01 Novembro 2019
"Newman sustenta que doutrinas são, em sentido real, ideias, e as ideias se desenvolvem e se esclarecem com o passar do tempo e dentro de contextos particulares".
O artigo é de Daniel P. Horan, publicado por National Catholic Reporter, 30-10-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Daniel P. Horan é um frade franciscano e professor assistente de teologia sistemática e espiritualidade na Catholic Theological Union, em Chicago. O seu mais recente livro intitula-se “Catholicity and Emerging Personhood: A Contemporary Theological Anthropology” (Catolicidade e pessoalidade emergente: uma antropologia teológica contemporânea, em tradução livre).
A notícia da aprovação do documento final do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazônica foi recebida diferentemente por diferentes grupos. Como já esperado, alguns foram às redes sociais para condenar a afirmação majoritária de mais de dois terços dos padres sinodais relativa a, pelo menos, três propostas centrais: a ordenação de indígenas casados para o sacerdócio ministerial a fim de servir em áreas remotas da Amazônia, a exploração renovada da admissão de mulheres ao diaconato e o convite para melhor inculturar a liturgia católica no contexto da Amazônia naquilo que foi proposto como um “rito amazônico”.
Mas acredito que há pelo menos um autor que teria ficado profundamente feliz de ver estes temas discutidos e as propostas levantadas, assistindo onde quer que ele esteja. Esta pessoa é São John Henry Newman.
Um dos mais novos santos da Igreja, o fato de Newman ter sido canonizado durante o sínodo amazônico foi apenas uma coincidência. Seja por conta da providência divina, seja por planejamento humano estratégico, há, no entanto, uma boa razão para acreditar que o acréscimo de Newman ao cânone católico neste exato momento simboliza um estatuto, ainda inaudito, de padroeiro que assim eu gostaria de nomear: John Henry Newman, o Santo Padroeiro do Sínodo da Amazônia!
Essa declaração pode bem surpreender alguns admiradores conservadores de Newman como uma declaração inesperada ou mesmo absurda. No entanto, permanece o fato de que o corpus teológico de Newman prescientemente estabelece uma base para o tipo de discussão e desenvolvimento da teologia e da disciplina católicas visto como o mais contencioso nos últimos meses. Em particular, penso em seus tratados “Ensaio desenvolvimento doutrina cristã” (1878) e “Consulta aos fiéis em matéria de doutrina” (1859).
O Instrumentum Laboris do sínodo, os debates que ocorreram na sala sinodal este mês e as reportagens sobre os conteúdos do documento final, todos refletem as ideias e conclusões sustentadas pelas contribuições teológicas de Newman.
Em primeiro lugar, temos a questão do celibato clerical obrigatório nos países ocidentais latinos. Precisamos lembrar o fato de que existem 23 igrejas católicas orientais em plena comunhão com a Igreja Católica de Roma que não exigem o celibato clerical como condição para a ordenação ao sacerdócio ministerial (embora os bispos sejam normalmente escolhidos entre os padres não casados). Além disso, desde que o Papa João Paulo II e, depois, o Papa Bento XVI começaram a aceitar que fiéis casados – convertidos a partir da Comunhão Anglicana e de igrejas luteranas – participem do sacerdócio ministerial católico, temos padres casados mesmo na Igreja de Roma, ainda que como exceção, não como regra.
Alguns têm se irritado de maneira desproporcional com uma mudança potencial nesta disciplina católica que já dura séculos. Como um destacado canonista corretamente observou: estamos diante de uma mudança relativamente fácil de ser feita. Do ponto de vista técnico-teológico, uma mudança na prática da obrigatoriedade do celibato clerical não é uma questão de mudar algo próximo do centro do magistério dogmático ou mesmo doutrinário da Igreja. E, no entanto, como explica Newman em sua obra, mesmo estas doutrinas que consideramos as mais essenciais da fé cristã passaram por séculos de mudança e desenvolvimento.
Em “Ensaio desenvolvimento doutrina cristã”, Newman apresenta exemplos, hoje clássicos, em que doutrinas centrais desenvolveram-se ao longo de grandes períodos na Igreja: a formação do cânone do Novo Testamento, a doutrina do pecado original, o entendimento da consubstancialidade de Jesus Cristo com o Pai, os desdobramentos cristológicos e mariológicos pós-nicenos, a prática do batismo de crianças e a primazia papal, entre outros casos.
Newman sustenta que doutrinas são, em sentido real, ideias, e as ideias se desenvolvem e se esclarecem com o passar do tempo e dentro de contextos particulares. A declaração da consubstancialidade de Jesus com o Pai no Concílio de Niceia foi articulada no termo grego homoousios. Isso não é acidental. A ideia desta doutrina foi expressa dentro de uma cultura, em um contexto, tempo e linguagem que, em si, refletem o discernimento da revelação divina coletivo da Igreja e como melhor compreender e articular aquilo em que acreditamos. Newman explica que às vezes a expressão ou a compreensão de uma doutrina ou prática irá se tornar pouco clara e precisará ser esclarecida por meio de mudanças.
Com o tempo, a ideia adentra um território estranho; pontos polêmicos alteram o seu rumo; partidos surgem e se desfazem em torno dela; perigos e esperanças aparecem em novas relações; e velhos princípios reaparecem sob novas formas. Ela se transforma com estas coisas para permanecer a mesma. Em um mundo superior, acontece o contrário, mas aqui embaixo viver é transformar-se, e ser perfeito é ter se transformado muitas vezes.
Se o desenvolvimento e o esclarecimento de doutrinas centrais à fé cristã são inevitáveis, então por que não seria o caso com a disciplina católica do celibato clerical obrigatório?
Parece-me que Newman ficaria feliz em ver que os padres sinodais levaram, de fato, a sério a obra do Espírito Santo, guiando continuamente a Igreja e convidando o Povo de Deus a uma mais ampla compreensão da fé que professamos, ao invés de fingir que inexistem situações urgentes merecedoras de uma maior investigação sobre as nossas práticas. As tristes circunstâncias pastorais identificadas na região amazônica exigem que se considere um desenvolvimento na disciplina da Igreja – é o tipo de situação contextual que Newman descreve ao longo dos séculos e que se antecipou nos tempos por vir.
Um outro ponto de resistência entre os críticos do Sínodo para a Amazônia é o recurso frequente às experiências dos povos indígenas e leigos em geral. Aqui Newman disse coisas difíceis de se ouvir, especialmente quando se trata de sua asserção segundo a qual, ao longo do curso da história cristã, não é incomum os bispos terem fracassado na salvaguarda da doutrina cristã autêntica, enquanto os leigos continuaram a preservar a tradição. Em seu “Consulta aos fiéis em matéria de doutrina”, Newman descreve alguns casos nesse sentido, apontando para o importante papel dos leigos na rejeição ulterior do arianismo no quarto século e depois. Ele faz uma defesa apaixonada do sensus fidelium, sustentando que, na expressão autêntica e no ensino da doutrina, não se podem negligenciar as consultas aos fiéis.
A mim, parece que Newman teria ficado extremamente satisfeito em ver que as preocupações levantadas no Sínodo para a Amazônia – não somente as questões relativas aos padres casados, diáconas, ou ritos melhor inculturados, mas também as outras questões pastorais e ecológicas identificadas – surgiram, em grande parte, devido à consulta dos bispos aos fiéis na preparação para (e durante) o encontro em Roma. Não tenho certeza do que Newman acharia sobre os pedidos justificáveis para que as religiosas e os leigos tenham não apenas o direito a voz como também a um voto igualitário no Sínodo dos Bispos, mas parece que, dados os seus argumentos sobre uma consulta mais ampla, pelo menos ele se mostraria aberto à ideia.
Por enquanto, só o Papa Francisco sabe o que será feito com as recomendações do sínodo contidas no documento final. O papel do Sínodo dos Bispos é consultivo, e a responsabilidade pela implementação (ou não) de algumas das sugestões recai sob a supervisão dele. Mas, enquanto isso, me parece que seria uma boa ideia invocar o novo santo padroeiro do sínodo amazônico e pedir por sua intercessão para que o Espírito Santo continue soprando vida nova para dentro da Igreja enquanto continuamos na caminhada em direção a uma maior compreensão, e vivência, da vossa fé.
São John Henry Newman, ora pro nobis!
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John Henry Newman, recentemente canonizado, aprovaria o documento final do Sínodo dos Bispos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU