak, conforme Herman: “Hasta cuándo TC, TC, TC… debemos soportarte?. Cómo puede impartirse justicia sin conocer el Perú profundo?. Deben viajar, sesionar en una comunidad campesina, nativa, ronda. La corrida de toros y la pelea de gallos son imposiciones culturales crueles de occidente y Asia, asimilados por los criollos peruanos; primero fueron explotados, torturados y asesinados nuestros ancestros; y, luego siguieron los animales inocentes. En nuestra cultura, en nuestros pueblos, no existe más que amor en la crianza de los animales, por eso le ponen sus nombres “Pepito”, ” Panchito”, “Marianito”; son un integrante más de la familia y si los van a vender, le piden que los cuiden; y si les van a sacrificar le piden permiso con una quintuska (hojas de coca y vino), saben quiénes son los padres, pueden adivinar en sus rostros de que padecen. Los hacen “casar” a los ovinos para mayor reproduccion. Y aun, al zorro le tienen respeto, y le dicen: “Tiula” (de tío), le designan al mejor animalito para que se vaya a otro lugar y el zorro entiende y se va -vivencias contadas de los ronderos, el Arariwa; dicen: “ellos también tienen hambre, frío, tienen crías que alimentar, hay que hablarles, ellos entienden, si le odias es peor”-. Qué hermosa es nuestra cultura, no de fiesta de la sangre, de la crueldad, no de una cultura de la muerte. Se debe ir a las instancias internacionales”.
O livro de Ailton Krenak está divido em três partes: Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Do Sonho e da Terra e A Humanidade que Pensamos Ser. ´Nessas três partes, como um fio condutor, a chamada a que nos demos conta de que “há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam”, a partir de diferentes perspectivas de humanidades, que não podem ser subordinadas a uma única compreensão do humano que subordine coisificando todas as outras possibilidades de vida e de existência, que se abra a uma ecologia de saberes (neste ponto dialogando com Boaventura de Sousa Santos, expressamente mencionado), que se integre a “nossa experiência cotidiana, para inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade” (p. 24).
Ele fala de uma humanidade fecundada numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reivificação eque se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por essa antropofagia: “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (p. 44).
Porque sentimos “desconforto e a sensação de estar caindo” diz ele, com Davi Kopenawa (A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami), precisamos todos “despertar, porque se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da eminência de a Terra não suportar a nossa demanda” (p. 45).
Escrito antes da pandemia do COVID-19 (mas não sem prever a reação antropoceno da peste ambulante, o contágio do encontro entre humanos”, p. 71), a antevisão de uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, já apontava para o mau humor que a desolação traria e para a resposta terrível que a natureza daria a tanta insensatez: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos”.
Resgatar a casa comum, recuperar a corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres, é condição para adiar o fim do mundo.
Talvez por isso Krenak nos convide para o sonho como busca de alternativa para o reencontro das humanidades. Assim, diz ele, “quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia” (p. 51-52).
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