09 Novembro 2019
"O estabelecimento de uma perspectiva decolonial em relação às questões de gênero deve ser intrínseco a qualquer formação antropológica e acadêmica em geral, e principalmente de Nossa América, sendo especialmente sensível às dificuldades que os grupos subalternos enfrentam constantemente diante de um sistema capitalista, opressor e excludente", escreve Ivel Urbina, antropóloga pesquisadora do Museu Antropológico “Francisco Tamayo Yépez, em artigo publicado por ALAI, 05-11-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A antropologia, como uma disciplina acadêmica-científica, se interessou historicamente pelo estudo e a interpretação dos Outros não-ocidentais, particularmente, das culturas indígenas e/ou africanas. Não obstante, paulatinamente, se preocupou em pesquisar as sociedades as quais pertencem, isso é, as Ocidentais e as repercussões de umas sobre as outras.
Na Venezuela, desde a antropologia, houve certo desapego das novas gerações em processo de formação na temática indígena, sobretudo nas últimas décadas, ainda em plena consciência que esses povos são altamente afetados pelas relações de subordinação, nas quais se desenvolvem frente à globalização e o sistema capitalista mundial.
Os movimentos feministas no Ocidente surgiram nos anos 1970, nos quais se lutou pelos direitos e a visibilidade das “mulheres” dentro dessas sociedades estruturalmente masculinizadas. Essa revolta foi realizada fundamentalmente por grupos de mulheres com características e interesses comuns, em outras palavras, mulheres brancas, classe média, donas de casa, etc. os quais se manifestaram publicamente posto que, consideravam que se encontravam em uma posição de inferioridade frente aos homens, porque suas vidas transcorriam em torno do trabalho doméstico e muitas não podia acessar a outros espaços públicos [1].
Por isso começaram a se rebelar contra as normas repressivas e excludentes para elas, conseguindo se inserir em múltiplos espaços de ordem pública, onde pudessem falar e sobretudo, ser escutadas.
Não obstante, o feminismo constituído por essas mulheres não pretendeu uma igualdade para todas as demais, isso é – consciente ou inconscientemente – foram excluindo uma quantidade de mulheres que não se encaixam dentro de suas referências e agendas de luta, veja-se, as lésbicas, indígenas, negras, entre outras.
Posto que conceberam a “mulher” (no singular) como uma categoria universal, na qual, todas compartilhamos as mesmas problemáticas, lutas e consequentemente soluções. Não obstante, isso não é assim simples, posto que, como se mencionou, existem uma grande diversidade de mulheres e logicamente, não priorizamos as mesmas reivindicações. Isso dependerá não somente de nosso gênero, mas também de nossa posição econômica, ascendência étnica e/ou racial, religiosa, etc.
West e Fenstermaker [2], apontam: “O termo ‘mulher’ funciona na realidade como um poderoso falso genérico no pensamento das feministas brancas”. Por isso, acertam em expor, que uma das razões das quais o feminismo não pode dar resposta a todas as mudanças que se deram nas sociedades atuais: a globalização e o sistema mundo capitalista, é pelo valor – quase cego – que concedem à categoria de gênero, sem se preocupar em uni-la a outros conceitos, os quais também integram as identidades individuais e coletivas em qualquer sociedade.
Particularmente, as mulheres indígenas, vivem múltiplos tipos de discriminação não somente pela sua origem étnica, mas sim, além, pelo seu gênero, tanto dentro como fora de sua comunidade.
Um exemplo dessa complexidade são as mulheres indígenas, as quais vem de uma cultura distinta da Ocidental, portanto tem uma visão de mundo e de gênero particulares da cosmovisão de cada cultura, porém ao estarem os povos indígenas dentro dos Estados-nação, tiveram que se integram paulatinamente a essas sociedades para sobreviver, ainda que constantemente lutando para conservar e manter suas identidades e culturas.
Essas não estão isentos de discriminações sexistas, tanto dentro quanto fora de sua cultura de origem, porém, evidentemente, não nas mesmas condições que as mulheres criollas. Por esse motivo, também se encontraram discrepâncias com as agendas do feminismo clássico (as quais comumente consideram que devem “salvá-las”) vendo-se na necessidade de se organizarem entre elas, para poder lutar por seus próprios direitos.
A partir dessas reflexões surgiram múltiplos movimentos feministas que não se sentem identificados com o primeiro antes exposto, e militam para seus próprios interesses e problemáticas, em ocasiões, até rebatendo aquelas.
Nesse cenário, aparece o feminismo decolonial, o qual: “se proclama revisionista da teoria e da proposta política do feminismo dado que considera seu viés ocidental, branco e burguês” [3].
Buscam observar a problemática por múltiplas perspectivas, tanto as clássicas como as propostas marginais e subalternas, para questionar e modificar as abordagens universalistas dentro desse movimento.
Mesmo assim, questionou se o “racismo de gênero” intrínseco à mesma categoria, por ser concebida desde a academia ocidental para entender sua própria realidade social, portanto construído por meio de uma lógica heterossexista, binária e dicotômica. “Uma impossibilidade da teoria feminista de reconhecer seu lugar de enunciação privilegiada dentro da matriz moderna colonial de gênero” [3].
Da mesma forma, observa-se o pouco tratamento relevante ou invisível dado às diferenças entre as mulheres, independentemente das diferentes opressões sofridas por elas como se fossem de uma ordem diferente e focando nos conflitos que, para eles, são os mais importantes . Desvincular o "gênero" de outras perspectivas e realidades.
Do ponto de vista antropológico, isso é de vital importância, pois sabemos melhor do que qualquer outra ciência social, o grau de relevância da diversidade cultural para a solução de problemas de qualquer espécie e mais quando nos referimos a sociedades não ocidentais.
No trabalho constante dessa ciência, os estudos de gênero foram redimensionados, devido à interação perpétua com povos indígenas e/ou afrodescendentes com cosmologias diferentes das nossas. Tudo isso demonstra que não podemos ser governados por uma única perspectiva quando os problemas relacionados ao gênero têm um amplo espectro de possibilidades e realizações.
Portanto, estabelecimento de uma perspectiva decolonial em relação às questões de gênero deve ser intrínseco a qualquer formação antropológica e acadêmica em geral, e principalmente de Nossa América, sendo especialmente sensível às dificuldades que os grupos subalternos enfrentam constantemente diante de um sistema capitalista, opressor e excludente.
[1] Hooks, Bell. (2004). “Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista”. En: Las otras inapropiadas. Madrid: Traficante de sueños. (Pp.33-50)
[2] West, C. e Fenstermaker, S. (2010). “Haciendo la diferencia”. (p.174). En: Estudiar el racismo textos y herramientas. Documento de trabajo N°8. México: Proyecto Afrodesc/Eurescl
{3] Espinosa-Miñoso, Y. (2014). “Critica descolonial a la epistemología feminista crítica”. El cotidiano. N° 184. (P10)
[4] Aixelá Cabré, Y. (2005). Género y Antropología social. España: Editorial Doble J.
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A descolonização do gênero. Uma perspectiva antropológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU