10 Julho 2019
Papelões fazem as vezes de mantas para forrar o chão. Cobertores empilhados ajudam a formar uma espécie de colchão, mas o que mais faz a diferença nas madrugadas do inverno paulistano é a "montanha humana".
A reportagem é de Felipe Souza, publicado por BBC News Brasil, 09-07-2019.
A reportagem da BBC News Brasil percorreu alguns bairros do centro de São Paulo para entender o que os moradores de rua fizeram nos últimos dias para se proteger do frio mais intenso dos últimos três anos, com temperaturas mínimas de até 6,5ºC e sensação térmica próxima de 0ºC, segundo medição do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) em Santana, na zona norte.
"A gente dorme amontoado para esquentar um pouco mais. Fica bem juntinho e até se empilha mesmo. Claro que o álcool também dá uma boa ajuda para suportar a dor do frio e dar uma aquecida. Importante lembrar também do calor humano de quem passa para deixar um cobertor, oferecer um chá ou uma sopa para a gente sobreviver até o dia seguinte", afirmou Rogério César da Silva Ferreira, de 42 anos, que vive embaixo de um viaduto na praça Quatorze Bis, na Bela Vista.
Nos últimos dias, foram registradas ao menos quatro mortes de pessoas em calçadas, praças e embaixo de viadutos da São Paulo. Não é possível afirmar se elas foram causadas somente pelo frio, mas quem mora nas ruas passa o dia pensando em estratégias para não morrer de frio, principalmente nas madrugadas.
Ferreira conta que em dois anos vivendo na rua presenciou muitos de seus companheiros morrerem por conta do frio. A maior parte, lembra ele, era idoso.
"Não é que toda essa gente morre só de frio. Tem muitos velhinhos com tuberculose e doenças cardíacas que não aguentam mesmo. Isso acontece porque a pessoa já está fraca e o frio só termina tudo. Todo dia você ouve uma história de um companheiro que se foi", contou ele, enrolado em alguns cobertores.
Por outro lado, os próprios moradores de rua reconhecem que há vagas abertas em albergues municipais, que permitiriam que eles ficassem mais protegidos, pelo menos durante a noite. No local, eles ainda têm direito a fazer uma refeição e tomar um banho quente.
Mas por que alguns moradores de rua ainda preferem passar frio e até correr o risco de morrer a aceitar pernoitar em um abrigo? Um grupo de amigos que vivem juntos na frente da estação Anhangabaú do metrô lista uma série de motivos para a recusa.
O primeiro deles é a quantidade de regras impostas nos albergues, como o veto ao álcool e outras drogas. O mais citado, porém, é que a maior parte das vagas ofertadas fica em abrigos distantes da região onde vivem. Para chegarem até o abrigo, eles têm direito a transporte em kombis disponibilizadas pela prefeitura; mas a volta para as regiões em que eles mantêm vínculos de amizade e até eventuais bicos de trabalho precisaria ser a pé, por conta própria.
"Geralmente, só tem vaga para o abrigo no Parque Novo Mundo, na zona norte. A prefeitura até leva a gente de Kombi até lá, mas temos de caminhar mais de duas horas (10 km) com cobertores e roupas nas costas para voltar. Ninguém quer isso", afirmou Tadeu Moreira Júnior, de 38 anos.
Em entrevista à BBC News Brasil nesta terça-feira, o secretário-adjunto da secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, Marcelo Del Bosco, afirmou que a falta de oferta de vagas no centro, área que concentra metade dos moradores de rua segundo censo feito em 2015, é uma barreira para convencer parte dos moradores de rua a serem acolhidos. Afirmou, no entanto, que vai negociar um meio de transporte para que eles sejam levados de volta ao centro da capital.
"Eu sei deste problema porque participei de acolhidas na Sé (centro). Quando a gente dizia que tinha vaga no Parque Novo Mundo, eles davam uma recuada. Algumas pessoas disseram que não podiam ir para lá porque trabalham descarregando mercadorias no Mercadão e não voltariam a tempo para o trabalho. Por isso, estamos estudando para oferecer esse retorno com ônibus. Hoje mesmo vou conversar com o secretário de Transporte e com presidente da SPTrans sobre isso", afirmou o secretário-adjunto.
Segundo ele, hoje a capital paulista tem 18.500 vagas em abrigos para adultos e 2.335 para crianças e adolescentes. Os que têm mais vagas ficam fora do centro da cidade, região onde é mais difícil encontrar locais para construir ou montar albergues.
Ainda assim, Del Bosco afirmou que nos dias mais frios os abrigos chegam a atingir 95% de sua taxa de ocupação.
"Quero ressaltar que nossa prioridade é salvar vidas. Por isso orientamos que, mesmo que um morador de rua bata à porta de um abrigo lotado, os assistentes sociais devem recebê-lo com um chá ou algo quente até que ele seja levado para outra unidade", disse.
Segundo o último censo feito em 2015 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), há 16 mil moradores de rua em São Paulo. A prefeitura, no entanto, não tem estimativas de qual o tamanho atual dessa população atualmente.
No ano passado, porém, o prefeito Bruno Covas afirmou que a estimativa é de que a cidade tenha cerca de 20 mil moradores de rua. A administração municipal informou que um novo censo será feito ainda neste ano.
Há cinco anos nas ruas, a constante escolha por não dormir num albergue causou diversas doenças respiratórias em Antonio Leandro da Silva, conhecido como Gigante, de 43 anos, que também vive na região do Anhangabaú.
"Imagine passar várias noites lutando contra o frio em cima de um papelão e com alguns 'Tony Ramos' - como são chamados os cobertores entregues pela prefeitura - nas costas. Agora, pense em tomar banho numa fonte de água gelada na (avenida) 23 de Maio. As pessoas não têm ideia do que é sentir tanto frio. Tive princípio de pneumonia e agora o médico falou que eu vou ter de usar essas bombinhas até o fim da minha vida para tratamento de asma e bronquite", diz Gigante com as mãos cheias de remédios.
Além da distância, os moradores de rua reclamam das condições de alguns abrigos da capital, principalmente da qualidade das refeições.
Tadeu Moreira Junior, de 38 anos, conta que está há um ano e meio morando nas ruas e, com a experiência, diz que consegue avaliar a comida oferecida em cada abrigo.
"Mesmo quando tem vaga, as pessoas pensam duas vezes antes de ir para o Centro Temporário de Acolhimento (CTA) do Anhangabaú porque a comida lá não é boa, não tem gosto e vem pouco. Já na Lapa a comida tem tempero, eles capricham mesmo, e dão uma quantidade boa para a gente suportar o frio. O problema é voltar de lá a pé. Demoro quase o dia inteiro", afirmou.
O secretário-adjunto Marcelo Del Bosco disse à reportagem que desconhece essa diferença de qualidade entre as refeições, mas afirmou que vai investigar a denúncia feita pelos moradores de rua.
"Sei que essa unidade não tem cozinha e recebe os marmitex de fora. Mas isso (má qualidade) não pode acontecer porque é o mesmo chamamento público, eles recebem o mesmo valor. Mas é bom ouvir isso para cobrar e verificar essas refeições. A gente sempre faz essa fiscalização para avaliar também a infraestrutura no centro de atendimento, como alimentação, papel higiênico e toalhas oferecidas. Toda crítica é importante para a gente saber e corrigir. E se não corrigir, vai ter penalidades. Eu vou cobrar isso daí hoje mesmo", afirmou.
Por mais que os moradores reconheçam que os serviços dos abrigos tenham melhorado nos últimos anos e façam constantes cobranças por melhorias, a vontade da maior parte é deixar as ruas de maneira definitiva. Para isso, eles querem ter uma oportunidade de emprego para retomar a sonhada independência financeira.
"Eu só quero uma chance de ganhar o meu próprio dinheiro. Já trabalhei em várias áreas e meu último emprego foi de caseiro em Nazaré Paulista, no interior de São Paulo. Eu só quero uma oportunidade, nem que seja da prefeitura, para provar que eu posso sair dessa", afirmou o faxineiro Jonathan Medeiros de Souza, de 32 anos, que mora embaixo do viaduto na praça Quatorze Bis.
O mesmo coro é feito por outros moradores da região, como o Tadeu Moreira Junior, que tem uma deficiência na mão direita, mas disse que aceita qualquer proposta de trabalho.
"Eu topo fazer qualquer coisa. Pintar umas guias, pegar uma vassoura para tirar o lixo das ruas. Eu aceito qualquer oportunidade para sair dessa vida. Enquanto isso, vou me virando vendendo artesanato pedindo ajuda para outras pessoas", afirmou.
O secretário Marcelo Del Bosco diz que a prefeitura tem programas de emprego ligados à Secretaria de Direitos Humanos.
"Estamos aprimorando isso porque muitas vezes a pessoa entrou no programa, não se sustentou e saiu por conta da vulnerabilidade em que ela está. Estamos cientes disso e com apoio da iniciativa privada, estamos dando cada vez mais oportunidades", afirmou.
Bosco diz que a prefeitura oferecerá 2.000 vagas em futuras repúblicas para moradores de rua. Esses espaços servem para que os moradores de rua convivam com outras pessoas e se readaptem a uma vida autônoma.
Essas repúblicas são espaços que reúnem até cinco pessoas com mesmo perfil e são visitadas diariamente por um assistente social que as auxilia com as questões de finanças e sociais. A estimativa é que depois de seis meses essas pessoas estejam aptas a retomarem suas vidas de maneira independente, mas esse tempo pode ser prorrogado caso haja necessidade.
Dezenas de grupos fazem trabalho voluntário para tentar conter o frio dos moradores. Todos sábado à noite, dezenas de voluntários deixam o bairro de Artur Alvim, na zona leste da capital paulista, para distribuir marmitex, água, roupas e cobertores a moradores de rua. Há um ano, a reportagem da BBC News Brasil acompanhou uma dessas saídas, iniciadas há 30 anos.
Neste ano, o grupo, porém, diz que arrecadou menos do que o esperado, segundo o próprio fundador da ONG, Kaká Ferreira.
"No último fim de semana, todo o estoque de roupas arrecadado foi distribuído a moradores do centro de São Paulo", afirmou Ferreira, que diz contar com mais doações para a próxima semana. Na página do Facebook do grupo há informações sobre como doar e acompanhar o grupo durante a distribuição aos moradores de rua.
De acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas (GCE), da prefeitura, a tendência é que as temperaturas aumentem gradativamente nos próximos dias.
Segundo meteorologistas, a massa polar que causa frio na cidade vai perder força e ao longo da semana. Ainda assim, o frio não vai dar trégua durante as madrugadas. Na quarta-feira, os termômetros podem chegar a no mínimo 10ºC e, na quinta, as temperaturas podem chegar a 11ºC nas horas mais frias do dia.
A prefeitura coloca suas equipes de apoio em alerta máximo sempre que as temperaturas ficam abaixo dos 13ºC e alerta que qualquer pessoa pode ligar para o telefone 156 para relatar caso presencie um morador de rua que precise de ajuda.
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‘A gente dorme amontoado para esquentar’: moradores de rua contam como passaram as noites mais frias do ano em SP - Instituto Humanitas Unisinos - IHU