29 Agosto 2019
“As políticas neoliberais aplicadas desde a era Thatcher-Reagan fazem o setor financeiro sujeitar os estados a uma dinâmica contínua de pagamento da dívida e estes renunciam às suas obrigações para com os cidadãos. Como consequência, os gastos sociais são reduzidos para pagar uma dívida que beneficia uma minoria privilegiada”, avalia o cientista político Eric Toussaint.
Eric Toussaint, historiador belga e doutor em Ciência Política pelas universidades de Liège e Paris VIII, é porta-voz do Comitê para a Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADI) e membro do Conselho Científico da ATTAC. Participou da cúpula alternativa de Irun e Hendaia.
A entrevista é de Arantxa Manterola, publicada por Gara e reproduzida por Rebelión, 28-08-2019. A tradução é do Cepat.
Você participou da mesa-redonda da contracúpula sobre a abolição da dívida ilegítima pública e privada. Por que ilegítima?
No caso de uma dívida pública, é definida assim a que é contraída em condições que não respeitam os interesses da população, e também quando favorece uma minoria privilegiada. Por exemplo, quando para salvar um banco privado que vai à falência por ter assumido riscos exagerados, lhe é dado dinheiro público.
Existem exemplos no mundo de dívidas que foram abolidas?
Claro. Na história moderna, digamos que, durante dois séculos e meio até hoje, há casos em que, como consequência da mobilização do cidadão, foram abolidas. A Convenção de 1792 proclamou a anulação de dois terços da dívida pública, argumentando que o povo francês não tinha que pagar pelas dívidas contraídas pela Monarquia.
Em 1919, o México anulou as dívidas reivindicadas por banqueiros franceses e outros que emprestaram dinheiro a regimes corruptos combatidos por regimes democráticos legais. Em 1837, os habitantes de quatro estados dos Estados Unidos (Arkansas, Flórida, Missouri e Michigan) se revoltaram contra seus respectivos governantes, que aumentaram os impostos para quitar dívidas importantes adquiridas com bancos que corrompiam homens políticos. Derrubaram esses governos e os novos governantes anularam a dívida.
Existem outros exemplos, como a Costa Rica. E muito mais de perto no tempo, o Equador revogou, em 2008, uma dívida que foi considerada ilegítima por uma comissão específica de auditores da qual participei. Aconteceu também, no mesmo ano, o caso da Islândia, que se recusou a pagar uma dívida reivindicada pela Grã-Bretanha e Holanda. Há vários exemplos ao longo da história, mas, sim, isso só acontece quando os cidadãos se rebelam e pressionam seus respectivos governantes.
Você disse que, ao menos a partir do século XIX, a dívida é uma arma de dominação política. E que também não afeta apenas os chamados países pobres, mas também os países desenvolvidos. Tornou-se uma espécie de novo colonialismo. Onde está a democracia em tudo isso?
O que acontece é que os credores conseguiram colocar os estados na engrenagem da dívida pública e, graças a isso, obtêm lucros permanentes. As políticas neoliberais aplicadas desde a era Thatcher-Reagan fazem o setor financeiro sujeitar os estados a uma dinâmica contínua de pagamento da dívida e estes renunciam às suas obrigações para com os cidadãos. Como consequência, os gastos sociais são reduzidos para pagar uma dívida que beneficia uma minoria privilegiada.
Então, quem tem realmente o poder? O FMI, o Banco Mundial ...?
As grandes sociedades financeiras e industriais, que estão totalmente ligadas entre si, ou seja, o grande capital para usar uma fórmula clássica. O FMI e o BM são organismos que estão a serviço desse grande capital e exercem enorme pressão sobre os governos. Agora, temos o caso da Argentina e da Grécia, que estão suportando a chantagem do FMI. E esses senhores do G7, que se reúnem em Biarritz, estão diretamente ligados ao FMI, que é uma espécie de gendarme de grandes multinacionais e grandes potências econômicas.
Em um momento em que o estado da esquerda em geral não é muito dinâmico e o fatalismo ganha eco entre os cidadãos impotentes contra esse estado de coisas, o que contribuem iniciativas como a contracúpula do G7?
É evidente que a situação na Europa e em outras áreas do mundo é complicada, mas não se deve baixar os braços. Devemos continuar avançando na conscientização e isso deve acarretar, por sua vez, mobilização, se quisermos mostrar sua força transformadora. É exatamente por isso que nos reunimos nesta reunião da contracúpula do G7, para contribuir no relançamento da mobilização.
O movimento altermundialista não tem a força do início dos anos 2000, mas há coletes amarelos, antes os indignados ... devemos lhes oferecer perspectivas. Hoje, o movimento altermundialista não tem a mesma força que no início dos anos 2000, mas é absolutamente necessário que seja reinventado para recuperar sua capacidade de convocação. Porque estamos vendo que existem mobilizações espontâneas, como os coletes amarelos, um pouco na mesma linha dos indignados, em 2011, na Espanha.
A questão é dar perspectiva a todos esses movimentos. As forças políticas de esquerda devem parar de decepcionar os cidadãos quando são colocados no governo. Por exemplo, uma grande decepção é percebida após a capitulação de Tsipras, em 2015, na Grécia. É necessário que essas forças cumpram suas promessas quando alcançam o governo e voltem a dar esperança às pessoas.
Você propõe a criação de novas instituições internacionais para lidar com essa situação. Que tipo de instituições?
A Europa deve ser refundada. A União Europeia é uma instituição antidemocrática e a serviço de interesses privados. Todos os tratados europeus visam principalmente satisfazer os interesses de uma minoria privilegiada: concorrência a qualquer preço, direito das multinacionais, austeridade permanente, redução dos gastos sociais ... Instituições como o FMI e o Banco Mundial não funcionam para o interesse geral. Portanto, novas instituições políticas são necessárias sobre outras bases e com organismos financeiros internacionais que substituam o FMI, o Banco Mundial, etc.
Embora pareça um pouco irônico, oficialmente esse G7 é uma cúpula contra as desigualdades. Sabe-se que as desigualdades são fonte de conflitos sociais e os conflitos não são benéficos para os interesses do capital. O que acha que farão essas grandes potências capitalistas para reduzir, dizem, as desigualdades?
Isso é pura retórica. Suas políticas e ações são absolutamente opostas. Desigualdades não se originam naturalmente, são o resultado das políticas desenvolvidas pelos governos que se encontram em Biarritz e por aqueles que os precederam. Isso é uma enorme hipocrisia. Esses chefes de Estado se reúnem regularmente e escolhem temas com a intenção de enganar a opinião pública internacional.
Dito isto, acho que neste momento não enganam mais ninguém. Pelo visto, seu grau de credibilidade é extremamente minguado. Trump, Boris Johnson, Salvini ... temos chefes de Estado que estão cada vez mais desacreditados porque abandonaram os princípios fundamentais do direito internacional. E estamos aqui para denunciá-los com firmeza e sem vacilo.
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“Os gastos sociais são reduzidos para pagar uma dívida que beneficia uma minoria privilegiada”. Entrevista com Eric Toussaint - Instituto Humanitas Unisinos - IHU