07 Outubro 2019
"A nomeação de Aras e sua aprovação com o beneplácito do bolsonarismo e do lulismo, bem como sua “invisibilização” política, esclarece mais sobre a conjuntura política do Brasil contemporâneo do que mil posts e artigos de jornal sobre a liberdade de Lula ou a corrupção dos Bolsonaro", escreve Sílvio Pedrosa, professor da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, em artigo publicado por Uninomade, 04-10-2019.
Eis o artigo.
A dinâmica de luzes e sombras do debate público sobre a conjuntura política e institucional no Brasil é sempre muito reveladora. O que é destacado e o que é varrido para debaixo do tapete nas discussões e textões nos informa mais sobre as articulações de interesses que mil e uma manifestações de rua. Um caso que me parece emblemático desse fato é a nomeação do novo Procurador Geral da República, Augusto Aras, e o modo como sua nomeação e posterior aprovação pelo Senado foram escanteadas na discussão pública.
Em primeiro lugar, a nomeação de Aras tinha tudo para ser um fato político importante para a oposição pela simples razão de que sua indicação pelo governo Bolsonaro não obedeceu à tradição de seguir a lista tríplice dos mais votados entre os procuradores. Em segundo lugar, Aras subscreveu documentos que sinalizavam apoio à chamada “cura gay” e deu declarações classificando o golpe militar de 1964 como uma “célebre” revolução. Uma oportunidade e tanto para que a oposição se mobilizasse contra sua nomeação e aprovação pelo Senado. Isso não apenas não aconteceu como o partido que lidera a oposição com mão de ferro endossou sua nomeação.
Nesse ponto, assinalar alguns detalhes da biografia de Aras pode ser útil. Em 2013, ainda no primeiro governo Dilma, Aras deu jantar para lançar o livro de um quadro do PT baiano, o ex-deputado Emiliano José, sobre suas memórias da ditadura militar. Não faltaram petistas de alto coturno como Rui Falcão e José Dirceu e o próprio Aras chegou a fazer um discurso emocionado sobre o livro do seu amigo. Outro detalhe importante é que, segundo o próprio Bolsonaro, Aras lhe foi indicado por ninguém menos que Alberto Fraga, ex-deputado federal do Distrito Federal pelo DEM e mais conhecido do público por cumprir seu mandato enquanto cumpria pena em regime semiaberto, uma espécie de símbolo do sistema e da classe política brasileira que tanta ojeriza causam na sociedade e cuja existência significaram um dos motivos principais da eleição de Jair Bolsonaro.
Esses detalhes, entretanto, são menos importantes do que a agenda que o próprio Aras defendeu para conseguir sua indicação. E essa agenda é simplesmente o destravamento das obras de infraestrutura no Brasil. Segundo o agora Procurador Geral da República, há necessidade de “desburocratizar” os processos que entravam o desenvolvimento econômico. O que isso quer dizer? Primeiro que licenciamentos ambientais e outras restrições à grandes obras serão “contornadas” e, sub-repticiamente, que o “combate à corrupção” não vai mais atrapalhar a economia nacional. Além de ter prestado pouca atenção à nomeação de Aras, quando não a apoiado, nossa esquerda materialista (?) continuou com sua cantilena idealista, deixando esse “pequeno detalhe” da nomeação de um dos mais altos cargos da república passar.
A nomeação de Aras e sua aprovação com o beneplácito do bolsonarismo e do lulismo, bem como sua “invisibilização” política, esclarece mais sobre a conjuntura política do Brasil contemporâneo do que mil posts e artigos de jornal sobre a liberdade de Lula ou a corrupção dos Bolsonaro. A eloquência desse silêncio me lembrou de um diálogo muito citado, mas pouco compreendido, nos últimos anos. Nele, o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, dizia ao ex-senador Romero Jucá que era preciso fazer um grande acordo nacional. Segundo ele, era necessário fazer esse país voltar “à calma”. “Ninguém aguenta mais”, disse ele. Em 2019 finalmente o grande acordo saiu, sem nenhum alarde, textões e mobilizações nas ruas. Um compromisso histórico, tendo como fiadores o lulismo e o bolsonarismo, foi firmado para que Aras faça o demônio voltar para dentro da garrafa. Nada pessoal, apenas negócios.
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