05 Março 2020
Os tempos modernos nunca testemunharam tentativas tão vergonhosas de certos bispos de manipular as palavras do papa. São a manifestação de um desrespeito sem precedentes em relação ao papa – a ele e à sua autoridade.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 04-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dizem que Pio XII, que reinou como papa entre 1939 e 1958, usou esta peculiar saudação para dar as boas-vindas a certos bispos quando vinham encontrá-lo:
“Monsenhor, fique à vontade para se ajoelhar onde quiser.”
Como os tempos mudaram! Nos anos desde o Concílio Vaticano II (1962-65), o Trono de Pedro foi guardado com naftalina.
Agora existe uma atmosfera muito mais fraterna e informal sempre que o papa se encontra com outros bispos. Isso é particularmente verdade durante as visitas “ad limina”, que os bispos devem fazer a Roma a cada cinco anos, a fim de apresentar um relatório sobre o estado de suas dioceses.
Mas, como disse Chaucer no século XIV, “a familiaridade gera desprezo”. E talvez isso ajude a explicar por que alguns prelados acham que podem tirar vantagem do bispo de Roma colocando palavras em sua boca.
Isso aconteceu recentemente, depois que os bispos da Região XIII dos Estados Unidos (Arizona, Colorado, Novo México, Utah e Wyoming) fizeram as suas visitas “ad limina”.
Dois membros não identificados do seu grupo tentaram manipular a reunião alegando que o Papa Francisco havia dito que estava furioso com o Pe. James Martin SJ e o seu ministério junto aos católicos LGBT.
Foi um ataque pessoal eclesiástico-jornalístico contra o jesuíta estadunidense, publicado em um artigo no dia 20 de fevereiro de autoria do editor da Catholic News Agency (CNA), de Denver.
Mas a operação foi mal administrada de um modo tão incoerente e desarticulado que rapidamente saiu pela culatra.
Dois outros prelados que estavam naquela mesma reunião com o papa – o arcebispo John Wester, de Santa Fe, e o bispo Steven Biegler, de Cheyenne – falaram abertamente e denunciaram que o relato anônimo nunca havia ocorrido.
Embora esses dois bispos tenham esclarecido as coisas, ainda existe um problema sério. É claro que algumas lideranças católicas dos EUA estão tentando enfraquecer a autoridade do Papa Francisco e prejudicar sua credibilidade.
Essa tentativa em particular foi apenas mais um exemplo de uma campanha implacável que tem claros tons homofóbicos. Ela está em andamento há algum tempo e está sendo travada por um elenco de lideranças e jornalistas da Igreja.
Apenas dois dias antes do artigo da CNA, o mesmo autor publicou uma crítica feroz contra o Pe. Martin nas páginas da revista neotradicionalista First Things.
Os tempos modernos nunca testemunharam uma tentativa tão vergonhosa de certos bispos de manipular as palavras do papa. Essa é a manifestação de um desrespeito sem precedentes em relação ao papa – a ele e à sua autoridade.
Vale a pena notar que o formato da visita “ad limina” se tornou menos estruturado nas últimas décadas.
João Paulo II se reunia de modo privado, um a um, com cada bispo individual. Com raras exceções, ele daria a cada um exatamente 15 minutos do seu tempo.
Bento XVI eliminou essa prática e, em vez disso, começou a convidar grupos de cerca de 10 bispos por vez para uma reunião que durava aproximadamente uma hora. Obviamente, ele também abria exceções e, às vezes, se encontrava com um bispo individualmente.
Durante suas visitas “ad limina”, os bispos também se reúnem com os chefes dos vários escritórios da Cúria Romana. E, nos velhos tempos, muitas dessas autoridades vaticanas aproveitavam a ocasião para dar uma lição nos bispos.
Mas não é assim com o Papa Francisco. O papa argentino facilitou os encontros fraternos entre os bispos visitantes e seus coirmãos nos dicastérios vaticanos.
Ele também fez uma modificação a mais na audiência papal que faz parte da visita “ad limina”. Em vez de realizar reuniões individuais ou em pequenos grupos, ele passa 90 minutos ou mais com os bispos de uma região inteira.
O papa não faz um discurso formal nessas ocasiões. Em vez disso, ele passa esse tempo em uma conversa de fluxo livre com seus convidados, geralmente respondendo a perguntas e oferecendo conselhos.
Como não há nenhum texto papal oficial, a imprensa só fica sabendo dos assuntos discutidos durante a visita com os bispos que compareceram. Esse formato assegura um encontro mais amigável, mas também pressupõe que os bispos serão verdadeiros ao relatarem a experiência à mídia e ao povo das suas dioceses.
Todo o formato da visita “ad limina”, na verdade, deveria ser repensado, especialmente à luz da crise dos abusos sexuais. Deve haver uma maior transparência, e as comunidades locais deveriam estar envolvidas em todo o processo (antes, durante e depois da visita).
Dito isso, as mudanças dos últimos anos vão na direção certa.
É louvável que Francisco fale em tom de conversa com os bispos. Mas eu não me lembro de bispos que tenham tentado tirar proveito da visita “ad limina” na tentativa de atacar um membro da sua Igreja, às custas de minar a credibilidade daquilo que é atribuído ao papa na imprensa.
É preocupante que isso tenha acontecido recentemente. É um sintoma da vontade de adotar a pós-verdade como uma arma legítima na guerra civil que alguns bispos desejam travar na Igreja Católica.
Mas, de certa forma, também parece um pouco um déjà-vu. Não é a primeira vez que certos bispos estadunidenses mostram tamanho desrespeito a Francisco.
Houve uma manipulação da agenda do papa durante a sua visita aos EUA em setembro de 2015.
Então, começando em 2016, houve o desafio bem documentado dos seus ensinamentos sobre o matrimônio e a família na Amoris laetitia.
Seguiu-se a recepção ambígua que alguns bispos deram às ameaças do arcebispo Carlo Maria Viganò contra o papa em agosto de 2018. E não devemos esquecer a gafe da Conferência Episcopal [dos EUA] em Baltimore, em novembro de 2018.
A manipulação da recente visita “ad limina” se encaixa aqui como mais um momento chocante em uma história bastante singular.
Deixando de lado a falta de padrões jornalísticos profissionais mostrados ao citar bispos anônimos colocando palavras na boca do papa (a necessidade de proteger a fonte é algo totalmente diferente), a parte mais escandalosa é que isso revela o colapso total das normas eclesiais básicas entre os membros da própria espinha dorsal da Igreja institucional, os bispos.
A pequena minoria de bispos que tentou manipular o papa mostrou sua incapacidade de respeitar até mesmo os requisitos óbvios de confidencialidade que devem necessariamente proteger um encontro voltado para o fortalecimento dos laços entre as Igrejas locais e o sucessor de Pedro.
Houve um tipo particular de cinismo nessa operação. Aqueles que a montaram, sabiam que o Vaticano não poderia responder oficialmente e negar abertamente as palavras que os bispos não identificados – com a ajuda de uma fonte de notícias católica – colocaram na boca do papa.
Essa foi outra tentativa de criar uma emboscada para o Papa Francisco na guerra assimétrica que alguns bispos dos EUA estão travando contra o ensino e as reformas deste pontificado. É particularmente sinistro o fato de que seu arsenal é composto por um aparato de comunicação de massa que se define como a voz do catolicismo ortodoxo.
Nessa guerra assimétrica, o manual parece ter sido tomado emprestado do governo Trump: diga qualquer coisa que seja necessária, independentemente se for falsa ou fabricada, a fim de marcar um ponto político – mesmo que isso arrisque prejudicar a reputação do papa.
O último fiasco sinaliza uma possível escalada. Só podemos imaginar o que ocorrerá no próximo conclave. O alvo mais imediato, porém, pode ser a reforma sinodal da Igreja.
A sinodalidade abre novos espaços de diálogo na Igreja. Oferece uma nova liberdade que deve ser usada com responsabilidade, acima de tudo pelos bispos.
O que vimos com o incidente mais recente é uma violação das normas eclesiais básicas e a promoção de comportamentos abusivos por parte de alguns bispos – abusivos em relação a outros membros da Igreja e ao bispo de Roma.
É um sinal da paralisia eclesial no catolicismo dos EUA.
A sinodalidade não é apenas uma palavra ainda amplamente desconhecida e misteriosa para várias lideranças da Igreja nos EUA, mas também parece que algumas delas adotaram várias manobras e tipos de subterfúgios que não pertencem à conversação eclesial.
O general prussiano e teórico militar Carl von Clausewitz, do século XIX, disse a famosa frase: “A guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios”.
De uma forma diferente, talvez, os procedimentos para uma Igreja mais sinodal se tornaram a continuação das guerras culturais por outros meios.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sinodalidade e normas eclesiais básicas. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU