27 Abril 2020
Para o autor de "La Morte nera", o terror que se espalhou é resultado de uma falta de compreensão do fenômeno vírus.
Por trás do medo do vírus, há a consciência de nossos limites, o terror pelo que não conhecemos: como a Morte negra da Idade Média, a pandemia de Covid-19 nos obriga a olhar o desconhecido no rosto e a nos sentirmos impotentes. Quem está convencido disso é John Hatcher, professor emérito de história social e econômica de Cambridge, provavelmente o maior especialista da epidemia de peste que no século XIV exterminou vinte milhões de pessoas na Europa. Seu best-seller "La Morte nera" (A morte negra, em tradução livre) é publicado na Itália por Bruno Mondadori.
A entrevista é de Giampaolo Cadalanu, publicada por La Repubblica, 25-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor, quais são as diferenças e quais são as semelhanças entre a atual pandemia e a Peste negra, do ponto de vista da reação humana?
Como a Morte negra era sem precedentes, algo que a humanidade nunca havia experimentado, o mesmo ocorre com esse coronavírus. No passado recente, tivemos o caso da gripe aviária, Sars, Ebola: ficamos com medo, porque não estamos acostumados a nos medir com algo novo, que a medicina não está pronta para enfrentar. É o mesmo pânico que a chegada de doenças trouxe quando a ciência médica ainda era primitiva. Se não temos medo de doenças que conhecemos, como a pneumonia ou uma epidemia de gripe forte, é porque hoje sabemos como lidar com elas.
Como a sociedade mudou na época? Você acha que haverá mudanças semelhantes também depois dessa crise?
Na Idade Média, a estrutura da sociedade era muito mais simples do que é hoje, embora a Itália estivesse muito mais avançada que o resto da Europa. Uma grande parte da população garantia seu sustento de forma autônoma, portanto mesmo uma praga daquelas proporções não provocou uma forte destruição das estruturas sociais. As cidades frequentemente se viram sem suprimentos do campo, mas no final a vida seguiu da mesma maneira. Isso não é possível hoje, em um mundo interconectado: ninguém produz mais seu alimento por própria conta. Na Idade Média, as pessoas podiam evitar misturar-se em grandes multidões, a população estava acostumada a passar muito tempo no campo, trabalhando suas terras.
Mas mesmo assim a infecção se disseminou.
As pessoas estavam ligadas porque viviam em comunidades mais íntimas. Existem várias razões pelas quais a doença pode se espalhar: uma é que, quando alguém morria, sua comunidade se reunia perto do leito de morte. Mas, na realidade, ainda não entendemos hoje totalmente os mecanismos de propagação da peste e como ela pôde afetar toda a Europa em poucos anos. A única certeza é que não podemos atribuir toda a responsabilidade a ratos e pulgas. Acredita-se que a responsabilidade também seja humana, e dos parasitas humanos.
Alguma coisa mudou na sociedade ou as estruturas sociais permaneceram as mesmas?
Mudanças significativas ocorreram, por exemplo, na produção agrícola: a perda de grande parte da população levou a uma redistribuição da terra. Antes da peste, a população havia aumentado muito, depois da epidemia, a terra ficou mais barata, os preços dos alimentos caíram e os salários aumentaram porque havia pouca força de trabalho. Os sobreviventes tiveram uma melhoria em seus padrões de vida.
Isso não vai acontecer hoje?
Não, aquela era uma sociedade muito diferente.
Que mudanças você prevê então?
Observadores de esquerda preveem o despontar de um papel maior para o Estado, que tem a dimensão suficiente para introduzir milhões no sistema econômico, estimular a atividade produtiva e evitar o desemprego. Alguns dizem que o Estado cresceu e não encolherá, porque nos acostumamos a um sistema de bem-estar social, inclusive econômico, como foi na Europa Ocidental.
Para entender essa pandemia, qual é o melhor caminho? A descrição das tendências gerais, ou melhor, como você escolheu em seu livro sobre a peste, o relato da experiência de pequenos grupos e indivíduos?
Acho difícil eu mesmo entender as dificuldades e o impacto dessa pandemia, entender completamente o que está acontecendo, especialmente no norte da Itália, com a morte de tantos idosos. Nos países de climas mais frios, a chegada da gripe sempre traz algum número de vítimas. Mas isso é desconhecido, e o governo teve que aplicar medidas draconianas nunca antes usadas. E também é interessante observar a China, como reagiu ao isolamento. A grande impressão que tive é que percebemos que não sabemos, estamos enfrentando uma ameaça que entendemos ser muito séria, mas ao mesmo tempo está nos limites do nosso conhecimento médico. Foi o que aconteceu com a Sars, o Ebola. Em certo sentido, são doenças medievais e na África as pessoas iam visitar as famílias atingidas que mantinham as vítimas em casa. E a doença se transmitia como a peste na Idade Média.
Falando da Idade Média: você acha que hoje há espaço para o retorno de crenças supersticiosas ou isso é apenas um legado do passado?
A superstição hoje pode ter um sentido muito diferente. Por exemplo, o que podemos aprender com o que está acontecendo? Aprendemos que a pesquisa médica não tem fundos suficientes? Que não há assistência pública suficiente, que a globalização traz problemas? Não sei. Sei que ainda questionaremos o nosso comportamento e as nossas estruturas de governo.
Você não acredita no retorno de superstições como a do ISIS, cujos militantes consideram o coronavírus um castigo divino pelo comportamento humano em nações idólatras?
Os muçulmanos podem ser mais fundamentalistas do que os próprios fundamentalistas cristãos, eles veem as doenças como uma punição divina, que não pode ser acidental. Como na Idade Média, acredita-se que algo tão catastrófico deve ser a vontade de Deus.
O líder xiita iraquiano Moqtada al Sadr especulou que a epidemia é um castigo pela chegada dos casamentos homoafetivos ...
Na Idade Média, uma parte da Igreja afirmou que a culpa era das jovens que seguiram os cavaleiros e se comportavam como hoje as groupies de popstars. Não fica claro por que a punição deveria atingir todos, exterminando 40% da população ... .
Você acredita que a humanidade pode aprender algo com essa pandemia? Virá mais racismo e xenofobia, ou podemos pensar em uma nova solidariedade?
No nível internacional, a solidariedade não parece prevalecer, pelo menos vejo isso na Europa. Nas comunidades, não sei se uma maior solidariedade possa se desenvolver: em diferentes circunstâncias ela teria despontado, um espírito de boa vizinhança teria aparecido, mas com essas características de contágio que impedem os contatos é mais difícil.
Você contou a Peste Negra através de personagens específicos, heróis de seu tempo, se quisermos. Hoje também são precisos heróis?
Por exemplo, os trabalhadores do NHS, o Serviço Nacional de Saúde Britânico: fazemos questão de aplaudir, porque eles são os verdadeiros heróis, estão na frente e todos os dias arriscam suas vidas.
Depois da peste da Idade Média, a população ficou desapontada com a impotência da Igreja. Corremos o risco de ficar desapontados com a ciência?
Isso dependerá do tempo necessário para a vacina chegar. Se a pandemia durar muito tempo, seria um choque. E isso, em um momento em que muita política diminui o crédito de cientistas e especialistas, se tornaria um problema.
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“Como a peste negra, esta pandemia nos levará a repensar a sociedade”. Entrevista com John Hatcher, historiador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU