29 Abril 2020
"O Coronavírus parece ter confirmado o estado de saúde frágil da ordem global liberal, por um lado, e os limites da flexibilidade criativa do liberalismo em agir como força motriz para uma ação global, pelo outro", escreve Michael Driessen, professor de ciência política e relações internacionais na Universidade John Cabot de Roma, onde é diretor do Departamento de Ciências Políticas e Sociais e co-diretor da Interfaith-Initiative, em artigo publicado por Settimana News, 28-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estou observando Xangai há um mês. Por que tantas pessoas morrem em Nova York e não em Xangai, uma megalópole na qual vivem aglomerados 25 milhões de habitantes - apenas a cinco horas de trem de Wuhan?
Amartya Sen teorizou, em uma síntese que ficou famosa, que a democracia elimina o problema da fome e outras catástrofes de ampla dimensão, graças à sua combinação de liberdade, prontidão para lidar com eventos e flexibilidade institucional. O ponto de partida de Sen era precisamente o fracasso da China de Mao diante da Grande Fome. E o que acontece com uma pandemia? O que Xangai significa para o futuro da política internacional e para a ordem liberal do mundo? Sobre isso, algumas breves considerações.
Um dos traços políticos mais importantes em termos de resposta global ao Coronavírus tem sido a falta de coordenação internacional. Por um lado, esse é um aspecto que pode surpreender parcialmente. Durante anos, estudiosos de relações internacionais, de David Held a Bob Keohane, argumentam que a natureza especificamente transnacional das principais questões internacionais (como migração, aquecimento global, terrorismo e conflitos cibernéticos) deveria incentivar a cooperação global em uma escala muito maior do que era típico nos sistemas internacionais anteriores.
Em alguns aspectos, o Coronavírus parece ser exatamente o tipo de problema que esses teóricos das relações internacionais tinham em mente: uma forma de violência sem fronteiras nem bases estatais, que caracteriza a nossa época da globalização e convoca suas possibilidades globais. Em seu ensaio de 2006, Reframing Global Governance: Apocalypse Soon or Reform, Held faz da disseminação global de uma doença um exemplo crucial do novo tipo de problemas internacionais que exigem formas inéditas de cooperação global.
No entanto, essas formas de cooperação global não se manifestaram, por uma série de razões, cada uma das quais merece atenção.
Em primeiro lugar, como é evidente desde antes de 2016, fica claro que o poder e a atenção dos Estados Unidos, senão propriamente em declínio, estão de qualquer forma direcionados internamente, efetuando depois, especialmente com Trump, uma forte virada isolacionista. De maneira alguma, Trump tentou assumir uma liderança global na gestão da crise dos coronavírus.
As tentativas de delinear uma liderança global tiveram pouco sucesso por parte de outros. A voz da ONU e da União Europeia foi moderada; e os planos dos países europeus e de outros lugares nunca atingiram o nível de uma firme convocação à ação internacional. Em outras palavras, o Coronavírus parece ter confirmado o estado de saúde frágil da ordem global liberal, por um lado, e os limites da flexibilidade criativa do liberalismo em agir como força motriz para uma ação global, pelo outro.
No entanto, não há nada fatalmente inevitável nessa situação. É possível imaginar um cenário diferente: aquele em que um EUA mais globalista, juntamente com um G7 mais determinado, uma União Europeia mais solidária, uma ONU mais incisiva e uma China mais cooperativa, teriam mobilizado coletivamente suas capacidades políticas para uma resposta vencedora para todos diante da pandemia.
Uma resposta que poderia ter coordenado melhor a distribuição de suprimentos e ajuda de emergência e a disseminação de diretrizes sanitárias, a fim de fortalecer e reafirmar o sistema internacional liberal em vez de enfraquecê-lo.
Por que não temos um vídeo no YouTube de Trump, Xi e Guterres usando juntos máscaras e defendendo o futuro global? Por que não tem uma videoconferência de Macron, Merkel e Conte para os povos da Europa com a Nona sinfonia de Beethoven tocando ao fundo?
De um certo ponto de vista, a situação atual pode ser atribuída a uma fraca imaginação moral internacional e não apenas às fraquezas estruturais ou institucionais da ordem global liberal.
Por outro lado, a própria natureza da crise enfraqueceu essa possibilidade e destacou a centralidade das capacidades de resposta do Estado separado, alimentando, em vez de restringi-las, a dinâmica de soberania nacional.
A ameaça do coronavírus deve ser enfrentada no território e por isso os governantes locais, tanto em nível regional quanto estatal (como Cuomo e Zaia), e nacionalistas como Xi, emergem como principais agentes durante a crise - não diplomatas internacionais, políticos e ministros do exterior.
Enquanto o vírus zomba das fronteiras estatais, são justamente os poderes estatais e as formas locais de governo que ressurgem como protagonistas das escolhas, desde a coordenação das equipes de saúde de emergência até a aplicação de medidas de distanciamento social. Isso marca uma diferença importante em comparação às respostas a situações de crise, como terrorismo internacional ou o aquecimento global, que haviam provocado uma coordenação internacional.
Tudo isso alimenta o fogo da onda de autoritarismo que atravessa hoje o mundo, com suas acusações de declínio da democracia liberal - especialmente quando esta é avaliada não pelo seu valor intrínseco, mas em termos puramente técnicos, isto é, em sua capacidade de inovar e encontrar soluções eficazes para novos problemas, da fome à pandemia.
E aqui voltamos para Nova York e Xangai. Mesmo se a China mente sobre seus números - e dependendo do grau com que o fizer -, seu sucesso em fazer isso hoje é uma clara prova do poder que os novos regimes autoritários foram capazes de conquistar em um mundo caracterizado por comunicação aberta e economia liberalizada. Este não é o autoritarismo fechado de Mao e poderia resultar mais atraente e duradouro do que outros modelos, especialmente na ausência de uma contranarrativa convincente e de uma resposta adequada. Isso se aplica não apenas a Xi, mas também a outros autoritários liberais e democráticos iliberais de todos os tipos - como Erdogan, Putin, Orban e o resto da companhia.
Nessa perspectiva, o destino de Xangai e Nova York poderia ser lembrado como uma derrota histórica.
Qual poderia ser o papel da Igreja nesse momento de rearranjo geopolítico? A dinâmica esboçada acima, que intercepta inclusive a recente intensificação global da contraposição entre tendências soberanistas e cosmopolitas, provavelmente terá repercussões semelhantes no catolicismo político.
Um dos desenvolvimentos mais importantes no posicionamento político católico nos últimos cinco anos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, foi a mobilização de forças políticas e religiosas para apoiar uma forte ideia de nacionalismo cristão. Esse novo movimento soberanista católico criou uma nova aliança entre políticos e agitadores como Orban, Bannon e Salvini e intelectuais conservadores como Dreher, Reno e De Mattei de uma maneira que não deve ser vista despreocupadamente.
A revista First Things, atualmente dirigida por Reno, desempenhou um papel central ao teorizar uma compreensão religiosa mais estreita e explícita do Estado-nação, defendido como o melhor baluarte da liberdade religiosa contra formas agressivas de humanismo laico e sua visão globalista. Disso decorre o aplauso da direita católica a Orban e sua atração por Salvini e o Front National.
Parece claro que esse movimento vê seus instintos políticos confirmados pela crise atual, como sugere um longo artigo publicado na First Things este mês, em que é elogiada a política de Salvini na Itália do Coronavírus. Um movimento que está em atrito com o papado de Francisco, mas também contrasta com a dinâmica internacionalista da modernidade católica que havia sido assumida pela Igreja após as duas guerras mundiais.
Se a Igreja não quer recuar de sua visão da modernidade e, ao mesmo tempo, quer enfrentar efetivamente o novo autoritarismo e isolacionismo geopolítico, deve adotar uma visão muito mais sólida e teologicamente fundamentada de internacionalismo católico. Uma visão que vá além do apoio às declarações da ONU ou às fórmulas já desgastadas do internacionalismo liberal atualmente em circulação.
Em vez disso, trata-se de tornar mais sólido o perfil integral de sua visão de desenvolvimento humano e político, trazendo de maneira decisiva a leitura eclesial da misericórdia e do sofrimento no debate público sobre liberdade, dignidade humana e cooperação internacional que surgiu de maneira evidente durante esta pandemia.
A atenção de Francisco ao diálogo inter-religioso é um recurso decisivo para avançar nessa direção (cf. SettimanaNews). Como projeto, o diálogo inter-religioso busca embasar uma visão de cooperação internacional sobre a solidariedade espiritual e teológica. Declarações e documentos recentes sobre a propagação da pandemia de Coronavírus, incluindo os da nova Alliance of Virtues e de Religions for Peace, ressoaram vigorosamente no âmbito internacional e as palavras do papa sobre a reconstrução de uma civilização do amor pós-pandêmica devem ser lidas nesse sentido.
Eles apontam para a possibilidade de um entendimento do mundo teologicamente válido e religiosamente fecundo; uma visão capaz de desafiar a ordem mundial e transportá-la para além da atual divisão entre soberanistas e cosmopolitas.
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Covid-19 e políticas globais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU