23 Julho 2019
A voz de Carlos Mejía Godoy, figura da canção nicaraguense e participante da Revolução Sandinista, se soma às vozes de protesto contra o regime de Ortega.
"Veja, Daniel. Desejo te perguntar: o que sente ao chegar novamente o 19 de julho, e te dar conta de que, quarenta anos depois daquela data gloriosa, retrocedemos à época das cavernas? Ou ainda segue acreditando, do cume do messianismo, que ainda podes colocar um respirador artificial a essa doença terminal que é a tua revolução?", escreve Carlos Mejía Godoy, em carta publicada por CPAL Social, 21-07-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Daniel: faz um ano, apareceste na televisão, falando de paz e amor. Nesse momento, sem que tremessem o pulso, teus sicários atacavam com armas letais os estudantes da UNAN, refugiados na igreja da Divina Misericórdia.
Reagi indignado e chamei Lucia Pineda da 100% Notícias para te enviar uma carta. Somente pedia que, em nome de Deus, parasse a matança contra meu povo desarmado. E, no desespero e na impotência, recordei uma conversa com teu pai, que por sua transcendência histórica marcou minha vida. Jamais acreditei que minha declaração teria eco, dentro e fora da Nicarágua. Tivesse querido ler essa carta, olhando aos teus olhos. Porém, os defensores dos direitos humanos me instaram a abandonar o pais o quanto antes. E, contra meu critério, como Antonio Machado, “com pouca bagagem tomei o caminho do exílio”.
Veja, Daniel. Desejo te perguntar: o que sente ao chegar novamente o 19 de julho, e te dar conta de que, quarenta anos depois daquela data gloriosa, retrocedemos à época das cavernas? Ou ainda segue acreditando, do cume do messianismo, que ainda podes colocar um respirador artificial a essa doença terminal que é a tua revolução?
Tirou um tempo para ouvir as declarações de Irlanda Jerez, falando com detalhes que dão calafrios sobre as atrocidades em Chipote e no cárcere de La Esperanza? Conta Irlanda, que quando teus “especialistas” profissionalmente assessorados, a estavam torturando, com métodos físicos e psicológicos, ela com lucidez e bravura disse: “Vocês acreditam realmente que sou prisioneira? Os prisioneiros são vocês todos, que estão encarcerados na sua própria miséria humana”.
E falando de paradigma, Daniel, ao entrar à igreja da Divina Misericórdia, não recordou de Delicias del Volga, onde Julio Buitrago, sozinho com sua pistola, enfrentou as hordas de Somoza, até que a casa ficou cheia de fumaça?
Não sei se essa casa ainda existe. Porém, os furos na tua consciência jamais vão desaparecer e, como disse teu pai, citando Báez Bone, vão te acompanhar até o último dia de tua vida.
Não sei Daniel, como vai terminar esse caos em que vocês submeteram nossa Nicarágua. Eu, como milhões de nicaraguenses, somente desejo paz com justiça. Pessoalmente, por princípios, rechaço os julgamentos sumários, filhos bastardos do ódio e da vingança.
Vi um documentário sobre o patético final dos Chauchescu, na Romênia comunista. A mesma guarda pessoal que todas as manhãs colocava rosas vermelhas no despacho da companheira, se encarregou de abortar a tentativa de fuga. Nesse trágico epílogo, a excelsa primeira-dama, desanimada, ordenava a presença de seus leais cachorros. A resposta foi um sopro fatal, com o qual se fechou mais um capítulo do chamado socialismo real na Europa Oriental.
Daniel Ortega. Não é um erudito cientista político que está te falando, nem um eminente funcionário das Nações Unidas. Não possuo a verborreia dos teus deputados, nem a estatura do teu chanceler. Somente sou o teimoso cantor, que se nutriu da seiva da nossa geração, para escrever essas trovas que foram desnaturalizadas.
Em nome desse cristianismo que proclamas incessantemente, te exorto – uma vez mais – que detenhas esse inferno contra o povo que em algum momento acreditaram em sua capacidade de líder e em tua inteligência de estadista.
Não ponhas obstáculos e tropeços à vontade de Deus. Enquanto refletes, entre hoje e o ano 2021, é saudável que esteja claro: a conta regressiva – pela lei da história – alcança inexoravelmente, todos os tiranos por igual. Todos, sem exceção!
A bola está contigo.
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Nicarágua. Carta aberta do cantor e compositor nicaraguense Carlos Mejía Godoy ao ditador Daniel Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU