Nancy Fraser se mostra muito contundente contra o feminismo liberal de mulheres como Hillary Clinton que só buscam escalar posições dentro das empresas. Frente a este feminismo das privilegiadas, Fraser aponta a urgência de se criar um feminismo que esteja ao lado da maioria das mulheres: trabalhadoras, migrantes, lésbicas e trans, e de seus problemas, que têm mais a ver com o racismo institucional que suportam e com a exploração que vivem dentro de seus trabalhos e de suas casas, onde assumem a maior parte dos cuidados. É justamente sobre isso que fala Feminismo para os 99%: um manifesto [Boitempo], assinado junto com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya.
Essa professora de Filosofia na New School de Nova York, recentemente, esteve em Madri em uma visita coordenada pelo Grupo de Estudos Críticos, e conversou com Viento Sur sobre este feminismo para a maioria e sobre o ataque que o neoliberalismo está perpetrando contra aspectos vitais tão importantes como a formação das crianças, o cuidado com nossos idosos, a saúde, a educação e a moradia.
A entrevista é de Rebeca Martínez, publicada por Viento Sur, 06-08-2019. A tradução é do Cepat.
Sobre o manifesto Feminismo para os 99% que assinou junto com outras mulheres, o que é e por qual razão é lançado agora?
É um ensaio curto que pretendíamos que fosse popular e lido facilmente. Não é um texto acadêmico, tem a forma de um manifesto. Eu o escrevi junto com outras duas pensadoras feministas: uma é a italiana Cinzia Arruzza, que agora vive em Nova York, e a outra é Tithi Bhattacharya, que é indiana e leciona nos Estados Unidos.
Esta foi a primeira vez, desde que comecei meu ativismo nos anos 1960/1970, que escrevi um ensaio como este, de autêntica agitação política, tendo em conta que sou professora de Filosofia. No entanto, os tempos agora são tão duros, a crise da sociedade e da política é tão severa, que senti que tinha que dar o salto e escrever para uma audiência mais ampla.
O manifesto é uma tentativa de articular uma nova via para o movimento feminista, que durante as duas últimas décadas foi dominado pelo feminismo corporativo e liberal, representado por Hilary Clinton nos Estados Unidos. Este é o feminismo de mulheres profissionais e de direção, de mulheres relativamente privilegiadas, em sua maioria brancas, com formação e de classe média ou média-alta, que tentam enfiar cabeça no mundo dos negócios ou nos meios de comunicação. Com este projeto, basicamente, o que pretendem é subir na hierarquia das empresas para ser tratadas da mesma forma que os homens de sua mesma classe e ter o mesmo salário e o mesmo prestígio.
Este não é um feminismo igualitário, é um feminismo que não tem muito a oferecer para uma vasta maioria de mulheres que são pobres ou de classe trabalhadora e que não têm esses privilégios: mulheres imigrantes, mulheres trans... Este feminismo do 1%, ou no máximo dos 10%, manchou o nome do feminismo, associando-o à liderança, ao individualismo e à vida empresarial. Deu ao feminismo um nome errado e o associou ao neoliberalismo, financeirização e globalização, com políticas que vão contra a classe trabalhadora.
Nós três queríamos propor uma alternativa a isto, e não estamos sozinhas, porque há outras feministas de esquerda que também tentaram fazer isso. E, com efeito, a alternativa está emergindo com as enormes marchas e manifestações do dia 8 de março, que têm um caráter anticapitalista e antissistêmico, que protestam contra a austeridade e o assalto à reprodução social.
Pensamos que era um bom momento para dar o salto e tentar criar um feminismo que seja realmente antissistema, anticapitalista e que se referencie nas mulheres da classe trabalhadora e pobres para melhorar suas vidas. O interessante é que é um movimento que deve se centrar em temáticas tradicionais, como o direito ao aborto e outros, que sem dúvida são fundamentais, mas que também precisa pensar além, na grande crise da sociedade, para articular políticas e programas que beneficiem todo mundo. Por isso, o feminismo para os 99% não significa só os 99% das mulheres, significa os 99% dos seres humanos sobre o planeta. Esta é a ideia geral do manifesto.
Desde 2017, foram organizados três protestos feministas internacionais em muitos países, inclusive na Espanha. E não só isso. Aqui, os protestos trabalhistas dos últimos anos foram protagonizados sobretudo por mulheres: as trabalhadoras do lar, as faxineiras de hotéis, de casas de idosos, entre outras. Estamos diante de uma nova onda feminista? Se sim, responde a qual momento do capitalismo neoliberal?
Acredito que sim, estamos diante de uma nova onda ou que ao menos há potencial para que assim seja, caso façamos uma ruptura real com este feminismo liberal corporativo.
O neoliberalismo perpetrou um assalto brutal contra o que chamamos de reprodução social, contra todas as atividades destinadas à manutenção e reprodução de pessoas: a formação das crianças, a educação, o cuidado com os mais velhos, coisas como a educação pública, a saúde, o transporte, as aposentadorias e a moradia. Porque tudo isto faz parte da reprodução social e não somente o cuidado com as crianças, os velhos e outras atividades realizadas dentro do lar.
O neoliberalismo esmagou tudo isto. Hoje em dia, as mulheres têm que estar em tempo integral no trabalho assalariado, em um momento no qual o Estado precisa cortar em gasto social, como parte de sua política de austeridade e de financeirização. Sendo assim, por um lado, temos o corte no fornecimento público destas áreas e, por outro, a insistência em que as mulheres dediquem seu tempo para produzir lucros para o capital. Isto significa que há uma autêntica crise dos cuidados ou crise da reprodução social e é justamente o que está levando aos protestos que você mencionava.
Na crise dos anos 1930, o centro das revoltas ativistas era o trabalho industrial: as lutas pela sindicalização, pelos direitos trabalhistas, etc. Hoje, a situação é outra. Em parte, devido à desindustrialização e a relocalização da produção no sul global. Agora o centro é a reprodução social.
Antes, você mencionou protestos de mulheres muito significativos, aos quais eu acrescentaria a greve das professoras nos Estados Unidos. As professoras têm salários tão baixos que muitas delas precisam realizar outros trabalhos à tarde para poder manter a si mesmas e suas famílias. Estas mulheres protestam não somente para conseguir melhores salários, também pedem mais recursos para a educação, para melhorar as escolas e estão tendo muito apoio. São exemplos que colocam a esfera da reprodução social como um eixo amplo de luta. E, pelo que sei, as enormes manifestações do 8M na Espanha também protestam pelos cortes em todas estas áreas.
Diria que hoje em dia as lutas pela reprodução social são a vanguarda da esquerda anticapitalista e antissistema. As mulheres estão à frente e isso significa fazer parte da centralidade, de uma nova forma de pensar o que é a política feminista.
Sobre as lutas pela reprodução social, como se relacionam com a luta de classes, o movimento antirracista e o LGBTIQ?
Primeiro de tudo, acredito que temos que repensar o que entendemos por luta de classes. Essa imagem dos anos 1930 dos operários industriais organizados em sindicatos é uma parte do que é a luta de classes, mas diria que a luta pela reprodução social também é luta de classes, porque não há produção, nem trabalho industrial, se você não tem alguém que realize a tarefa de produzir os trabalhadores e de repô-los, que cuide da próxima geração que lhes irá substituir. Por isso, a reprodução social é central para a produção capitalista e a tarefa que todas essas pessoas produzem e que constitui sua sociabilidade supõe muito trabalho, tanto como o trabalho nas fábricas.
O que constitui uma classe não é somente a relação da produção na fábrica, também a relação da reprodução social que produz as e os trabalhadores. Tudo isto é parte da luta de classes. A ideia da luta de classes no passado era bastante estreita. Não acredito que o feminismo para os 99% seja uma alternativa à luta de classes, não acredito que esteja em competição com a luta de classes, acredito que constitui outra frente na luta de classes, que deveria se aliar ao movimento operário mais clássico e também ser um aliado do que você mencionou, da luta antirracista, a luta pelos direitos das pessoas migrantes, e a luta pelos direitos das pessoas LGBTIQ.
A conexão com a raça e a etnicidade é muito forte, porque o que ocorre agora é que temos uma nova divisão de classe racializada entre as mulheres. As mulheres empresárias, de classe média-alta e com formação, lutam para superar a discriminação e subir para os postos mais elevados. Para poderem trabalhar 60 horas por semana, em trabalhos que exigem muito, contratam mulheres geralmente imigrantes e muito mal remuneradas, para que realizem o trabalho de cuidados: cuidado com as crianças, a limpeza da casa, a cozinha, o cuidado com os seus pais dependentes e outros.
Estas mulheres do chamado feminismo liberal se apoiam em todo este trabalho das mulheres racializadas, que são as mulheres mais vulneráveis porque não possuem direitos trabalhistas, recebem muito pouco e estão expostas a agressões e abusos.
Por tudo isto, precisamos colocar no centro do feminismo a dimensão de classe e raça. O feminismo para os 99% tem que ser um movimento antirracista, tem que fazer suas as problemáticas das mulheres pobres e racializadas, que são a maioria das mulheres, e colocar suas necessidades à frente, não as necessidades das empresárias e suas demandas para quebrar o teto de vidro. E isto também funciona assim para a luta LGBTIQ.
Aqui, também acontece algo interessante, porque eu diria que neste movimento [LGBTIQ] também há uma ala liberal que é hegemônica e um setor mais amplo de pessoas cujas necessidades e problemas são marginalizados. Há uma luta similar no seio do movimento LGBTIQ e gostaria que o nosso feminismo para os 99% também falasse pelas mulheres trans, queer e lésbicas, que o movimento LGBTIQ para os 99% fosse o aliado natural do feminismo para os 99%.
Falamos das lutas pela reprodução social, que podem constituir um bloco contra as dinâmicas do neoliberalismo, mas o que há das relações patriarcais? Podemos combater as violências machistas a partir da luta pela reprodução?
É uma boa pergunta. Gostaria de começar fazendo uma menção ao movimento #MeToo. Como você sabe, a ideia mais difundida do que é este movimento se centra em Hollywood, em atrizes muito bem pagas e em artistas que têm visibilidade nos meios de comunicação. Mas, o setor composto por mulheres muito menos privilegiadas é mais vulnerável às agressões sexuais e ao assédio no trabalho.
Pensemos, por exemplo, nas diaristas. Muitas delas não têm nem documentos, e, ao ter menos poder e recursos, são muito mais vulneráveis às demandas dos chefes. E o mesmo acontece com as trabalhadoras de hotéis. Por exemplo, recordemos o caso de Dominique Strauss-Khan ou daquelas que trabalham limpando casas particulares, as trabalhadoras domésticas, que muitas vezes são vítimas de agressões sexuais.
O movimento #MeToo, se o pensamos de uma maneira mais ampla, é uma luta operária. É a luta por um ambiente de trabalho seguro, onde não seja possível você ser vítima de abusos. O fato de os meios de comunicação se centrar apenas nos casos de pessoas conhecidas, infelizmente, faz com que não pareça uma luta de classes, mas, na realidade, trata-se de outra forma de luta de classes.
A questão da reprodução social tem muito o que fazer para mudar a relação entre a produção e a reprodução e, portanto, para mudar o equilíbrio do poder dentro das casas. O trabalho da reprodução social não deveria ser de um gênero, ser uma coisa só de mulheres. É um trabalho importante para toda a sociedade, inclusive, alguns aspectos do mesmo são prazerosos e criativos. Os homens também deveriam ter acesso a ele, sentir a responsabilidade de fazer a parte que lhe corresponde. Isto depende da mudança na dinâmica dentro dos lares e, é claro, o feminismo para os 99% é contra todo tipo de violência: contra as mulheres, contra as pessoas trans, contra as pessoas não cis e contra as racializadas.
Patriarcado é um conceito que, pessoalmente, não gosto de utilizar porque sugere uma imagem do poder diádica: existe o senhor e existe seus serventes submetidos. Algo disso ainda existe, sem dúvida alguma, mas, hoje em dia, a forma central do poder em nossa sociedade opera de uma maneira mais impessoal, mais estrutural, o que restringe as opções para as pessoas pobres e trabalhadoras.
Acredito que é importante ter uma imagem do poder diferente, que vem dos bancos, do FMI, das organizações das finanças e a indústria, por meio da construção do mercado de trabalho, o mercado de trabalho por gênero, racializado. Isto é o que determina quem tem acesso aos recursos e pode reivindicar suas demandas, quem pode funcionar como igual, inclusive dentro das famílias e nas relações pessoais.
Quando em seus trabalhos fala de justiça social, distingue três níveis: o econômico (redistribuição), o cultural (reconhecimento) e o político (representação). Até que ponto estão os três estão presentes no novo ciclo de manifestações feministas?
Acredito que há uma preocupação com todos estes aspectos e que estão estreitamente relacionados. Você não pode mudar a esfera econômica, redistribuir as relações de produção, se não muda essas outras coisas que estão interconectadas. O que importa no âmbito político é muitas vezes definido em termos do que importa no âmbito econômico, ainda que as forças capitalistas insistam em que aquilo que acontece no ambiente de trabalho deve ser decidido pelo mercado e pelos chefes, como se isso não fosse uma questão política e de democracia.
Há todo um debate sobre onde está a linha que separa aquilo que o mercado e as forças privadas do capitalismo decidem e aquilo que nós, uma maioria democrática, decidimos. E tudo isto tem muito a ver com a cultura, com as linguagens que estão a nossa disposição e que nos ajudam a entender a situação.
Temos conceitos como o de assédio sexual, o de degradar, temos a terminologia para dizer o que está ruim na sociedade, e isto tem a ver com a forma como traduzimos a própria experiência para expressar uma demanda. O feminismo enfrentou um grande desafio e criou uma linguagem nova que muda a cultura, que muda a concepção que as pessoas possuem sobre seus direitos, sobre o que não são obrigadas a suportar, o que está ruim, aquilo pelo qual podem protestar. Isto amplia a esfera do discurso político, a esfera do que são decisões democráticas e não privadas da família ou da empresa. Hoje em dia, estamos avançando muito no âmbito cultural e isto repercute em uma mudança institucional nas duas esferas: política e econômica. Mas, sempre está relacionado à inter-relação entre estes três níveis.
Muitas vezes, destacou que o neoliberalismo se apropriou do potencial crítico e das demandas da segunda onda do feminismo e os incorporou em seu próprio benefício. Isso pode acontecer mais uma vez com esta incipiente onda? É possível evitar de alguma maneira?
Acredito que o feminismo liberal, junto ao antirracismo liberal, ao movimento LGBTIQ liberal e ao que chamamos capitalismo verde, todos estes movimentos que foram hegemônicos, foram incorporados ao bloco hegemônico de poder que nos Estados Unidos constituiu o neoliberalismo progressista. Estes movimentos emprestaram seu carisma e sua ideologia para criar a ilusão de que esta política horrível da financeirização, da precarização do trabalho, da redução de salários, etc., poderia ser progressista, pró-gay, pró-mulheres e tudo mais.
Isto aconteceu assim e por isso é muito importante que a nova onda feminista rompa com esse tipo de feminismo e abra um novo caminho. Sempre é possível ser hegemonizado e apropriado por forças que são mais poderosas. Sempre existe essa possibilidade e é importante que os movimentos emancipatórios estejam em alerta.
Hoje em dia, disseram-nos que temos duas opções para escolher: o populismo autoritário de direita, que é racista, xenófobo e muito desagradável, ou voltar à proteção liberal, ao neoliberalismo progressista, que pode ser antirracista e tudo mais. Contudo, esta é uma falsa escolha. Precisamos rejeitar as duas opções, não só o populismo racista e supremacista, também o neoliberalismo progressista. Vivemos um momento de crise monumental, no qual temos a oportunidade de tomar um novo caminho para criar um movimento antissistema para os 99%, em que o feminismo para os 99% esteja conectado com os outros movimentos para os 99%: o operário, o que luta pelo clima, o das e dos migrantes, etc.
Para encerrar, uma pergunta mais teórica. Em suas obras, aponta que o Estado-nação (o que se conhece como marco westfaliano-keynesiano) entrou em crise com o neoliberalismo e que suas fronteiras são agora mais difusas, menos claras. Você chama a este processo de política do desmarcar. Mas, qual é o papel do Estado-nação agora? Podemos dizer que desapareceu por completo?
Não, não desapareceu. Historicamente, o Estado-nação foi a principal força que forneceu algum nível de proteção e segurança às pessoas trabalhadoras frente ao capital, e o Estado-nação ainda continua sendo o principal destinatário das demandas. Quando queremos proteção ou apoio social, a quem pedimos? Pedimos a nossos governos que se responsabilizem. Entendemos que a política ainda está organizada sobre as bases da nação, por isso as campanhas eleitorais são nacionais, as principais atividades políticas acontecem em escala nacional. Mas, em última instância, isto não é totalmente correto e podemos ver isso quando atendemos a imigração, que é um enorme ponto de conflito e crise.
Há pessoas do mundo todo que não têm um Estado que as proteja, que possa lhes dar algo do que nós pedimos a nosso Estado nos países desenvolvidos. Vivem nos campos de refugiados, são forçados a viver violência política e perseguições religiosas pelo fato de terem invadido seus países e destruído tudo, por crises climáticas, pelas características desta crise global que vivemos.
Essas pessoas vivem fugindo e o movimento populista de direita prega o nacionalismo e a exclusão. Qual é o slogan de Trump? Make America great again (Fazer com que a América volte a ser grande), como era antes que todas estas pessoas aparecessem e arruinassem nosso país. Essa é a ideologia deste populismo e suponho que deve acontecer o mesmo com alguns partidos aqui também. Precisamos pensar de uma maneira mais transnacional e global a forma como podemos garantir direitos sociais para todas as pessoas do mundo, para que ninguém tenha que entrar em um bote e arriscar sua vida para buscar uma oportunidade em outra parte do planeta.