20 Fevereiro 2020
Durante o Império Romano, toda a região do Mediterrâneo era conhecida como Mare Nostrum, “nosso mar”. Era uma afirmação imperial de domínio, sim, mas também refletia a ideia de que os povos locais ligavam-se não só pela geografia como também dividiam um destino comum.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 19-02-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
É esta mesma intuição, em outras palavras, que levará, no próximo domingo, o Papa Francisco à cidade italiana de Bari, para encerrar um encontro com os bispos de 20 países do Mediterrâneo, organizado pela poderosa Conferência Episcopal Italiana – CEI.
O título deliberadamente irônico do evento é “Mediterrâneo, fronteira de paz”. É claramente irônico porque, em muitos aspectos, o Mediterrâneo é tudo menos pacífico: desde os levantes associados à atual crise migratória e de refugiados até a devastação causada pelo radicalismo islâmico em vários países do Oriente Médio pertencentes à região.
Portanto, esse título é mais uma exortação do que uma afirmação, isto é, um pedido de ajuda para aquilo que o Mediterrâneo poderia ser.
O Papa Francisco deve falar aos participantes no domingo, muitos dos quais ele já conhece muito bem. Também deve visitar a Basílica de São Nicolau de Bari e orar diante das relíquias do santo, além de cumprimentar a comunidade dominicana local. Ele celebrará uma missa ao ar livre no centro da cidade de Bari.
Esta sua parada na basílica empresta à viagem um subtexto ecumênico óbvio, já que Bari também é um destino de peregrinação popular entre os cristãos ortodoxos – especialmente os ortodoxos russos, que têm uma veneração particular por São Nicolau. Dois anos atrás, após encontro entre Papa Francisco e o Patriarca Kirill, de Moscou em Havana, ossos de São Nicolau foram levados de Bari para Moscou a pedido do próprio pontífice, marcando a primeira vez que eles deixaram a Itália em mais de mil anos.
Francisco também usou Bari como palco para um encontro com todos os patriarcas do Oriente Médio, ortodoxos e católicos, em 2018, dizendo que o fez “na esperança de que a arte do encontro prevaleça em detrimento a estratégias de conflito”.
Mapa de Bari, Itália (Foto: Pinterest)
Um item central da pauta do dia 23 de fevereiro é a migração, e há uma relevância óbvia aqui. O Mar Mediterrâneo tem sido descrito ultimamente como o “cemitério da Europa”, em referência aos milhares de migrantes e refugiados que morreram tentando fazer a travessia para a Europa em barcos superlotados e inseguros. É o palco sobre o qual alguns dos dramas humanos mais angustiantes da atualidade se desenrolam, e para um papa que fez do destino dos migrantes e refugiados uma pedra angular de seu pontificado, ele obviamente quer usar essa oportunidade para manifestar-se sobre o assunto.
De acordo com o programa oficial, outros tópicos a serem discutidos incluem a evangelização dos jovens, o desemprego, as trocas culturais e a construção da paz, temas todos eles dignos onde uma abordagem católica unificada na região pode fazer uma grande diferença.
No entanto, há um outro tema que pode não estar explicitamente em pauta, mas que seria estranho esse grupo se encontrar e não tratá-lo: a própria sobrevivência do cristianismo em algumas partes do Mediterrâneo, sobretudo no Oriente Médio.
Como já bem documentado, há décadas o cristianismo tem visto dias sombrios no Oriente Médio, piorados significativamente pela ascensão do Estado Islâmico e formas de extremismo jihadista. O Iraque é provavelmente o exemplo mais angustiante: de uma população cristã aproximada de 1,5 milhão antes da invasão liderada pelos EUA em 2003, hoje as estimativas são de que restam apenas 250 mil cristãos, e muitos se perguntam se o destino do Iraque é tornar-se uma zona livre de cristãos.
De fato, a única razão de algo assim já não ter acontecido é porque as oportunidades de abandonar o local estão diminuindo em meio à crise de refugiados. Quando visitei a Universidade Católica na cidade curda de Erbil, ao norte do Iraque, há dois anos, vários jovens católicos me disseram que o único motivo pelo qual não pensavam em sair do país era por causa da dificuldade de conseguir vistos e porque não querem ficar dois anos de suas vidas, ou mais, no limbo em um campo de refugiados.
“Se a Europa e os Estados Unidos abrissem as portas, todos os cristãos daqui partiriam amanhã”, foi a avaliação sombria feita por um padre da região de Nínive, no norte iraquiano.
Nas demais partes do Oriente Médio, a situação pode estar melhor, mas ainda assim preocupa. Uma combinação letal de insegurança, caos político, estagnação econômica e perseguição declarada criou um ambiente tóxico – para todo mundo praticamente, mas de maneira especial para os cristãos.
Não está claro exatamente o que as igrejas católicas da região – minorias entre a população geral em muitos lugares – podem fazer para interferir nesse clima, mas uma contribuição real que o evento em Bari pode dar é identificar suas necessidades e ver o que o restante do mundo católico pode fazer para ajudar a satisfazê-las.
Se houver este diálogo em Bari, talvez não importe mais para onde o Papa Francisco acabe viajando em 2020: apesar da brevidade, esta seria a sua viagem mais importante do ano.
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Viagem a Bari dá ao Papa a chance de ajudar a salvar o cristianismo no Oriente Médio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU