13 Dezembro 2019
A “vida oculta” do filme de Terrence Malick é ele. Retorno à verdadeira história de um homem que se recusou a sacrificar sua liberdade interior face ao nazismo.
A reportagem é de Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 04-12-2019. A tradução é de André Langer.
“Um pouco antes da meia-noite, eu estava deitado na cama sem dormir, mesmo não estando doente. De repente, quando estava quase dormindo, vi um belo trem serpenteando em uma montanha. Além dos adultos, havia muitos jovens que vinham de todos os lugares para subir no trem; mal podíamos detê-los. Então, de repente, uma voz me disse: ‘Este trem está indo para o inferno’”. Franz Jägerstätter, um camponês austríaco, teve este estranho pesadelo em uma das noites de janeiro de 1938. Se era difícil decifrar seu significado no momento, a marcha da história logo lhe fornece a chave de leitura: esse trem é o nacional-socialismo, que, na década de 1930, espalha suas metástases no corpo social austríaco e precipita o país na escuridão.
Às vésperas do Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha nazista em março de 1938, é um agricultor oriundo de uma vila perdida no meio das florestas, Sankt-Radegund – a 30 km de Braunau-am-Inn, cidade natal de Hitler –, que tem uma das visões mais claras do futuro de seu país. Este sonho, evocado por Terrence Malick em Uma vida oculta, Franz Jägerstätter conta isso apenas alguns anos depois, em seus cadernos, quando se recusa a lutar no exército do Terceiro Reich. Essa escolha da objeção de consciência não é trivial em uma época em que, aterrorizados, os habitantes de sua aldeia votaram massivamente na anexação da Áustria à Alemanha – o resultado das urnas dá 100% dos votos ao “sim”, apesar do “não” de Franz, como conta Cesare G. Zucconi, germanista e secretário geral da Comunidade de Santo Egídio, em seu excelente livro Christ ou Hitler? Vie du bienheureux Franz Jägerstätter [Cristo ou Hitler? Vida do beato Franz Jägerstätter] – e onde os bispos, não menos assustados, adotam uma posição ambígua.
Com efeito, se em 1933 o episcopado diz que na Áustria o nacional-socialismo é “inconciliável com a consciência católica”, o vento muda de direção depois do Anschluss. Às vésperas do Domingo de Ramos, dia do referendo sobre a anexação, os bispos austríacos, que esperam chegar a um acordo com os nazistas para garantir a liberdade da Igreja, declaram que “graças à ação do nacional-socialismo, o perigo do bolchevismo sem Deus, que destrói tudo, foi evitado”. Os bispos dizem que querem “acompanhar esta obra com as melhores bênçãos para o futuro e exortam os fiéis nesse sentido”.
No Vaticano, há perplexidade com essas palavras. Os efeitos não são menos desastrosos para o povo católico local. Cesare G. Zucconi relata o testemunho do reitor do seminário diocesano de Innsbruck sobre o movimento de massa que se seguiu à leitura desta declaração do púlpito: “Um número significativo de fiéis deixou a Igreja em sinal de protesto. Alguns, inclusive homens, choraram. Um homem simples do povo me disse que os mártires, entre os bispos, não existem, caso contrário não teriam assinado esta declaração”.
Franz Jägerstätter fica arrasado com essa sucessão de eventos. Para ele, a Igreja Católica deixou-se “aprisionar”, assim como um “não” sonoro não virá limpar esse “sim” de humilhação, “não haverá Sábado Santo”. Se ele compreende o medo do clero e explica a atitude dos bispos pelo desejo de salvar os fiéis das represálias, está convencido de que este é um erro: “Eu penso que, do ponto de vista da verdadeira fé católica, nós não estaríamos em pior situação em nosso país, mesmo se só houvesse apenas uma igreja aberta e se milhares de pessoas tivessem oferecido seu sangue e suas vidas por Cristo e pela fé, em vez de assistir em silêncio a esse erro, que está se espalhando cada vez mais”.
Este “não” que ele já disse no referendo é o primeiro de muitos que o levará ao martírio. Sua musculatura espiritual é particularmente requerida durante o serviço militar, um tempo de “cruz”, privação e sofrimento psicológico que aproveita para pensar sobre a ideologia nacional-socialista. Cesare G. Zucconi diz que, sendo sua fé conhecida, Franz Jägerstätter é sistematicamente solicitado a ajudar na missa... Sua convicção de que o nazismo é profundamente anticristão se fortalece. Ele medita muito sobre o medo, esta energia tão poderosa nas mãos dos nazistas, que leva as pessoas a afogarem os gritos de sua própria consciência. “Se o medo não existisse, escreveu Franz Jägerstätter, haveria muitos santos neste mundo”. Ou ainda: “Seguir Cristo exige um espírito heroico; índoles fracas ou indecisas não são capazes de segui-Lo”. Os cristãos têm diante dos seus olhos um tesouro inestimável de onde tirar a força para resistir: a garantia do Reino, um além que dá a coragem de se comportar como um homem na terra. E para ele, a perspectiva de uma condenação eterna é incomparável com o pior dos castigos terrenos.
A partir de então, Franz Jägerstätter alimenta-se da Bíblia e das vidas dos santos. Gosta particularmente dos mais humildes, Bernadete Soubirous, a pastora de Lourdes, Teresa de Lisieux ou o Bruder (“irmão”) Conrad de Parzham, um capuchinho canonizado pelo Papa Pio XI, simples guardião do mosteiro, a mil milhas do super-homem nazista. Ele participou da sua canonização em 1934, assim como um menino de 7 anos vindo de uma aldeia vizinha com seu pai... o pequeno Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI. Ele também gosta de São Tomás Morus, mártir condenado à morte pelo Henrique VIII, perito entre a obediência à autoridade civil e a primazia de Deus. Ele o descobriu graças a um amigo, Rudolf Mayer, que lhe ofereceu sua biografia na época do serviço militar, e que nutre como ele uma grande estima por São Francisco de Assis, a ponto de integrar com ele a terceira ordem franciscana... De volta do serviço militar, amadureceu sua decisão de se tornar um objetor de consciência, enquanto sua vida se divide entre as tarefas agrícolas, a correspondência com o amigo Rudolf, enviado para a frente russa, a missa diária – ele se tornou sacristão na sua igreja – e a escrita de um catecismo para as suas três filhas, uma vez que os nazistas proibiram o acesso das crianças menores de 10 anos ao catecismo.
Quando a convocação para lutar pelo Terceiro Reich chega numa manhã de fevereiro de 1943, ele está pronto. Pronto para dizer “não”, sabendo que é a assinatura da sua sentença de morte. Com lucidez, escreve: “Assim como Cristo quer de nós uma declaração aberta de nossa fé, Adolf Hitler reivindica isso de seus seguidores”. “O cristão se depara com uma escolha radical: Cristo ou Satanás? Soldado de Cristo ou soldado de Hitler?, analisa Cesare G. Zucconi. Não podemos alimentar a ilusão de conseguir seguir Hitler de longe, mantendo-nos livres de seu plano de morte”. Este é o ponto de inflexão: a profunda consciência de que todos são responsáveis, em uma época em que o nazismo prospera sobre a desresponsabilização dos indivíduos, pequenos elos de um sistema. Portanto, ele persiste e assina sua decisão, apesar da incompreensão de sua família – apenas sua esposa o apoia –, da sua aldeia, de seus padres amigos, que tentam convencê-lo a desistir para ter sua vida salva. Ele mantém seu “não” até o fim, mesmo quando os juízes lhe oferecem a vida em troca de uma negação, no tribunal militar de Berlim. In extremis, o capelão da prisão consegue convencê-lo a se voluntariar para o serviço sanitário, que consiste em cuidar dos feridos e não precisa pegar em armas, mas seu pedido é recusado.
Sem buscá-lo, o martírio se impôs a ele como o único caminho digno possível. Enquanto esperava sua execução, ele reza em sua cela, que decorou com uma imagem de Maria rodeada por pequenas violetas que uma de suas filhas conseguiu lhe enviar. Com as mãos algemadas, escreve um dos seus últimos textos: “Se alguém se consagrasse com a mesma solicitude com a qual tentava me salvar da morte terrena para alertar cada homem contra o pecado mortal – e, portanto, a morte eterna – haveria o paraíso na terra”. Franz Jägerstätter foi decapitado em 9 de agosto de 1943 na prisão de Brandemburgo. Nesse dia, relata Cesare G. Zucconi, ele é o primeiro dos 16 homens executados, entre os quais se encontravam sete objetores de consciência: Franz e seis testemunhas de Jeová. É esse magnífico objetor de consciência, esse camponês de mãos calejadas e ideias claras, que falou de um “sacerdócio laico” 20 anos antes do Vaticano II, que a Igreja beatificou no dia 26 de outubro de 2007. Isso foi realizado por decreto de Bento XVI, em Linz, onde Hitler estudara e planejava construir um gigantesco museu nazista, o Fürhermuseum.
Malick, alternadamente, fascinou (A Árvore da Vida) e desapontou (Amor Pleno). Seu estilo, que às vezes ameaçava ficar vazio, encontra aqui um ponto de equilíbrio próximo da graça para relatar o destino de Franz Jägerstätter (interpretado por August Diehl), que se levantou contra o nazismo, sozinho, obstinado, reto, guiado por sua fé e sua consciência: impossível escapar do que ele acreditava ser justo. Terrence Malick eleva esse modesto camponês austríaco à posição de figura crística. Seu caminho de cruz, cantado pela voz off – que nos abre para os pensamentos de Franz – e por imagens de uma beleza estonteante, é um poema luminoso e uma meditação espiritual. Apesar da tragédia, Uma vida oculta irradia o amor que une Franz e sua esposa Fani (Valerie Pachner). Amor que encontra um cenário perfeito em uma natureza majestosa, fonte de apaziguamento e promessa de renascimento. La Vie adora: apaixonadamente (Frédéric Theobald).
Apresentado no Festival de Cannes 2019, Uma vida oculta ganhou o Prêmio do Júri Ecumênico. Xavier Accart, que representou a Federação das Mídias Católicas, fala sobre essa escolha.
A estreia de Uma vida oculta, de Terrence Malick, no domingo, 19 de maio, foi para o nosso júri ecumênico um dos destaques da última edição do Festival de Cannes. O diretor mais secreto de Hollywood havia decepcionado os críticos desde que ganhou o prêmio de ouro por A Árvore da Vida, em 2011. Seu novo filme foi, portanto, aguardado com ceticismo e curiosidade. No final da exibição no grande teatro Lumière, foi uma interminável standing ovation. Valerie Pachner, a atriz principal, estava em lágrimas. O diretor do festival, Thierry Frémaux, tinha anunciado que, se Terrence Malick não subisse a escada, isso não significava necessariamente que estava ausente. Mas, coisa rara, durante esse momento de emoção, o diretor apareceu para saudar o público. De manhã, ele foi visto discretamente no meio da assembleia da missa celebrada na presença do Júri Ecumênico que se reúne em Cannes desde 1974 e cujos anos revelaram a qualidade do julgamento.
Nós, católicos, protestantes e ortodoxos que o integramos, ficamos profundamente comovidos com esta obra de alta qualidade cinematográfica, abordando uma questão importante de nosso tempo: a objeção de consciência. Como escreveu o nosso presidente Roland Kauffmann: “Por essa escolha, o júri ecumênico queria destacar um ‘herói comum’, à maneira que o teólogo americano Ralph Waldo Emerson falou do ‘sublime comum’ para evocar a maneira que Deus tem de se manifestar nas coisas mais simples da existência. (...) Terrence Malick não faz um filme de tese, afirmando uma verdade incontestável. Seus heróis, Franz e Fani, não são blocos de certeza, mas de carne e de sangue. Fazendo simplesmente o que eles acham certo, sem nunca culpar aqueles que os mantêm em seu poder, eles alcançam a liberdade, apesar das grades, dos golpes, das ameaças e do ódio, sem jamais se deixar tocar pelo ódio para revidar” (Xavier Accart, diretor de Prier).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Franz Jägerstätter, um magnífico objetor de consciência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU